Claude Renoir at play Sun - by Renoir Pierre-Auguste 1905 |
Os jardins de Salley
Seu nome era Hannah, mas preferia ser chamada de Alice.
A menina olhava melancolicamente pela janela traseira do
antigo Ford Model A de seu pai enquanto assistia a típica chuva inglesa a cair, gota a gota, pela imensidão acinzentada. O carro se movia quase tão
lentamente quanto à paulatina queda das gotas, e ela se sentia entediada e
desafortunada. Em meio ao silêncio quase fúnebre de seus pais, sentados no
banco da frente, a menina entregava-se aos seus pensamentos também melancólicos.
Nunca imaginaria que sua vida mudaria tanto em tão pouco tempo.
Este país é assim. Sempre cinza.
Hannah Schmidt Wasser era filha de uma mulher londrina,
cujas raízes familiares eram oriundas da Inglaterra. Seu pai,
judeu alemão e grande negociante empreendedor, a conhecera em uma de
suas viagens para fora de seu país. Em pouco tempo, se casaram e juntaram as
famílias, mesmo causando desgosto aos seus parentes. Os dois nichos familiares
não se aceitavam muito bem, em especial pela incompatibilidade entre seus
filhos, por conta de suas origens muito distintas.
Mas tudo mudou quando Hannah nasceu no dia 23 de fevereiro
de 1926. A chegada da menina mudou o coração e o pensamento de muitos: não
apenas dos familiares que não se aceitavam, como também gerou novos objetivos de vida
para seus pais. Ludwig Wasser decidira deixar suas viagens a negócios de lado e
escolheu fixar residência em sua cidade natal, Berlim, onde sua filha teria
educação privilegiada, assim como boas condições de saúde e segurança. Sua mãe,
Anna Schmidt, concordou. Desejava apenas estar ao lado do marido e da filha que
tanto amava, não tendo os mesmos preconceitos de seus pais.
Com o tempo, as famílias se aproximaram: avós, tios e
primos da pequena Hannah hospedavam-se na mansão da família Wasser em Berlim, e
celebravam junto com todos inclusive os feriados judeus. Eram luteranos, e não
exerciam a religião. Gradativamente, inseriram-se tanto na cultura judaica que
a família Wasser fazia piada de que eram mais judeus do que luteranos.
Mas a suposta paz começou a ser ameaçada ao final da
década de 30.
Hannah não se lembrava bem, mas sabia que havia tensão no
ar. Seus parentes maternos não mais a visitavam, e, mesmo sendo uma criança,
ela percebia que algo não estava bem. Ouvira comentários sobre “perda de
cidadania”, perseguições, e a necessidade de fechar os negócios e se mudar.
Mas a menina não queria ir embora. Sua casa era ali, junto
com toda a família de seu pai, e a quase constante visita de seus parentes
ingleses. Fora lá que crescera, fora educada, tivera amigos e aprendera a
ensaiar sua vida.
Porém, de nada adiantaram seus protestos. Era só uma
criança, e não entendia de fato como o mundo funcionava.
Em 1936, seu pai a levou junto de sua mãe e seus avôs
paternos para a Inglaterra. Hannah perguntou por que não levariam consigo toda
a família residente em Berlim, mas seu pai, em resposta, manteve um longo silêncio,
seguido de um sorriso amarelo. Em seguida, apenas improvisou uma suposta
garantia de que eles embarcariam em outro navio, posteriormente.
Passaram-se dias, e ela perguntou novamente. Seu pai falou
que demorariam mais algumas semanas. As semanas transformaram-se em meses, que,
em seguida, formaram um ano: 1937.
Cansada de perguntas com respostas evasivas, a menina de
onze anos surrupiou, em uma manhã, o jornal que era entregue pontualmente na
frente da casa da família de sua mãe, onde naquele momento residiam.
Um homem chamado Churchill havia dado uma extensa
entrevista, que aparecera na capa do jornal. Em diversos momentos, lia-se a
palavra “guerra”, e “anti-semitismo”.
A menina chorou por dois dias, recusando-se a sair do
quarto. Ainda não havia entendido completamente o que se passava, mas, mesmo assim...
Desistiu de perguntar.
Hannah apenas tentava não pensar no que poderia acontecer ou teria
acontecido aos seus parentes em Berlim. Embora eles sempre a visitassem, em
seus pesadelos. Imaginava-os fugindo, sorrateiros, esgueirando-se furtivamente
para algum navio para fora da Alemanha, tendo sempre suas tentativas
frustradas da pior forma possível.
Ela acordava suando frio, sentindo taquicardia, seu corpo
todo tremendo. Chorava baixinho, olhando pela janela da casa de sua mãe em
Londres, encarando o céu sempre fechado e cinza. Cinza era a cor dos cadáveres...
Ela estremecia, recordando.
Era a cor de seus parentes em seus sonhos.
Nesta rotina aflitiva, três anos se passaram. A guerra, por sua vez, se intensificou. O
poderio nazista mostrava suas garras de aço e pólvora, e murmúrios sobre
bombardeios eram cada vez mais escutados por ouvidos atentos. O pai de Hannah,
desesperado, vendeu a propriedade da família em Londres, e decidira se mudar com todos os remanescentes para a pequena cidade de Bude, no norte da província
de Cornwall, na Inglaterra. Pensava que isto lhes daria uma chance de, caso necessário, escapar por uma saída
marítima não tão óbvia assim.
Enfrentaram horas de percurso na estrada, parando em
pequenas estalagens para o pernoite. Por todo o tempo de viagem, foram
castigados pela chuva fina e incessante.
E, enfim, Hannah foi brindada com a primeira visão de
Bude.
Naquele preciso momento, enquanto acabara de adentrar
junto à sua família os limites territoriais do minúsculo município, Hannah
tentava sonhar. Devanear. Era a melhor saída para fugir da realidade, a qual
tentava a todo custo puxá-la com força para baixo, com suas gafas de ferro,
sangue e morte; se esforçando para arrastá-la para longe das nuvens, onde sua cabeça de jovem moça tentava
repousar.
Contudo, as nuvens eram cinza, assim como seus pensamentos.
Em outros tempos mais felizes, a menina admiraria as
pequenas pontes e moinhos que delicadamente se abriam aos novos moradores da
cidade, evidenciando a paisagem idílica do lugar: uma cidade bucólica e
campestre, próxima ao mar. Um pequeno refúgio.
Seguindo mais adiante, passaram pela rua central da
cidade, na qual havia uma pequena igreja luterana, proeminentemente branca com
detalhes azuis em suas bordas, localizada próxima a uma praça de tijolos
brancos. O povo da cidade caminhava em seus afazeres costumeiros, e Hannah pôde
reconhecer o padeiro local, marinheiros, crianças a brincar, e velhinhos que
conversavam e fumavam cachimbo, sentados nos bancos da praça. Seria uma
paisagem adorável, mas a sensibilidade de Hannah não podia ser tocada no
momento.
Estava mais preocupada em pensar sobre como iriam
recepcioná-la. Fora instruída pelos seus parentes a negar suas origens paternas, enquanto frequentasse a escola. Não usaria seu sobrenome Wasser, se
apresentaria meramente como Hannah Schmidt. Todavia, desejava em seu íntimo
apresentar-se como Alice.
Sabia que seu biótipo não a entregaria. Era muito
diferente de seu pai, que detinha um nariz grande, e um corpo levemente
atarracado, alguns dez centímetros mais baixo que a média dos ingleses, um povo
de altos homens. Era idêntica a sua mãe: morena, pele alva como a neve, de
cabelos escuros e lisos, levemente ondulados. Traços gentis, como o de várias
moças inglesas. Era muito bela, mas não sabia. Desenvolveu-se cedo, menstruando com onze anos de idade, enquanto suas amigas ainda tinham
aparência infantil, e era motivo de chacota na escola. Era a mais alta de suas
colegas, e portanto se considerava desajeitada, como se tivesse crescido muito
em pouco tempo.
De seu pai, havia herdado seu gentil par de olhos
verdes, naturalmente lacrimosos, sempre com um curioso brilho umedecido.
Gostava de imaginar que viera daí a origem do sobrenome Wasser, que significa,
em alemão: “água”.
