Voltando a ser criança - Rubem Alves

Jequitibá rosa (Parque Estadual do Vassununga) - foto: Dirceu Martins/TG

Voltando a ser criança

A Maria Antônia é pessoa querida, faz versos lindos que sempre cito. O seu livro Terra de formigueiro é um presente gostoso para uma pessoa amada. Ela me escreveu colocando duas fotografias dentro do envelope. A primeira era uma árvore gigantesca, fotografia tirada de baixo para cima, JEQUITIBÁ rosa, do Parque Estadual de Vassununga, em Ribeirão Preto. Atrás, informações técnicas: altura, quatrocentos metros; idade, três mil anos. Escrevi para ela:

Olha, gosto de acreditar em portentos, achei o JEQUITIBÁ fantástico, tão fantástico que escrevi o nome dele todo em maiúsculas – não devia ser escrito na horizontal, mas na vertical, em virtude de sua assombrosa ereção. Agora, acreditar que ele é da altura do Pão de Açúcar, quatrocentos metros, isso é um pouco demais para a minha incredulidade, nem o apóstolo Tomé acreditaria, muito embora para Deus tudo seja possível. Três mil anos de idade é tempo pra chuchu, mil anos antes do nascimento de Cristo... Mas não espalhe a notícia não, pois há o perigo de que comecem a dizer que chá de casca do jequitibá é o segredo da longevidade e da potência permanente, e isso seria o fim do jequitibá.

A segunda era um cartão-postal de uma exposição em homenagem ao Monteiro Lobato, em que aparece uma foto do meu filósofo mais querido, Friedrich Nietzsche e, em cima dela, uma frase de Lobato sobre ele, tirada de uma carta datada de 24/8/1904. Aí continuei a carta para a Maria Antônia:

Portento maior que o jequitibá eu achei a fotografia de Nietzsche com a frase do Lobato. Imaginar que Lobato tivesse conhecimento desse filósofo desconhecido, morto em 25 de agosto de 1900! A frase dele me deixa pasmo: “Ele é isso. Corre na frente com o facho, a espantar todos os morcegos e corujas e a semear horizontes.”


Nietzsche, sim, era jequitibá alto; faz muito tempo que estou subindo pelos seus galhos e nunca chego ao alto. Dizia ele que construiria seu ninho na árvore Futuro e que ali, na solidão, as águias lhe trariam alimento nos seus bicos!
A frase de Lobato me deixou pasmo, primeiro por ele ter lido Nietzsche naquela data. Segundo, porque de Nietzsche os leitores e intérpretes falaram as maiores barbaridades. Leitores e intérpretes, inclusive eu, são um perigo. Nunca acreditem neles. A razão para isso é simples. O próprio Nietzsche explicou:

Ninguém consegue tirar das coisas, incluindo os livros, mais do que aquilo que ele já conhece. Pois aquilo a que alguém não pode chegar por meio da experiência, para isso ele não terá ouvidos.

Isso nada tem a ver com erudição. Os eruditos não o entendiam. Um erudito professor da universidade de Berlim, após ler seus textos, sugeriu que ele parasse de escrever como escrevia, porque ninguém se interessava por aquilo que ele escrevia.
Mas Lobato o entendeu. Se não tivesse entendido, não teria escrito o que escreveu. O Riobaldo sabe o segredo do entendimento. “O senhor mesmo sabe. E, se sabe, me entende.” A gente entende quando já sabia. Lobato já sabia. Os dois, Lobato e Nietzsche, tinham a mesma coisa na alma. E, se querem saber o que era, digo. Eles, ambos, amavam as crianças. Não esse amor bobo, as crianças umas gracinhas, tolinhas, com quem se fala só por meio de diminutivos idiotas: tem dois aninhos, vai tomar sopinha, vai pôr roupinha. Levavam as crianças a sério. Concordavam com a opinião de Bernardo Soares, que notava a “diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos”. No mundo de Lobato os adultos são seres-sombras, à margem do maravilhoso acontecente no mundo das crianças. Não escrevia para as crianças. Contava, para os adultos, estúpidos, o mundo das crianças. Zaratustra, o grande herói de Nietzsche, seu monstro dionisíaco, era uma criança. Tinha de ser, para se comover até às lágrimas com borboletas e bolhas de sabão. Seus escritos eram borboletras e bolhas de sabão. Os adultos não podiam entender. Num momento de desânimo ante a incompreensão dos adultos, ele escreveu:

Gosto de me assentar aqui onde as crianças brincam, ao lado da parede em ruínas, entre os espinhos e as papoulas vermelhas.
Para as crianças eu sou ainda um sábio, e também para os espinhos e para as papoulas vermelhas.

