Arroio-das-Antas - João Guimarães Rosa

© Graça Morais

E eu via o gado todo branco
minha alma era de donzelas.

Porandiba.

Arroio-das-Antas

Aonde — o despovoado, o povoadozinho palustre, em feio o mau sertão — onde podia haver assombros? Trouxe-se lá Drizilda, de nem quinze anos, que mais não chorava: firme delindo-se, terminalvelmente, sozinha viúva. Descontado que a esquecessem. Ela era quase bela; e alongavam-se-lhe os cabelos. A flor é só flor. A alegria de Deus anda vestida de amarguras.
De déu em doendo, à desvalença, para no retiramento ficar sempre vivendo, desde desengano. O irmão matara-lhe o marido, irregrado, revelde, que a desdenhava. De não ter filhos? Estranhos culpando-a, soante o costume, e o povo de parentes: fadada ao mal, nefandada. Tanto vai a nada a flor, que um dia se despetala.
Mandaram-na e quis, furtadamente, para não encarar com ninguém, forrar-se a reprovas, dizques, piedade. Toda grande distância pode ser celeste. Trás a dobrada serrania, ao último lugar do mundo, fim de som, do ido outro-lado. Arroio-das-Antas — onde só restavam velhos, mais as sobejas secas velhinhas, tristilendas. Pois era assim que era, havendo muita realidade. Que faziam essas almas?
Rodearam-na — solertes, duvidando, diversas — até ao coaxar da primeira rã. Nem achavam o acervo de perguntas, entre outroras. Seus olhos punham palavras e frases. Viera-lhes a moça, primor, mais vaga e clara que um pensamento; tinham, à fria percepção, de tê-la em mal ou em bem.
Dali — recanto agarrado e custoso, sem aconteceres — homens e mulheres cedo saíam, para tamanho longe; e, aquela, chegava? Tão não sabida nem possível, o comum não a minguando: como todo ser, coagido a calar-se, comove.
Sós, após, disputavam ainda, a bisbilhar, em roda, as candeias acesas. Nenhuma delas ganhara da vida jamais o muito — que ignoravam que queriam — feito romance, outra maneira de alma. O que a gente esperava era a noite. Mas a velhice era-lhes portentosa lanterna, arrulhavam ao Espírito-Santo.
Senão que, uma, avó Edmunda, sob mínima voz, abençoou-a: — “Meu cravinho branco...” Outra por ela puniu, afetando-se áspera: —“Gente invencioneira!” Suspiraram mor, em giro doce, enfim, entreentendidas, aguadas as vistas, com uma ternura que era quase uma saudade.
Drizilda depôs-se, sacudidos os cabelos, quisesse um parar — devagarzinho quietante — no limbo, no olvido, no não abolido. Fez tenção: de trabalhar, sobre só, ativa inertemente; sarado o dó de lembranças, afundando-se os dias, fora já de sobressaltos.
Sofria, sofria, enquanto a noite. Culpa capital — em escrúpulo e recato, o delicado sofrimento, breve como uma pena de morte, peso de ninguém levantar. O marido, na cova; o irmão, preso condenado; rivais, os dois, por uma outra mulher, incerta ditosa, formosa... Deus é quem sabe o por não vir. A gente se esquece — e as coisas lembram-se da gente.
Por maiormente, o lugar — soledade, o ar, longas aves em curto céu — em que, múrmuras, nos fichus, sábias velhinhas se aconselhavam. Aqui, não deviam de estender notícias, o muito vulgado. Calava-se a ternura — infinito monossílabo. O que não pudera, nem soubera; não havendo um recomeçar. Pagava o mourejo, fado, sumida em si, vendo o chão, mentindo para a alma. Sem senhor, sem sombras, tão lesada; como as mais do campo, amarelas ou roxas, florzinha de má sorte? Um cachorro passava por ali, de volta para alguma infância. Desse tempo para a frente. Vigiavam-na as velhas, sem palavras.
Tramavam já com Deus, em bico de silêncio, as quantas criaturas comedidas. De vê-la a borralheirar, doíam-se, passarinho na muda, flor, que ao fim se fana; nem podendo diverti-la, dentro em si, desse desistir. Mas, pretendiam mais. Tomavam, todas juntas, a fé de mortificadas orações, novenas, nôminas, setêmplices. — “Deus e glória!” — adivinhavam, sérias de amor, se entusiasmavam. Elas, para o queimar e ferver de Deus, decerto prestassem — feixe de lenhazinha enxuta. Para o forçoso milagre!
Falava-se de uma ternura perfeita, ainda nem existente; o bem-querer sem descrença. Enquanto isso, o tempo, como sempre, fingia que passava. As velhinhas pactuavam a alegria de penar e mesmo abreviadas irem-se — a fito de que neste sertão vingassem ao menos uma vez a graça e o encanto.
Drizilda estremunhava-se, na disquietação, ainda com medrosas pálpebras primitivas. Aqui ninguém viesse — o mundo todo invisível — só a virtude demorã, senhas de Maria e de Cristo, os cães com ternura nas narinas, borboletas terra-a-terra. Ela queria a saudade. Ora chovia ou sol, nhoso lazer, enfadonhação, lutas luas de luar, nuvens nadas. Sua saudade — tendência secreta — sem memória. Ela, maternal com suas velhinhas, custódias, menina amante: a vovozinha... Moviam-na adiante, sob irresistíveis eflúvios, aspergiam-na, persignavam-lhe o travesseiro e os cabelos. Comutava-se. Olhos de receber, a cabeça de lado feito a aceitar carinho — sorria, de dom.
Sua saudade cantava na gaiolazinha; não esperar inclui misteriosas certezas. Vinham as velhas, circulavam-na. Alguma proferia: — “Todo dia é véspera...” — e muito quando. Viam-na em rebroto — o ardente da vida — que, a tanto, um dia, ao fim, da haste se quebra. Rezavam, jejuavam, exigiam, trêmulas, poderosas, conspiravam.
A avó Edmunda, de repente, então. — “Morreu, morreu de penitências!” — a triunfar, em ordem, tão anciãs, as outras jubilavam.
Saía o enterro — Drizilda adiante, com a engrinaldada cruz — murchas, finais, as velhinhas, à manhã, mais almas.
E vinha de lá um cavalo grande, na ponta de uma flecha — entrante à estrada. Em galope curto, o Moço, que colheu rédea, recaracolando, desmontou-se, descobriu-se. Senhorizou-se: olhos de dar, de lado a mão feito a fazer carícia — sorria, dono. Nada; senão que a queria e amava, trespassava-se de sua vista e presença.
Ela percebeu-o puramente; levantou a beleza do rosto, reflor. Ia. E disse altinho um segredo: — “Sim”. Só o almêjo débil, entrepalpitado, que em volta as velhinhas agradeciam.
Assim são lembrados em par os dois — entreamor — Drizilda e o Moço, paixão para toda a vida. Aqui, na forte Fazenda, feliz que se ergueu e inda hoje há, onde o Arroio.


- João Guimarães Rosa, no livro "Tutameia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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