A viagem seguia, e, finalmente, a menina avistou grandes
jardins, cercados por um muro vitoriano de pedra. A casa era toda construída em
um típico estilo inglês, com suntuosas grades de ferro negras na entrada,
portando um símbolo estranho acima delas.
Desceram do carro, e Hannah ajudou seus pais a retirarem
as malas, até que o caseiro do local, contratado por seus avôs maternos, acompanhou-os e
levou as malas para seus respectivos quartos. A menina parou na frente da
entrada, absorvendo todo o novo cenário.
A casa era construída por tijolos antigos, umedecidos e
enegrecidos pelo tempo. Era de um verde-acinzentado, como se tivesse criado
musgo em suas paredes externas. Percebeu a saída de três lareiras diferentes, o
que comprovava o quão fria deveria ser a temperatura média daquela cidade.
Lembrava-lhe de uma casa de campo, o que muito lhe agradava, e aliviou
levemente o fardo que carregava em seu coração.
Recordou-se curiosamente de como imaginava a casa próxima
aos jardins que Alice se distraíra e caíra na toca do coelho, na obra de Lewis
Carrol, e chegou a ter o ingênuo pensamento de que, naquela tarde, poderia
passear pela propriedade e tentar encontrar a passagem para o país das
maravilhas. Sorriu consigo mesma, e entrou na casa, seguindo seus pais.
Seus avôs maternos e paternos, que já se encontravam lá,
aliviados, recepcionaram a todos com alegria e entusiasmo, e, por algumas
horas, não se falou em guerra. Comeram, beberam — “Alice” tentou surrupiar a
garrafa de vinho e servir-se a si mesma, mas foi flagrada por seu pai — e
conversaram sobre a viagem, como se nada demais acontecesse no mundo.
Era um dia de domingo, e não havia nada a fazer.
Enquanto os adultos conversavam na grande sala de estar,
“Alice” decidiu subir para conhecer seu quarto.
Ficava na extremidade direita da casa, e, pela pequena
sacada, podia ver, muito ao longe, o horizonte marítimo. Depois de camadas e
camadas de árvores, o céu cinzento parecia se juntar a outra superfície
cinzenta, rumo ao infinito. Ela sorriu, pois gostava do mar.
Havia uma cama de solteiro, sustentada por materiais de
ferro, junto a um criado-mudo, uma cômoda de madeira pintada de branco, com
detalhes de flores próximos aos puxadores das gavetas. O piso era também de
madeira, escura, e uma penteadeira com um grande espelho oval ocupava o
resto de espaço das quatro paredes que formavam seu quarto. Serviria muito bem.
Em pouco tempo, absorvera a maior parte dos
detalhes. Percebeu um singelo lustre no teto, provavelmente antigo, pois não
era ligado a energia elétrica, e sim com velas dispostas acima de seus braços
dourados. As paredes não pareciam tão velhas, pois o rosa pastel com que foram
pintadas ainda não se esburacara com o tempo, apresentando poucas
escoriações e rachaduras. Mas o detalhe mais curioso fora uma tábua que parecia
não se encaixar com o piso do chão.
Abaixou-se para mexer no curioso objeto que não
combinava, quando ouviu um delicioso barulho de água corrente. Seus parentes
tinham terminado de conversar, deixando a casa mais silenciosa, no que permitiu
que Hannah reparasse no ruído do pequeno córrego daquele terreno.
Correu até a janela, e, animada, desceu as escadas, para
explorar a propriedade.
A menina atravessou partes do jardim, seguindo o ruído
gostoso da água que corria. Quando finalmente alcançou o córrego, abaixou-se
para tocar a água, e soltou um gritinho de alegria e surpresa. Era fria demais.
Decidiu segui-lo, para ver até onde chegaria. Seria sua
primeira aventura naquele novo local, e quem sabe depois o que poderia descobrir?
Finalmente ela voltava a sentir sua alegria
infantil tomando espaço em seu coração, a aliviando, mesmo que momentaneamente, do peso que carregava. Sorria, não apenas pela diversão de
menina, mas por saber, enfim, que a capacidade de senti-la ainda não havia morrido dentro de si.
Quase aos saltos, ela seguia o rio corrente, mal
disfarçando o sorriso bobo em sua face. Ao longe, havia um grande salgueiro, de
troncos grossos, que poderia escalar. Sorriu ainda mais, e se aproximou lépida.
Quando quase alcançava a frondosa árvore, Hannah reparou
que um rapaz alto, de dourados cachos, vestido de maneira curiosamente
elegante, encostava-se em seu tronco, e também olhava para o rio que se abria à sua frente. Tomou um grande susto.
O que ele está fazendo na minha casa? Hannah sentiu vontade de sair correndo, gritando para
chamar seus pais. Era um estranho, e invadira os limites de sua
propriedade. Estavam muito longe dos muros que circundavam o local, e ainda
mais longe da própria casa, isolados em um ponto do grande terreno.
Porém, enquanto pensava nisso, o rosto do jovem se virou para ela.
Sentiu um arrepio correndo por sua espinha, gelando-a até
a nuca, e seu coração novamente quase parou; mas, dessa vez, ela não entendia o
motivo.
O rapaz, de pele também alva, a fitava, quase apático,
como se praticamente não a visse. Tinha traços finos e elegantes, e, apesar do
tamanho susto que levara, não pôde deixar de reparar em como era belo.
Principalmente seus grandes olhos, azuis, misteriosos como
o mar, e gentis como o rio que passava ao lado de ambos. Sua cor era de um tom
claro, como um espelho d’água, e a melancolia e gentileza do seu olhar era
enfeitiçante; etérea, mística... Como a água que deságua da cachoeira e
encontra o vau do rio, perdida em uma clareira de uma densa floresta. Um
recanto discreto e singelo, sublime em sua descoberta, inédito aos olhos dos
vivos.
Hannah não conseguia desviar seu olhar daquele estranho homem
parado à sua frente, e começava a lentamente formular o pensamento de que
poderia estar parecendo muito estranha, paralisada, encarando-o dessa forma.
O jovem franziu o cenho levemente, como se estivesse
surpreso com a atitude dela. Ou com a falta de uma, mas nada disse.
Curiosamente, contudo, parecia encará-la cada vez mais e mais surpreso.
“Alice” fechou os olhos e estremeceu dos pés à cabeça,
antes de proferir uma frase improvisada.
— Com licença, senhor, presumo que esteja equivocado. Está
ultrapassando limites de uma propriedade — balbuciou as seguintes palavras,
sua voz trêmula, as mãos suando de ansiedade.
— Ah. — O jovem soltou uma ligeira exclamação,
polida. — Estou terrivelmente arrependido. — Algo na voz dele, embora educada,
despertava a intuição de “Alice”. Por alguma razão, ela julgou que ele sabia
muito bem onde se encontrava.
— Não desejei constranger-lhe, senhorita. — Ele se
aproximou brevemente, e Hannah permanecia paralisada, surpresa com a
própria falta de reação. — Mas, se me permite perguntar... — Parecia
realmente interessado. — Qual é o seu nome? — O rapaz esboçou um sorriso
educado, e Hannah novamente sentiu o mesmo intenso arrepio.
Que audácia.
— Sinto muito, senhor, mas meus pais me orientaram a jamais falar com estranhos. Caso não vá embora, serei obrigada a chamá-los. — Ela tentava usar um tom de voz impositivo, mas falhava miseravelmente. Sentia-se como se os azuis olhos do curioso rapaz com quem dialogava fossem capaz de desarmá-la, deixá-la incapaz de reagir.
— Sinto muito, senhor, mas meus pais me orientaram a jamais falar com estranhos. Caso não vá embora, serei obrigada a chamá-los. — Ela tentava usar um tom de voz impositivo, mas falhava miseravelmente. Sentia-se como se os azuis olhos do curioso rapaz com quem dialogava fossem capaz de desarmá-la, deixá-la incapaz de reagir.
Mais estranhamente ainda, ele sorriu, dessa vez mais
sincero. — Perdoe-me novamente. Não fui apropriadamente educado. — O rapaz
esboçou uma ligeira reverência com a cabeça, em seguida voltando-se para
Hannah. — Meu nome é Thomas Williams. Não soa tão bem, eu sei. — Ele fez um
sorriso pateta, debochando do próprio nome, arrancando um riso legítimo de
Hannah, que, surpresa, crispou os próprios lábios. Encarou-a,
virando a cabeça levemente para o lado direito, como se estivesse se
divertindo, ao passo que sorriu, semicerrando os olhos.