Escrevia para educar. Mas tinha horror às escolas. Nas escolas se formam os rebanhos de ovelhas, todas balindo igual, todas pensando igual. Ovelha que balisse diferente, que pensasse diferente, ia para o manicômio ou era reprovada. Morreria de rir se tivesse tido a felicidade de ler a Adélia Prado:

Escola é uma coisa sarnenta. Fosse terrorista, raptava era diretor de escola e dentro de três dias amarrava no formigueiro, se não aceitasse minhas condições. Quando acabarem as escolas, quero nascer outra vez.

Escola é máquina de destruir crianças. Nas escolas as crianças são transformadas em adultos. É isto que todos os pais querem: que seus filhos sejam adultos produtivos. Como ficam felizes quando eles passam no vestibular!
Nietzsche andava na direção contrária... Não era ovelha de rebanho. Era cabrito montês, que andava sozinho nas rochas. Criança não é meio para se chegar ao adulto. Criança é fim, o lugar aonde todo adulto deve chegar. Zaratustra tinha trinta anos de idade quando deixou sua casa e o lago de sua casa e subiu para a solidão das montanhas. Lá viveu por dez anos, tendo por companhia a sua serpente, a sua águia e o sol. Chegou um dia, entretanto, em que ele se sentiu como fonte transbordante. E então teve saudades dos homens. Desejou que eles bebessem da sua água. E assim ele orou ao sol:

Eis que estou cansado da minha sabedoria, como uma abelha que ajuntou mel demais; necessito de mãos estendidas que a recebam [...].
Mas, para isso eu tenho de descer às profundezas, como tu, estrela transbordante, o fazes de noite.

E assim começou então a descer. Sua descida passava por uma floresta, a mesma por que passara dez anos antes. Dez anos antes ele se encontrara com um solitário, um eremita, um santo. Encontrou-se com o mesmo eremita que se espantou ao vê-lo:

Esse caminhante não me é estranho; muitos anos atrás ele passou por esse caminho. Ele se chamava Zaratustra. Mas ele mudou. Naquele tempo levava suas cinzas para as montanhas; e agora quererá levar seu fogo para os vales? Não terá medo de ser punido como incendiário? [...]

Zaratustra mudou, Zaratustra se transformou numa criança, Zaratustra é um iluminado.

Depois de dez anos de solidão, a iluminação. Iluminado, ele é agora uma criança. “Sim”, continuou o eremita,

eu reconheço Zaratustra. Seus olhos são puros e à volta de sua boca não mora nenhum desgosto. Não anda ele como um dançarino?

Que brigas ele teria com os psicanalistas, que ficam à caça de regressões à infância, esforçando-se para que a criança se mantenha reprimida e o adulto triunfe! Fosse ele um psicanalista (Freud declarou que ninguém podia se comparar a Nietzsche no conhecimento da alma humana!) e ele passaria o tempo todo à procura da criança que mora nos homens, criança que a educação trancafiou num quarto escuro. “Num homem real se esconde uma criança [...] que deseja brincar”, ele dizia. E é isso que diria àqueles que procurassem a sua sabedoria: “Que a tua vitória e a tua liberdade anseiem por uma criança.” “A maturidade de um homem consiste em encontrar de novo a seriedade que se tinha como criança, ao brincar...”
De fato, o jequitibá é maravilhoso, muito alto, muito velho. No galho de um jequitibá se pode pendurar um balanço. Mas a criança de Nietzsche é mais maravilhosa. Que são a altura e a idade de uma árvore comparadas ao momento efêmero de uma criança que balança no balanço? Bolha de sabão...


- Rubem Alves, no livro "Se eu pudesse viver minha vida novamente". Campinas,SP: Verus Editora, 2012.
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