O bigode do professor de geografia - Ondjaki

Dali's moustache, Salvador Dalí

o bigode do professor de geografia

O camarada professor de Geografia era um homem baixinho com uma barriga redonda e um bigode muito fininho tipo dos artistas dos filmes. Falava quase sempre baixo e tinha pouca paciência nas aulas. Um dia no intervalo até alguém disse que ele não gostava de nós. Não sei.
Naquele dia o Joel e o Nuno estavam mais parvos do que o habitual. E o camarada professor de Geografia não gostava nada das nossas parvoeiras tipo estigas de gozar com os professores. Fazia muito calor e as aragens todas tinham desistido de atravessar a nossa sala de aulas.
O momento foi desses assim inesperados: ninguém pode saber quando uma coisa estranha vai acontecer. A irritação de um professor ou de um aluno, ou dos dois, é um mistério. Mesmo, para mim, as crises de asma repentistas da minha colega Luaia também eram de mistério e susto.
E aconteceu.
O camarada professor, de pé, no quadro, de costas para nós. Na camisa esverdeada de quase todas quintas-feiras um suor já tinha virado mancha escura. O Joel estigou:
— Ché, o camarada professor tipo que tem o mapa de África desenhado no porta-bagagens!
Todos rimos. O camarada professor pousou o giz no quadro e deu-nos uma olhada de mandar calar. Trememos.
No quadro, pela mão dele transpirada, um problema qualquer estava a ser apresentado. Quando ele escreveu “setenta minutos”, o Nuno iniciou a fala dele:
— O camarada professor não pode dizer setenta minutos — e riu bem alto. — Diz-se 1h10min.
O resto da turma já não riu. O suor no “mapa de África” tinha aumentado. O giz foi largado da mão suada e caiu de repente no chão — mil pedacinhos do nosso medo — num estrondo quase nenhum mas que eu podia aqui dizer que foi ruidoso. O camarada professor virou-se. Até nos pareceu que o bigode dele também estava irritado conosco. O Nuno parou de rir e teve medo.
Os passos do camarada professor foram lentos até à porta. As mãos dele fecharam a porta com estrondo e susto de filme de terror — e o calor também. Deve ter sido espanto o que sentimos quando ele falou:
— Ó seus filhos da puta, vocês tão a brincar com esta merda ou quê?
Desde a pré-cabunga até à sétima classe, eu nunca tinha ouvido um professor dizer um disparate em plena sala de aulas. O medo estava conosco.
O camarada professor andou devagar e sentou-se na secretária dele. Apontou o dedo para um qualquer, mas era como se fosse atingir a sala toda. Ainda bocejou e sentimos o cheiro da bebida que sempre lhe acompanhava.
— Pensam que a merda do salário que me pagam aqui é suficiente pra vos aturar? Ahn? E não vale a pena irem fazer queixinhas nos vossos pais.
Fez uma pausa terrível de filme de suspense.
— Vocês tenham muito cuidado... Muito cuidado mesmo.
Nós a tremer. O tempo não queria passar.
— Se um dia destes lerem no jornal que o professor de tal matou umas pessoas..., não tenham dúvidas: sou eu mesmo! Ouviram bem, seus filhos da puta?
A tarde estava quieta sem passarinhos de fazer um bocadinho de barulho. Nada. O medo era tanto que ninguém engolia cuspe para não fazer ruído com a bola da garganta. O camarada professor olhou o relógio e bocejou mais uma vez. Quando o sino tocou ninguém se mexeu.
— Podem sair — ele disse, devagarinho.
Um a um, certinhos tipo num quartel, fomos saindo.
O camarada professor, assim meio triste, foi o último a abandonar a sala. Tinha as costas completamente ensopadas de suor, numa mancha que não fazia mais desenho nenhum.
Uma luz bem encarnada de sol fazia brincadeira de brilhos no rosto, nos olhos, nos bigodes dele. O camarada professor de Geografia tinha o bigode dos maus dos filmes.

- Ondjaki, no livro "Os da minha rua". Coleção Ponta de Lança. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.



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