Hannah sentiu algo quente subir-lhe pelo peito, e retesou
suas pernas.
— Eu não gosto muito do meu nome também — Hannah soltou,
ainda surpresa por estar se abrindo tão facilmente com um estranho.
— E qual seria ele? Teria a bondade de me dizer? — Algo no
tom gentil que o homem lhe dirigia aquelas palavras fazia Hannah intuir que
poderia confiar nele, contra o que seria razoável. Porém, ainda assim, sentia
um leve formigamento na nuca, como se algo no rapaz não fosse exatamente o que aparentava
ser.
— ...Pode me chamar de Alice. — Hannah levantou levemente
a sobrancelha, lançando o desafio. Era um estranho, não tinha motivos para ser
sincera com ele. E poderia ser o primeiro com o qual testaria sua nova vida,
sua nova identidade.
Ele abriu um largo sorriso e deu uma pequena risadinha. A
falsa Alice o mirava, sem compreender sua reação.
— Muito bem. Serei então Lewis, a partir de agora. — Ele
abriu um largo sorriso, que, novamente, despertou a mesma sensação quente
dentro de Hannah, mais uma vez exasperada com sua reação inusitada.
— O que quer dizer com isso? — Hannah indagou, um tanto mal
educada, mas não se importava. Sabia que havia algum sentido oculto naquela
frase, embora não o compreendesse.
O sujeito apenas riu, e, subitamente, virou as costas.
Hannah novamente não entendeu. — Aonde você está indo? — ela bradou, chocada com o comportamento curioso do jovem homem.
— Invadi sua casa. Como você mesma frisou, não é uma
atitude apropriada — falou, sem se voltar para ela. — Foi um prazer, Srta
Liddell. — Ao ouvir tais palavras, Hannah sentiu seu corpo todo estremecer, mas
não por medo. Liddell?
A menina ficou observando enquanto o misterioso sujeito se distanciava. Logo depois, caminhou brevemente até o grande salgueiro. Encostou-se no tronco, e respirou
fundo. O rapaz iria embora, e as coisas voltariam ao normal.
Lembrou-se, como em uma avalanche de pensamentos, da
situação que vivia. Recordou-se do que seria o seu normal, nos dias daquele
tempo: da guerra, da morte, da perseguição, de seus parentes dos quais seu pai
não falava, dos jornais, de seus pesadelos...
— Thomas! Thomas, espere! — Sem pensar, “Alice” correu em
direção ao estranho. Não se importava mais com a razão, naquele momento.
Enquanto conversava com ele, sentiu sensações novas, e havia tal mistério no
jovem invasor que muito a intrigava. Se conversasse com ele, o mínimo de tempo
que fosse, poderia se distrair, e, quem sabe, fazer um amigo. Decidira se arriscar e pagar para ver.
Não queria ficar sozinha com seus fantasmas.
Correu o mais rápido que podia, seguindo o caminho que o
jovem escolhera. Quando chegou, finalmente, aos portões da casa, não havia
sinal de pessoa alguma. Pássaros chilreavam, o vento acariciava as folhagens, sem vida humana por perto, exceto por Hannah.
Franziu as sobrancelhas, estranhando. Quanto tempo passara
encostada à árvore, para que ele tivesse ido tão longe? Parece o
Cheshire Cat, sumindo. Pensou, e sorriu. O gato era um dos
personagens mais misteriosos do livro, combinava com o distinto e fascinante
rapaz que acabara de conhecer.
Naquela noite, jantou com seus pais e avós, mas sua mente
ainda se perdia em suas lembranças vespertinas. Ouvia, quando a casa ficava
silenciosa, o som do rio corrente, como se a chamasse para conhecer mais sobre
os mistérios do mundo...
...E sobre si mesma.
No dia seguinte, compareceu a nova escola em que fora
matriculada. Falava inglês fluentemente, com o sotaque londrino de sua mãe e
avós, o qual escutara por toda a vida. Isso impressionou os
colegas, causando inveja em algumas meninas, como ela bem reparou. Para Hannah,
tanto melhor. Enquanto não desconfiassem de sua origem judia, era melhor ser
vista como a menina rica da capital.
Passou a tarde solitária, por não ter sido tão bem recebida. Distraiu-se tentando prestar atenção às aulas, até que, às três
horas da tarde, o sinal tocou e foram liberados. Seus pais a ensinaram como
voltar sozinha, uma caminhada de vinte minutos até a nova casa. Todavia, preferiu aventurar-se um pouco.
A escola ficava próxima da zona portuária. A pequena
cidade era sustentada pela pesca, agropecuária e criação de ovelhas, assim, os
portos eram largos, tendo pontos empobrecidos e outros mais valorizados.
A menina caminhou ao longo de um cais velho e maltrapilho,
inspirando o cheiro da maresia que tanto gostava, entorpecente, sentindo como
se seus próprios cabelos, banhados pelo vento salgado, estivessem sendo
temperados com aquele gosto e fragrância. Sorriu levemente com o pensamento, se divertindo com suas fantasias.
Quando chegou ao final do cais, sentou-se, deixando os pés
quase a tocar o mar. Sabia que não era algo muito higiênico, mas não se
importava. Naquela hora, lembrou-se de seus parentes. Como gostaria que pudesse
avistar um navio chegando no horizonte, trazendo toda a sua família de Berlim
para morar consigo. A casa era grande o suficiente, e seus dias seriam
finalmente alegres. Onde eles estariam agora? Seus pais e avós se recusavam a
tocar no assunto, e não permitiam que ela ouvisse rádio ou lesse as notícias do jornal a respeito.
Escutou as conversas na escola, mas ninguém tocou no assunto “judeu”. E,
obviamente, ela era perspicaz o suficiente para saber que não seria seguro
perguntar.
Seus lábios tremeram ao se lembrar de todos os seus sonhos
desesperadores, e do consequente medo de que ela e seu nicho familiar fossem os próximos. Respirou fundo, fechando os olhos com força, franzindo as
sobrancelhas de medo, angustiada. Ao olhar novamente para aquela infinita superfície
marinha e ao ouvir o som das ondas que, vagarosas, batiam na madeira
semi-apodrecida do longo cais, um pensamento intruso se desenhou em sua mente.
E se eu nadasse para bem longe, até não mais aguentar?
Ela engoliu em seco. Não deveria pensar naquelas coisas.
Começava a se repreender mentalmente pelo pensamento,
quando sentiu um estranho formigamento em sua nuca. Intuitivamente, se voltou para trás.
Thomas estava parado na entrada do cais com o mesmo tipo de
traje formal que usara no dia anterior, a fitando de longe. Sorria polidamente,
e seus olhos expressavam gentileza.
A garota se levantou de um salto, e, pensando em como deveria
parecer ridícula, agiu rapidamente. Correu em direção ao rapaz, porém, quando
estava no meio do caminho para encontrá-lo frente a frente, ele deu meia volta e caminhou até um pequeno depósito portuário, contornando sua edificação.
Ao fim do cais, ela se controlou, diminuiu o passo, e passou apenas a andar rapidamente. Seguiu os passos do jovem, porém,
quando contornou a casa portuária, mais uma vez ficou alarmada.
Ele não estava mais lá.
Não fazia sentido. Parecia que o rapaz brincava consigo. Despertava sua atenção, e, ao tentar encontrá-lo, sumia em pleno ar.
É claro que havia diversos lugares em que ele poderia se
esconder, mas, com que intuito? Havia algo de muito estranho em seu comportamento. Hannah simplesmente suspirou, frustrada, decidindo retornar à sua residência.
A tarde estava novamente cinza, e o sol se punha na
direção do mar. Lamentou-se por não ter esperado anoitecer, enquanto abria
o portão de ferro e adentrava o terreno do jardim; provavelmente aquele
pôr-do-sol teria sido um belo espetáculo de se assistir do porto.
— Está atrasada, Srta. Liddell. Sua mãe está preocupada. — Thomas surpreendeu-a, do lado de fora da propriedade, e sorria educadamente.
— Você tem algum tipo de prazer mórbido em dar sustos? — Hannah parou, em choque, segurando com força a grade do portão. Não havia
reparado nem sinal dele. Como consegue?
