Ilustração: © Gustavo Aimar |
um pingo de chuva
Eu acho que nunca cheguei a dizer a ninguém, talvez só mesmo à Romina, mas na minha cabeça eu sempre escondia este pensamento: as despedidas têm cheiro. E não é cheiro bom tipo chá-de-caxinde, ou as plantas a darem ares duma primeira respiração na frescura da manhã, entre silêncios e cacimbos molhados. Não. Despedida tem cheiro de amizade cinzenta. Nem sei bem o que isso é, nem quero saber. Não gosto mesmo de despedidas.
Um dia nós, os do nosso grupo, quase silenciosos, tínhamos combinado encontro na escola Juventude em Luta, depois do almoço. Os mais atrasados, como sempre, eram o Bruno e o Cláudio. As meninas já tinham chegado, ficamos ali no campo de futebol a olhar a escola quase vazia.
Como num filme, sempre me acontecia isso: eu olhava as coisas e imaginava uma música triste; depois quase conseguia ver os espaços vazios encherem-se de pessoas que fizeram parte da minha infância. De repente um jogo de futebol podia iniciar ali, a bola e tudo em câmara lenta, um dia vou a um médico porque eu devo ter esse problema de sempre imaginar as coisas em câmara lenta e ter vergonha de me dar uma vontade de lágrimas ali ao pé dos meus amigos. A escola enchia-se de crianças e até de professores, pessoas que tinham sido da minha segunda classe, da terceira, até lembrava de repente o exame da quarta classe com o texto “Oriana e o peixe”. Quando alguém me tocava no ombro, as imagens todas desapareciam, o mundo ganhava cores reais, sons fortes e a poeira também.
— Tás a ouvir?! — alguém dizia.
Eu tinha que fingir que sim e engolir com os olhos todas as lágrimas. A escola estava vazia e, sem ninguém dizer nada, todos tínhamos medo daquela sensação. O fim da sétima classe: a incerteza sobre quem ainda íamos encontrar no ano seguinte. As pautas já tinham saído, todos tínhamos passado com boas notas e muitos estavam contentes por causa das férias grandes. Eu não.
Chamaram-me, para irmos andando. Já tinham chegado todos. Tínhamos combinado encontro na escola Juventude em Luta, para depois do almoço irmos até à casa dos camaradas professores Ángel e María. Aquilo tudo cheirava a despedida até mais não.
— Não sentem o cheiro? — brinquei.
— Só se for da tua catinga — o Bruno disse.
Todos riram. Eu também. Embalei-me naquelas gargalhadas para olhar bem para eles, para eles todos, os meus colegas da sétima classe, e quase todos também tinham sido meus colegas desde a segunda até à quarta. Bons tempos. Uns traziam lanche, outros não; uns tinham bola e carrinhos bonitos, outros não; todos vínhamos vestidos com o fardamento azul, de modo que no intervalo a escola ganhava uma gritaria toda azul de crianças a quererem aproveitar aqueles vinte minutos de liberdade e maluqueira. Os asmáticos, como eu, voltavam transpirados para a sala de aulas, com falta de ar, a tossir, e eram ralhados pela camarada professora Berta. No dia seguinte corríamos outra vez.
Chegamos à casa dos camaradas professores Ángel e María. O camarada professor não estava vestido com a calça militar dele, tinha uma camisa creme tipo “goiabera” e uma calça justa. A camarada professora María tinha a cara toda pintada, com exagero mesmo, mas eu não queria que ninguém lhe gozasse porque vi nos olhos dela a olhar para nós que ela queria só estar bonita a disfarçar a tristeza dela.
— A camarada professora tá muito bonita — a Petra disse, as outras meninas concordaram. Eu também. O Bruno olhou com cara feia, mas conseguiu controlar-se, não riu nem estigou.
Era uma tarde quase bonita numa cor amarela e castanha que o Sol tinha posto dentro do apartamento pequeno deles. Serviram chá para nós, um chá aguado mas doce, cheio de ternura. Quase ninguém tinha palavras de falar — nem eles, nem nós. Depois o camarada professor Ángel explicou-nos, com palavras um bocadinho difíceis, que a missão deles em Angola tinha terminado e que se iam embora muito em breve. O Bruno coçava a garganta e olhava para a janela, também impressionado com as cores daquele amarelo-sol. A Petra, a Romina e eu vimos a camarada professora María chorar escondida na cozinha e tivemos de fazer força para parar as lágrimas. O camarada professor Ángel continuava a falar e, sem querer, dizia coisas que nos emocionavam muito. Nas despedidas acontece isso: a ternura toca a alegria, a alegria traz uma saudade quase triste, a saudade semeia lágrimas, e nós, as crianças, não sabemos arrumar essas coisas dentro do nosso coração.
A Romina tirou da mochila dela um frasco bonito e grande, cheio de compota de morango. O camarada professor Ángel deixou de conseguir falar. Todos nós sabíamos que aquela era a prenda de despedida que eles podiam apreciar mais, e a mãe da Romina tinha feito um embrulho todo simples e bonito que só pela tampa via-se logo que era a compota da delícia deles. As mãos da camarada professora María tremiam ao agarrar as mãos do marido dela como se, naquele gesto, eles conseguissem agarrar as mãos de todos os alunos que eles tinham ensinado aqui em Angola.
Quando chegamos lá em baixo, o Sol já tinha ido embora. O céu queria começar a ficar escuro e, muito atrás de todas as nuvens que podíamos ver, um resto de encarnado vivo iniciou a despedida dele.
Lá em cima na janela o camarada professor Ángel tinha a mão dele no ombro da camarada professora María, e dava-lhe beijinhos na bochecha para ela não chorar tanto.
Um pingo de chuva, sozinho, caiu-me na cabeça, nessa que foi a última vez que vimos aqueles camaradas professores cubanos.
- Ondjaki, no livro "Os da minha rua". Coleção Ponta de Lança. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.
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