Hannah viu uma faísca no olhar do jovem. — De maneira
alguma. Apenas lhe dei um conselho útil. — Ele acenou com a cabeça e foi
caminhar pela estrada.
— Ei! EI! — Hannah gritou, para chamar sua atenção, e
depois se sentiu estúpida. Não agia de forma nada cortês, se portando daquele
jeito. Sentiu-se ruborescer.
Thomas girou nos calcanhares, e ficou parado, a cabeça
pendendo para o lado esquerdo, esperando o que ela teria a dizer. Seus olhos
azuis tinham um quê de mistério, mas agora, ela percebia, eram de um azul tão
limpo, quase inocente... Como os olhos de um gato, encantadores e misteriosos.
Mas, estranhamente... Mergulhada nas profundezas de sua água, parecia
esconder-se uma melancolia tão infinita quanto o mar.
— Hã... — ela recompôs-se de sua admiração. — Desculpe-me.
Não gostaria de ficar para jantar? Poderia conhecer minha família, eles
ficariam felizes de saber que fiz um... Hã... Amigo — tentava reunir
palavras, porém sentia que apenas se aparvalhava mais e mais.
Ele baixou os olhos para o chão, rindo consigo mesmo. Hannah se admirava com a fascinante presença daquele
rapaz, e tinha plena consciência de que seu rosto estava em brasas de tão
quente. — Não creio que seja uma boa ideia, Srta Liddell. — Ele sorriu
enviesado. — Talvez noutro dia. Estou muitíssimo lisonjeado pelo
convite. — Seu sorriso se tornou mais polido, lançando um último olhar para Hannah, que,
percebia agora, estava boquiaberta. Não conseguia desfocar seus olhos de suas fulgurantes íris azuis.
Ele se afastou, caminhando elegante pela estrada
defronte à propriedade. O sol batia em seus cabelos dourados, deixando sua
luminosidade mais evidente ainda, dando um tom mais mágico e etéreo àquela
cena, até mais do que já teria naturalmente.
Outra vez ela jantou silente com seus pais, apenas
fazendo pequenos comentários aqui e ali para que não desconfiassem do que se
passava consigo. Aquele rapaz tinha uma beleza fora do comum, mas não era
isso o mais curioso a seu respeito. Era muito elegante, educado, um perfeito
lorde inglês, como se dizia popularmente. Mas a menina intuía que seu fascínio
ia, além disso, para algo que ela ainda não conseguia conceber em sua mera
imaginação... Por mais que a fantasia nunca tivesse lhe faltado.
No dia seguinte, retomou sua rotina. Na escola, tentou
se aproximar das colegas, mas ainda não a viam com bons olhos. Provavelmente,
levaria algum tempo para que provasse ser uma boa companhia, e não uma menina
metida de origem abastada.
Ao fim do dia escolar, decidiu não tomar mais atalhos, e
seguiu direto para casa. Trazia uma específica esperança no coração, a qual não
queria admitir para si mesma.
Desta vez, Thomas estava parado no portão de sua
residência, os braços cruzados, como se esperasse alguma coisa. Será
possível?
– Hã... — começou ela, ao passo que o rapaz devagar se voltava em sua direção. Seu rosto se abriu em um sorriso luminoso, e ela sentiu como se algo dentro de si derretesse. O que está acontecendo comigo?
— Boa tarde, Srta Liddell. — Ele parecia realmente alegre.
— Por favor, não me chame assim. Não entendo o que
significa — pediu, um tanto exasperada. — Boa tarde — completou rápido, para não soar deselegante.
Ele riu da mesma maneira doce, como o riso de um menino, e
mais uma vez ela se sentiu desajeitada.
— “Alice”. Se assim prefere. Mas eu sei que não é seu
nome — o rapaz provocou, semicerrando os olhos.
— E eu não acho apropriado um quase estranho tomando
tamanhas intimidades — ela reagiu, antes de pensar. Thomas aparentou
contrição, mas ela prontamente se corrigiu. — Hã... Quero dizer, como sabe
disso? Conhecemos-nos há dois dias, e eu não disse meu nome verdadeiro.
— Ouvi sua mãe lhe chamar ontem. É por isso que sei que
estava atrasada — disse-lhe disse, com um sorriso de desculpas. — Sinto muito se
a ofendi.
— Não se preocupe. — Sacudiu
as mãos, atrapalhada. — Mas, se me permite... — Ela franziu as sobrancelhas. — Por que está sempre por aqui? Digo, próximo da minha casa? — tentou não soar
grosseira.
— Eu... Moro perto de você. Foram meus parentes que
venderam aos seus parentes esta casa, aliás. Quis apenas vir aqui para conhecer
os novos proprietários. — Ele deu um sorriso sem mostrar os dentes, esclarecendo suas dúvidas.
— Ah. — Hannah acalmou-se. Aquilo fazia sentido. — Sim,
é claro. Sinto muito pela desconfiança.
— Imagine, perdoe-me pela intromissão. — Thomas virou de costas, e ia
seguir seu caminho, mas Hannah correu em direção a ele.
— Não quer realmente ficar para jantar, desta vez? — convidou-o novamente, e ele a fitou, contemplativo. Outra vez, ela teve plena
ciência de que ruborizava à visão daqueles olhos de espelho d’água.
— Por que não me acompanha para um passeio? — sugeriu o rapaz. — Avise seus pais, é claro. Não os deixe preocupados. — Hannah sentiu-se
envergonhada. Naquele momento, mais do que nunca, gostaria de parecer uma
mulher madura.
Após ter avisado seus pais que sairia para caminhar — sem
mencionar a companhia de Thomas — Hannah foi de encontro a ele, que
continuava parado no mesmo lugar. O rapaz sorriu polidamente ao vê-la, e ela sentiu seu coração pulsar mais rápido. Não acho que aguentarei este ritmo.
Eles caminharam ao longo da estrada, de volta ao centro da
cidade, e Thomas mostrou-lhe os pontos principais de Bude. Explicou-lhe que o nome
original da cidade era Porthbud pela influência celta que havia no local, e
lhe contou que ele, por sua vez, descendia de irlandeses, antes praticantes de tal
cultura. Ela desejava lhe falar sobre suas origens também, mas não reuniu
coragem para tanto.
Hannah ficou surpreendida com tamanho conhecimento que o rapaz
detinha sobre a história e geografia do local. Sabia as origens de cada ponto
mais conhecido, as linhagens que viveram em Bude’s Castle, e os distintos
acidentes geográficos da região. Quando estava para escurecer, ele a acompanhou de
volta para casa, ainda relatando mais detalhes pelo caminho.
Ao deixá-la na frente de seu portão, se despediu com um
floreio de mão, lhe dando mais um sorriso galante. Hannah se sentia pasma por como isso
lhe era tão natural, quando, para a maioria dos homens, eram gestos que soavam um tanto
falsos e atuados.
— Quantos anos você tem? — ela perguntou bruscamente,
antes que a deixasse só.
— Ah... Vinte e um anos de idade — respondeu,
sorrindo gentil.
Ela se percebeu enrubescida. Sete anos mais velho! Mas
não era tão estranho assim... Seus pais tinham uma diferença de 12 anos. O que você
está pensando, garota?! Repreendeu-se. Sua intuição,
porém, lhe dizia que aquilo não era completamente verdade.
— E você, Senhorita... Senhorita Alice? — Thomas parecia controlar o riso.
— Por que está rindo? — A garota se importou com aquilo. Não gostaria de fazer papel de boba, não na frente dele.
— Porque você é simplesmente adorável. — O rapaz parou de
sorrir e a mirou, finalmente sério. Hannah arregalou os olhos, atestando-se imobilizada. Uma mecha dos seus cabelos caiu em seu rosto, quando ela abaixou a
cabeça, tímida, e ela sentiu, mais do que viu, os dedos de Thomas se aproximarem
para colocar seus fios no lugar. Ele ajeitou a mecha atrás da orelha esquerda da garota,
e Hannah sentiu o mesmo forte arrepio de quando o avistara pela primeira vez.
Seu toque era gelado, ao contrário do que denunciavam seus
olhos amáveis.
— Eu... Muito obrigada — respondeu, incapaz de encontrar melhores palavras.
— Eu ficaria encantado em saber quantos anos a senhorita tem — continuou Thomas, dessa vez sorrindo com sua cortesia característica.
— Tenho dezessete anos — mentiu. Ele franziu a
sobrancelha e sorriu torto, como se duvidasse.
— Dezesseis... — a garota se corrigiu, mas o rapaz levantou uma
sobrancelha, ainda cético.
— Está certo, tenho catorze anos! Está feliz agora? — Hannah confessou a verdade.
Ele riu. — É mesmo muito meiga. Senhorita Liddell. — Algo
faiscou em seu olhar, e, outra vez, Hannah sentiu certo efeito tórrido percorrer-lhe as entranhas.
— Pare de me chamar assim! — reclamou, irritada, mas Thomas apenas riu com mais gosto.
— Vou lhe deixar em paz agora. — Sorridente, o rapaz mais uma vez
se despediu. — Uma última informação que creio que gostará. Tem ideia do nome
de sua propriedade? — questionou-a, divertido, ao passo que a garota meneou a cabeça, em
negativa.
— Chama-se "Os Jardins de Salley". Em homenagem à música
folclórica de meus antepassados, "Pelos Jardins de Salley". É por
isso que há esse nó tríplice acima do portão. — Apontou para uma figura
geométrica que parecia a união de três triângulos arredondados, com um círculo central. — Sabe o que significa este símbolo?
Ela novamente respondeu que não sabia.
— Então é uma história para um próximo dia. Boa noite, Srta Liddell. — Thomas riu da expressão irritada que “Alice” fez ao ouvir tal apelido, e pôs-se a caminhar rapidamente para longe.
— Então é uma história para um próximo dia. Boa noite, Srta Liddell. — Thomas riu da expressão irritada que “Alice” fez ao ouvir tal apelido, e pôs-se a caminhar rapidamente para longe.
Assim, Hannah andou pelos jardins de Salley, de volta
para casa. O fardo da dor que sentia pelos seus parentes ainda pesava em seu
peito, mas, agora, era acompanhado de um outro sentimento, diferente. Pulsante.
Os dias se passaram, e Hannah seguia a mesma rotina. Por
vezes, recebia a visita de Thomas junto ao seu portão, o que muito a
alegrava. Distrair-se na companhia do rapaz era muito mais agradável do que se perder em seus
devaneios solitários. A cada novo dia, aprendia mais e mais sobre a cidade, e
sobre a história da Inglaterra.
Assim, meses se passaram, e Thomas até a ajudava com as lições do colégio sobre a história e a geografia do país. Ele era muito culto, parecia até ter nascido em outra época.
Assim, meses se passaram, e Thomas até a ajudava com as lições do colégio sobre a história e a geografia do país. Ele era muito culto, parecia até ter nascido em outra época.
Em um determinado dia, ambos estavam recostados à sombra de um
grande carvalho, em um campo de flores silvestres à beira da estrada, alguns
quilômetros de distância da casa de Hannah. Ela soprava um dente-de-leão,
admirando as pequenas flores que voavam pelo seu ato.
— Pode me cantar a música da minha casa? — Hannah se sentou com melhor postura e olhou para Thomas, sorrindo. Agora que tinham mais intimidade ela se sentia mais confortável em sua companhia.
— Como? — fitou-a em retorno, sem compreender. "Alice" riu e esclareceu:
— “Pelos Jardins de Salley”! A música que você comentou, no primeiro dia que passeamos
juntos.
— Você lembra — Thomas constatou e sorriu carinhosamente. Depois, levantou a
mão, como se fosse acariciá-la. Estranhamente, parou no meio do movimento. Hannah franziu a
testa.
— Sim... É claro que lembro — respondeu a garota, sem entender
o gesto e o comentário. — Pode cantar? Por favoor? — pediu, enunciando as sílabas. Bateu os
cílios e abriu um largo sorriso.
O rapaz riu do gesto infantil. — Tudo bem, Srta Liddell. — A menina fechou a expressão, e seu amigo sorriu novamente. — Mas não me culpe pela sua posterior
dor de ouvidos.
Thomas desviou o olhar para a grama, e logo se pôs a cantar.
Sua voz era linda, afinada e doce, meiga como a expressão típica dos seus olhos
de espelho d’água.
— “Down by the salley gardens my love and I did meet… — O rapaz moveu os olhos lentamente para o rosto de Hannah, que sentiu suas bochechas arderem.
— ...She passed the salley gardens with little snow-white
feet. — Thomas fez cócegas com seu toque gelado nos pés descalços de Hannah. A menina riu e corou, envergonhada.
— She bid me take love easy, as
the leaves grow on the tree; but I, being young and foolish, with her did not
agree…
Hannah sentiu profunda tristeza tocar seu coração. A
canção era linda, emocionante, mas, a garota percebia, havia um significado maior
naquelas palavras...
— In a field by the river my love
and I did stand, and on my leaning shoulder she placed her snow-white hand. — "Alice" desviou o olhar, sabendo que deveria estar parecendo um morango de tão
vermelha.
— She bid me take life easy, as
the grass grows on the weirs; but I was young and foolish, and now am full of
tears… — Thomas terminou a canção e soltou um suspiro, retornando a olhar o
horizonte.
Hannah começava a entender o que os versos
significavam. Mas será? Não conseguia acreditar, seria muita
petulância, pretensão em demasia...
Ela resolveu testá-lo. Levantou sua mão, corajosamente, e
tentou tocar o ombro mais próximo de Thomas.
— Tom...
No momento em que iria tocá-lo, ele se desviou bruscamente de sua mão.
No momento em que iria tocá-lo, ele se desviou bruscamente de sua mão.
Hannah engoliu em seco, e sentiu seu coração
apertar.
Thomas parecia exasperado, e se levantou abruptamente. — Está tarde. Tenho de levá-la para casa. Vamos. — Sua voz estava
séria demais, muito diferente do tom habitual.
Ela sentiu seus lábios tremerem, mas não passaria vergonha
na frente dele. Seguiu-o silenciosa, e se despediu polidamente. No jantar,
fingiu, como havia fingido, que nem sequer sabia de sua existência, mas, em seu
quarto, finalmente pronta para deitar, se deixou sucumbir. O que ele
está fazendo comigo?
Sentiu-se tola por acreditar que ele havia se apaixonado
por ela. Era apenas uma garotinha boba, que o admirava, quase o venerava;
obviamente, deveria ser bem divertido para ele. Ele provavelmente se
interessava por outro tipo de mulheres, e, talvez, poderia já ter uma noiva...
Hannah chorou, e, pela primeira vez em meses, voltou a ter
seus pesadelos de guerra. Sonhou que era jogada em uma fossa, junto a vários cadáveres acinzentados, e o céu acima dela era de um cinza-chumbo,
anunciando tempestade. Sentia-se morrer lentamente, mas, em seu derradeiro
momento, viu um vulto se aproximar da borda do buraco onde se encontrava.
Thomas estava vestido com um uniforme de guerra, e a olhava com desprezo.
No dia seguinte, a menina acordou com olheiras, e passou a
maior parte do tempo quieta, perdida em pensamentos. Ouviu na escola as
histórias sobre os bombardeios em diversas cidades inglesas, incluindo Londres, quase indiferente.
Thomas não a visitou nos dias que se seguiram. Em uma
tarde de sábado, conversando com seu pai, ela lhe perguntou sobre os
Williams, a família que lhes vendera a propriedade.
— Como soube disso? — o senhor Wasser estranhou.
— Olhei os papéis da transação — a garota mentiu. — Pai,
conhece-os? — insistiu.
Ludwig ajeitou os óculos de leitura, e voltou o olhar para
seu livro. — Trocamos algumas palavras. Tratamos com os Williams mais novos, os
remanescentes. Não lhe recomendaria se aproximar muito — censurou-a.
— Por que diz isso? — A garota franziu as sobrancelhas, e sentiu
seu coração pulsar de ansiedade.
— O filho deles lutou na Primeira Guerra Mundial. Ao lado
da Tríplice Entente, é claro. — Ele virou a página do livro. — Não são muito
simpáticos aos alemães — falou, rancoroso.
— Hoje em dia, eu compreenderia perfeitamente — a jovem admitiu.
Ele ralhou com a filha pela insubordinação. — Jamais diga
isso na minha frente de novo! – seu pai quase rosnou. — Você nasceu alemã, e não há
governo assassino algum que mude isso!
— Não, meu pai! Eu nasci judia, e a culpa por
isso é sua! — a menina gritou, e se arrependeu logo depois. O rosto do
pai se desfez em uma máscara de dor, e ele a puxou pelo braço, tirando seu
cinto. Castigou-a com uma surra, e disse uma simples frase, a dor evidente em
cada palavra. Hannah chorou a cada batida, o pesar se desfazendo em lágrimas.
— Vá para o seu quarto e não saia até amanhã. — Ludwig se ergueu e bateu a porta da sala de estar.
Hannah subiu as escadas, sentindo apenas a perna, onde
apanhara do pai, pulsando de dor. Conseguia ver o rosto dos seus familiares, e os imaginava nas mais horrendas situações.
Jogou-se na cama, e chorou até anoitecer.
Quando levantou o rosto do travesseiro, seu olhar foi
novamente atraído para a tábua semi-solta no piso. Resolveu investigá-la, e
dirigiu-se até onde ela estava.
Retirou a tábua com certa facilidade, e, surpresa, reparou
no conteúdo. Havia uma caixinha de música em forma de um trevo de três folhas, e um colar com um pingente delicado, aparentemente de ouro, do mesmo nó
tríplice que havia em cima do portão de ferro da casa.
Hannah guardou o colar dentro de uma gaveta da cômoda,
escondendo-o debaixo de algumas de suas roupas, e abriu a janela da pequena
sacada do quarto. Respirou o ar noturno, sentindo o vento que suspirava
tanto quanto ela. Logo depois, se deitou mais uma vez em sua cama, cobrindo seu corpo e dispondo a
caixinha de música ao lado, acima de seu criado-mudo.
Deu corda, e esperou a música tocar. Era um som delicado,
como um minúsculo piano, tocando uma melodia que lhe parecia conhecida...
Naquela noite, a menina sonhou com verdes jardins, uma grande árvore
na beira de um rio, e Thomas a admirando com seus olhos amorosos.
Na outra manhã, ela resolvera ir até a casa dos
Williams. Não interessava a opinião de seu pai, embora estivesse profundamente
arrependida do que dissera. Poderia pedir desculpas depois. Pensava, enquanto
seguia a passos firmes até aquela propriedade, que vivera suficiente dor
para ter amadurecido. Podia fazer algumas escolhas por conta própria.
Ao finalmente chegar na frente da casa, ela reuniu coragem
e tocou a campainha. Parecia uma casa simples, para uma família que, dizia
Thomas, fora por um tempo tão abastada.
Uma mulher idosa e baixa, com olhos parecidos aos de Tom,
cumprimentou Hannah, lhe perguntando o que desejava.
— Eu... Ah... Estou encantada, senhora... — Não sabia o nome
da mulher.
— Rebecca Williams. — A idosa delicadamente sorriu, solícita.
— Senhora Williams, é um prazer. Poderia falar com o Thomas,
por favor? — A menina retribuiu o sorriso, nervosa.
— É claro. — A pequena senhora a guiou até a sala de
visitas. — Thomas! A senhorita Schmidt gostaria de ter com você! — avisava a
mulher.
Um homem comprido como o Tom que ela conhecia se levantou de uma poltrona e foi até ela, apertando sua mão. — Está bem, querida? Algum
problema com a casa? — Ele sorriu tristonho.
— Hã... Na verdade... Este não é o Thomas que eu procuro — disse, mantendo o sorriso atrapalhado.
Nada prepararia Hannah para o choque que levaria em
seguida.
O casal simultaneamente modificou suas expressões. Pareciam
alarmados, terrivelmente ofendidos com a sugestão da garota.
— Como ousa? — a senhora falou, seu rosto tão triste
quanto o de seu pai na noite anterior.
— Você acha que isso é algum tipo de brincadeira? — o homem disse, rispidamente, enquanto a levava para fora de sua casa. — Não
venha aqui novamente, ou não serei tão educado. — Expulsou-a, e bateu a porta
na cara da menina.
Ela não entendera absolutamente nada.
Aparvalhada, a menina seguiu caminho, indo em direção à praia.
Caminhava pela vegetação rasteira, pensando no que fizera para ofendê-los
tanto, quando foi surpreendida outra vez.
— Bom dia, senhorita Wasser. — Thomas aproximava-se dela,
vindo da areia da praia.
Ela não respondeu prontamente. Não estava preparada para
encontrá-lo naquele momento, e ainda estava magoada por seus sumiços.
— Vejo que já conheceu meus pais. — O rapaz deu um sorriso fraco, tristonho.
— E não entendi nada do que aconteceu — ela retrucou ríspida. — Pode me explicar o motivo de você simplesmente sumir? E por que
eles me trataram daquela forma? — Ela o fuzilava com o olhar, exigindo respostas, cheia
de bravura.
— Há uma explicação plausível... Mas eu preferiria poder
ter te poupado disso. — Parecia triste e arrependido, e Hannah não aguentava
mais ver tantas pessoas com pesar ao rosto.
— Por favor, me conte o que está acontecendo! — Ela sentiu
seus lábios tremerem, e, dessa vez, sucumbiu ao choro. — Você não tem ideia de
como estou sozinha... — confessou, se sentindo infantil, mas
não suportava continuar a se reprimir.
Thomas parecia genuinamente tocado pela sua dor.
Aproximou-se dela, quase o suficiente para enlaçá-la, como se sentisse urgência de consolá-la.
— Eu imploro que me perdoe.
Ele se abaixou e a abraçou.
Ele se abaixou e a abraçou.
Hannah havia ansiado por isso por meses. Fechou os olhos,
e se entregou ao abraço, feliz por finalmente poder tocá-lo.
Porém, ao tentar responder ao abraço de Thomas, com sua pele
incrivelmente gelada, ela acabou por abraçar a si mesma. Seus braços
atravessaram as costas do homem, como se ele não fosse feito de matéria, como
se não existisse...
— O quê... O que você é? — Ela cambaleou para trás,
respirando com dificuldade.
— Eu gostaria de lhe mostrar. — Thomas, pesaroso,
aproximou-se dela, e pôs alguns dedos em seu rosto. Como se poder realmente tocá-la, deixá-la sentir sua própria pele, o calor que seus dedos poderiam ter, fosse
a coisa que mais desejasse.
O rapaz tocou sua mão, e ela apenas sentiu frio, eriçando seus
pelos. Thomas olhou triste para suas mãos e pediu para que ela andasse ao seu
lado.
Hannah o seguiu, sentindo que dividiam iguais feições melancólicas. Passaram por densos arbustos, e a garota percebeu que seu amigo a levava de
encontro a um pântano.
— Eu lutei pelo meu país durante a Primeira Guerra
Mundial — ele começou. — Voltei, triunfante, em um navio que desembarcou em
Londres. Porém, quando finalmente cheguei a Bude, as coisas não se deram como eu
planejava.
— Cheguei sozinho, e, enquanto caminhava pela praia,
ansioso para ver meus pais, encontrei com um grupo de alemães que se escondia
em uma falésia. Provavelmente eram náufragos de um barco em missão, e tentavam
sair do país desapercebidos. — O jovem homem franzia o rosto tristemente. — Quando me
viram, voltando com medalhas, meu uniforme do exército inglês... Eu tinha
apenas vinte e um anos — o rapaz suspirou.
— Eu vou poupá-la de maiores detalhes. Deixarei que veja
por si mesma. — Thomas afastou um arbusto, e, a essa altura, Hannah já estava
com água lodosa até a altura do quadril.
Olhou para baixo, e vislumbrou uma mão, saindo de um
uniforme do exército britânico. Ela engoliu em seco, enquanto Thomas puxava o
próprio cadáver, e o revelava para Hannah. Ela levou as mãos à boca, em horror.
Era tão cinza quanto os cadáveres de seus sonhos, mas a
água do pântano evitou que apodrecesse rápido. Era e não era Thomas, não como o
conhecia.
Ela desviou rapidamente o olhar, cobrindo o rosto com as
mãos. — Por que você está fazendo isso comigo?! — gritou, desesperada. Não
entendia exatamente o que o rapaz era, mas não aguentava mais. Não podia lidar com mais mortes, horror, desolação.
— Porque eu preciso da sua ajuda. — Thomas deixou o
cadáver novamente abaixo d'água.
Tirou as mãos do rosto, e ergueu os olhos para ele. — Como? — Suas íris marejadas encontravam as também marinhas íris azuis de Thomas, querendo,
mais do que nunca, poder tocá-lo de verdade.
— Eu preciso que mostre meu corpo aos meus pais — pediu, cheio de pesar. — Não por mim. Por eles.
Ela ainda não entendia, então o rapaz continuou. — Eu sou um
fantasma, Hannah — falou, lúgubre e triste.
Era por isso que ele sumia e aparecia com tanta
facilidade. Por isso tinha tantos conhecimentos, e mantinha seu porte do começo
do século. Por isso sua roupa era sempre o mesmo traje formal, e evitava
tocá-la. Ele não tinha matéria, não como a garota. Era apenas... Essência.
— Para meu espírito ter paz, eu preciso que você acalme o
coração dos meus pais. Eles perderam tudo, depois que eu morri. Desistiram de
trabalhar. Estão cheios de dívidas. Minha mãe passa horas no cais, pensando se
poderia se afogar e se livrar da dor...
Hannah estremeceu, se lembrando de si mesma. — Eu não
conseguiria carregá-lo até lá — a garota balbuciou.
— Não Hannah, não quero que faça isso, de maneira alguma! — Thomas parecia horrorizado. — Preciso que os traga até aqui. Pegue, isso vai comprovar que sou eu. — Tirou uma carta do bolso de seu uniforme, completamente
molhada, com a caligrafia e assinatura de sua mãe. A letra ainda estava
legível.
— Mas... — a menina hesitou. — Por que... Por que eu? — Em sua
pergunta, haviam múltiplos sentidos escondidos.
— Porque só você me viu, desde... Desde 1918. Não reparou
em como meus pais são velhos? Meus avós estão mortos há muito tempo, eu
acompanhei, de perto e de longe, o enterro de cada um deles... — confidenciou,
repleto de dor. Hannah queria ainda mais abraçá-lo, poder consolá-lo de alguma
maneira. — E eu não entendo porque você. Mas isso sempre me deixou muito feliz. — Ele deu um pequeno sorriso, quase imperceptível, como o de um garoto triste e
solitário.
Hannah baixou os olhos para a água pantanosa, ainda tonta
por tantas revelações.
— Por favor... — Ele a puxou, com uma rapidez
sobrenatural, para longe daquele túmulo. Levou-a rapidamente até a vegetação
rasteira, seca, e ela levantou o rosto para encará-lo. A luz do sol subia alta,
e banhava os dourados cabelos de Thomas, revelando o brilho de seu espelho
d'água, a luz que a encantara.
— Eu amo você — o rapaz finalmente disse, com todas as
letras. Seus olhos pareciam enxergá-la com uma clareza ainda inédita, e a menina não poderia desviar de seu olhar.
Era como a correnteza do rio, que puxa os incautos e os leva a seguir seu
fluxo, sem defesa. Para Hannah, aquilo significou sua salvação.
— Eu sempre amei você. — Ela se inclinou, e viu,
satisfeita, que ele portava o sorriso mais largo e sincero que já havia visto
em seu rosto, repleto de luz, como o brilho d’água de seu olhar. Ele se curvou e finalmente a beijou.
Poderia não estar morta, mas sentiu que viveu a
eternidade.
Algum tempo depois, Hannah voltou até a casa dos pais de
Thomas, e, após muitas deliberações, conseguiu lhes entregar a carta.
Incrédulos, eles seguiram a menina, que, acompanhada por Tom, os levou até onde
jazia seu corpo.
Ela nunca vira cena mais emocionante. Os pais do rapaz entraram
no pântano sem pestanejar, ao verem o braço que ficava visível acima da
superfície da água. Abraçaram o corpo do falecido jovem, ambos chorando, soluçando como
crianças, unidos, finalmente. Thomas os abraçava também, embora eles não
conseguissem vê-lo, e sua expressão estava enfim calma, tranquila... Em paz.
Hannah chorou junto a eles, tocada por aquela cena, e pelo
amor que transbordava daquela família.
Depois de um tempo, despediu-se, e a convidaram para o
funeral de seu filho. Ela estranhava o fato de ser a única que ainda conseguia
ter contato com o rapaz, e se perguntava se seria uma boa ideia comparecer a
tal cerimônia. Não lhe fazia muito sentido.
Assim como não lhe fazia sentido algum estar perdidamente
apaixonada por um fantasma.
Thomas caminhou com ela de volta para sua casa, enquanto a menina tentava limpar o melhor que podia seu vestido e suas botas. Quando chegaram
em frente ao portão de ferro, ela o abriu para que entrassem, mas o rapaz continuou
parado.
— Acho que é hora de nos despedirmos, Hannah. — Thomas sorriu
tristemente.
Ela não entendia sua expressão. Fizera o que ele havia
pedido, e o rapaz parecia, agora, tão mais calmo...
— Pode ficar mais um pouco. É domingo. — A menina sorriu.
— Eu sei. Todos os dias são domingo, para mim — o jovem homem tentou fazer graça. — Mas não foi isso que eu quis dizer. — Fitou-a,
sério.
Com um choque de realidade, a garota pareceu perceber. — Você
está querendo dizer que... — Sua voz saiu trêmula e preocupada.
— Não acho que nos veremos novamente. — Thomas não sorria.
A menina sentiu seu coração palpitar sem parar, suas mãos
suando frio. — M-mas...
— O que me prendia a este mundo, nesta... Existência — falou, um tanto angustiado — Era a dor de meus pais. Eles não me deixavam
seguir em frente. Agora que finalmente me encontraram, poderei seguir. Adiante — o rapaz tentava explicar, mas, apesar de calmo, não parecia tão satisfeito.
Hannah sentiu que iria desabar. Mas tinha de ser
forte. — Eu... Eu entendo — a garota tentou expressar por aquelas poucas palavras tudo o que sentia, mas
não seria capaz.
— Minha linda menina. — Segurou o rosto de Hannah com
as mãos, e, novamente, ela apenas sentiu frio junto a uma sensação quente, em
contrapartida, subindo pelo seu peito, tomando-a por completo. — Não sabe como
eu queria ter te conhecido antes... Antes de... — Ele parou no meio da frase, e
a puxou para si, embora ela não pudesse retribuir o abraço.
— Eu sempre vou amar você.
Soltou-a, e desvaneceu.
Soltou-a, e desvaneceu.
Hannah ficou minutos, talvez horas, a encarar o ar diante
de si. Momentos antes, ali estava o rapaz que ela amava, com o qual
passou horas, durante meses, conversando, dividindo seu tempo, sua afeição e,
sonhava ela, seu calor... O homem com o qual queria passar o resto da vida.
Embora ele estivesse morto.
Ela subiu até seu quarto, silenciosa em seu pranto
contido, perdida em pensamentos. Se Thomas se fora, se ele desaparecera deste
mundo, como poderia vê-lo outra vez?
A resposta era macabra, funesta. Se quisesse estar ao seu
lado... Teria de morrer também.
Ela se atirou em seus travesseiros, abafando seus lamentos. Por que tudo aquilo acontecera? Por que tinha de carregar tanta dor?
Lembrou-se de Tom cantando, seus doces versos embalando
sua dor, assombrando-a carinhosamente: “Down by the salley gardens my love and I did
meet…"
— Thomas... — ela sussurrou.
— Thomas... — ela sussurrou.
"She passed the salley gardens
with little snow-white feet. She bid me take love easy, as the leaves grow on
the tree; But I, being young and foolish, with her did not agree…"
— ...Thomas, por favor... — implorava.
— ...Thomas, por favor... — implorava.
"In a field by the river my love
and I did stand, and on my leaning shoulder she placed her snow-white
hand. She bid me take life easy, as the grass grows on the weirs; but I
was young and foolish, and now am full of tears…"
Ela se levantou, e colocou a caixinha para tocar. Já sabia: era a
mesma canção. O acalanto de Thomas, a música que embalava seu
coração. Sua primeira e incomparavelmente triste declaração.
Hannah caminhou em direção a sacada, e não pensava em mais
nada. Apenas no par de olhos azuis de espelho d'água, no qual sonhava se
afogar.
Pé ante pé, ela chegava mais perto da bancada. Bastava
apenas levantar as pernas, e o vento cuidaria do resto...
— Não faça isso. — Hannah olhou para trás, incrédula com a
voz que ouvia. Thomas estava sentado em sua cama, sua mão acima da
caixinha de onde tocava a canção, a fitando preocupado. Seu semblante antes
calmo agora estava sério e aturdido.
— Thomas! — Ela correu em sua direção, desejando pular em
cima dele. — Você... Voltou? — a garota disse, feliz.
— Eu não pude ir. — O jovem abaixou os olhos, sorumbático.
— Mas... O que houve? — O coração dela acelerou outra vez.
— Você não me deixou ir — respondeu, honesto, e
Hannah sentiu seu estômago revirar. — Eu pude ouvir cada palavra sua... Ouvi
seus pensamentos. — Thomas parecia sentir tanta dor quanto ela.
"Alice" sentou-se ao seu lado, e ele colocou a
mão acima da dela, tentando apertar carinhosamente seus dedos. — Eu preciso que
você entenda. Eu te amo, amo muito, mas não posso ficar. Isso... Isso é apenas
um reflexo do que eu fui. Uma imagem. Não pertenço a este lugar. — O rapaz deu um sorriso suave e triste.
— Você pertence ao meu coração — Hannah sussurrou,
sincera, sôfrega, suplicante.
— E você ao meu. — O rapaz passou a mão pelos cabelos dela,
que sentia seus olhos umedecerem. — Mas não podemos estar juntos. Não
agora — ele disse, e ela sabia, no fundo de sua alma, serem palavras de uma verdade
inescapável.
— Eu quero viver com você ao meu lado — a menina murmurou, enquanto Thomas continuou a afagá-la.
— Não vou te abandonar. Jamais. Estarei sempre olhando por
você. E, quando chegar a hora, vamos nos reencontrar. Prometo. — Ele sorriu
com sinceridade, e ela não pôde evitar retribuir-lhe o sorriso. — Você não pode
apressar isso, Hannah. Não é certo. Jamais nos encontraríamos, se tirasse sua
própria vida, e meu espírito não teria paz — reiterou, muito sério.
Hannah se manteve silenciosa. Não queria aceitar aquilo,
embora não tivesse escolha.
— Eu não sei o que fez com que apenas você me visse,
senhorita Liddell. — Ela sorriu, lembrando-se do apelido que não entendia. — Eu
gosto de pensar que foi serendipidade. — Thomas também lhe brindou com um sorriso, e seus olhos
brilharam, voltando-se lentamente para perscrutar a alma de Hannah,
hipnotizando seu olhar.
— O que é isso? — perguntou, encantada mais uma vez.
— Serendipidade é quando um evento fortuito ocorre ao
acaso. Como o fato de você vir exatamente para este país, para esta cidade,
para a casa em que eu morava... — Ele abaixou-se e beijou-lhe a testa. — E para
o meu coração.
Hannah fechou os olhos, desejando que aquele momento
durasse para sempre.
— E senhorita Liddell significa apenas o sobrenome de
Alice. A Alice de Lewis Carrol, a quem ele presenteou com o país das
maravilhas. Carrol era consideravelmente mais velho e alguns julgam que ela foi sua paixão platônica. — "Alice" sorriu, finalmente compreendendo.
— Eu prometo que, quando chegar a hora, levarei você para
lá. — Encarou-a cheio de afeto e amor, e finalmente se levantou.
— Isso é um adeus temporário. Mas, antes disso... Onde
você escondeu o colar do nó tríplice? — O rapaz sorriu, seus olhos brilhando astutos.
Hannah sorriu sem jeito, envergonhada, e abriu a gaveta, encontrando
o cordão. Thomas gentilmente o retirou de suas mãos, e prendeu-o ao redor do pescoço da menina.
— Este pingente, um símbolo de proteção, significa
diversas coisas, dentro da cultura celta. Pode ser a terra, a água e o ar; o
nascimento, a morte e a ressurreição. Mas o meu preferido é, sem dúvidas, o
amor eterno... Sempre firme, resistindo aos anos, incapaz de ser desfeito... — Levantou a mão direita e passou-a pela rosto de Hannah, que fechou os olhos,
ansiando para senti-lo. — E eu o entrego a você, minha
Alice. — Ela novamente sentiu seus olhos se encherem de lágrimas.
Thomas se dirigiu até a bancada. — Por favor, Hannah,
feche os olhos agora — o rapaz pediu com doçura, ao passo que lhe dava um último olhar.
— Eu gostaria que você soubesse que cada minuto de espera,
de amargura e tristeza, sofridos enquanto passei este tempo perdido... Valeu a
pena. — Seus olhos brilharam. — Porque encontrei você. — Seu sorriso meigo
espalhou-se mais uma vez pela face que Hannah tanto amava, e ela sabia que
jamais esqueceria aquela visão.
— Eu sempre vou amar você — ela disse intensamente.
– Eu também — o rapaz repetiu, e a garota fechou os olhos, sorvendo
uma última vez seu olhar de espelho d'água, para, quem sabe, mergulhar
perdidamente em sua imensidão de amor.
Quando abriu os olhos novamente, não viu mais nada. Alguma
coisa em seu coração lhe dizia que ele se fora, para muito longe, além de onde
ela podia alcançar.
Andou até a sacada, e, sentiu, agradecida, uma lufada de
vento vinda de muito longe, do mar, trazendo-lhe o aroma e o entorpecimento da
maresia...
****
A senhora Hannah Schmidt levava seus netos para visitar a
Fundação Thomas Williams Para Vítimas de Guerra, a ONG que fundara e auxiliava
todo o tipo de pessoas, de diversas nacionalidades, que sofreram perdas
por tais conflitos bélicos. Do Holocausto a genocídios africanos, a organização
não via fronteiras, credos, cor ou etnia, um dos maiores sonhos que Hannah tornara real em sua vida, e que acalmava seu coração, tão ferido desde jovem.
Enquanto seus netos caminhavam para a entrada, ela lhes avisou:
— Queridos, a vovó quer passear um pouco sozinha. Encontro
vocês lá dentro. — Os jovens assentiram, e entraram no grande casarão que antes
fora sua moradia.
Hannah caminhou pelos jardins de encanto e mistério, até,
com grande esforço, encontrar o salgueiro que conhecera tão bem anteriormente.
Era mais velho do que ela, mas lá estava, firme e forte.
Ela se sentou à sua sombra, e pôs-se a cantarolar consigo
mesma os versos que jamais esquecera. Quando chegou ao final, estava cansada,
tão cansada... Seus olhos pesaram, e ela não viu mais nada.
A última lembrança que teve foi a de se sentir adormecer.
Finalmente, depois de passada uma vida de tanta dor,
sofrimento e espera, Thomas encontrava-se parado à sua frente, jovem e alegre,
estendendo-lhe a mão. Ela piscou diversas vezes, até finalmente acreditar, e
seus olhos se encheram de lágrimas.
— Oh, Tom... — dizia, chorosa, enquanto olhava para as
próprias mãos, jovens novamente. Estava outra vez com a aparência de catorze anos de idade, como quando o conhecera.
Então é assim que acontece...
— Eu esperei tanto por você — disse, semicerrando os
olhos, também repletos de alegria.
Ela deu-lhe a mão direita, e, finalmente, como tanto
aguardara por toda a vida, enfim pôde tocá-lo. Sentiu sua pele, a textura
de seu corpo, e, assim, comprovou que seu calor não pertencia apenas ao seu doce olhar repleto de amor.
Thomas a levantou e ela pulou em seus braços, também
finalmente em paz. Beijaram-se pelo que poderia ter sido a eternidade, felizes,
completos, apaixonados.
— Bem-vinda, minha Alice — Thomas a saudou, enquanto a levava pelas mãos. — Posso apresentá-la aos Jardins de Salley? — Ele sorria,
meigo, brincalhão, adorável... O homem que ela amava, e que sempre amou.
Estava, finalmente, em seu país das maravilhas. A segunda
chance nos Jardins de Salley, onde o amor era verdadeiro e puro... Eternamente
infinito.
- enviado pela autora -
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