Acalanto - © Clara Pechansky |
O aniversário
No dia dos seus muitíssimos anos, acordou como de costume, emergindo sem susto nem alarma. Ele não estava a seu lado, percebeu sem estender a mão nem abrir os olhos. Algo mais concreto do que tato e visão lhe dizia isso: fazia parte do fluir incessante entre os dois há tantos anos. E lhe dava uma sensação de conforto, saber que tinham essa ligação. Depois abriu os olhos e divisou o quarto, cada detalhe tão familiar, o Buda de madeira sobre a cômoda, a veneziana da sacada entreaberta revelando o parque com árvores escuras brotando no nevoeiro que encobria o gramado. Por cima já havia sol. Aí acendeu-se a luz dentro dela, num misto de comicidade e espanto: Nossa! Hoje é meu aniversário! Quantos anos? Tudo isso? Impossível eu ter vivido tanto! Eu sou sempre a mesma!
Ainda aterrissando do sonho no conforto da preguiça, soube que era aquilo mesmo, e achou graça. E como fazia desde menina bem pequena, como já tinha feito sua avó, e agora fazia uma de suas netas, começou a rir, apertando os olhos. Não ri assim que dá ruga!, reclamava sua mãe num tempo longínquo. A vida lhe pregava uma peça divertida, ou melhor: ela estava pregando uma peça nos outros, fazendo tantos anos e sentindo-se a mesma que, em criança, ria sozinha no escuro quando, ao acordar, lembrava de algo engraçado.
Tinha o dom às vezes incômodo de achar graça das coisas mais disparatadas, em que os outros não viam nada de cômico. Às vezes seu frouxo de riso, inesperado e incontrolável, a fazia levar castigo na sala de aula, ou ser tirada do cinema pela mãe entre risonha e zangada:
— Menina, todo mundo está olhando para a gente, para com isso.
Ela não conseguia parar. Agora conseguiu. Nada de risada, dessas que no meio da noite acordavam o marido, que perguntava com sua voz de sono, Do que você está rindo, sua doidinha?, e voltava a dormir. Suspirou, bocejou, espreguiçou-se, olhou sob o lençol o corpo que fora grande e cheio e agora estava quase magro. Pensou, eu gostava de mim gorda, todo mundo implicava, mas eu era assim. Aquela era eu. Essa de agora quem é, com essa canela fina, esse pé ossudo?
A ideia da idade avançada a fez sorrir de novo. Vamos, menina, é hora de levantar. Saiu da cama, foi até o banheiro onde estavam seus perfumes e potes coloridos, do outro lado da pia os objetos do marido, as duas escovas de dentes no copo azul, doce marca de intimidade. Teve de se apoiar na cadeira, na maçaneta da porta, e na pia, mas ficou firme e foi até lá.
Enquanto lavava o rosto, escovava dentes e cabelo, um cabelo ainda basto que prendia na nuca há tantos anos, lembrou que à noite haveria festa. Amigos, filhos, netos e netas, iam fazer uma surpresa que ela, evidentemente, intuíra e alguém acabou confessando. Antecipou a pequena euforia de uma taça de champanha, e se divertiu de novo, lembrando de quando, ainda jovem, visitava uma amiga — mais moça do que ela agora — e as pessoas se espantavam, ninguém tomava uísque com uma velhinha, era chá!
Vestiu o robe azul com cegonhas brancas, comprado numa viagem à China, vinte anos atrás. Ou eram trinta? Fiquei mais bonita, assim magra, pensou. Mas, teimosa, repetiu para si mesma: Porém eu era mais real sendo grandona daquele jeito meu.
Voltou para o quarto, foi até a varanda, aspirou o cheiro de árvores e capim recém-cortado no parque, onde o nevoeiro baixo se desfazia enroscado nos troncos. Fechou os olhos ao sol, sentiu-se feliz. Sol dá câncer de pele, vovó, na sua idade é veneno!, diria a neta médica. E ela iria responder, filha, na minha idade, não tem mais importância — e diria isso sem nenhuma amargura, achando apenas natural. Achando graça. Tudo tão simples. Por que as pessoas colocavam a felicidade numa viagem, num monte de dinheiro, num belo corpo, em sucesso profissional? Felicidade estava disponível ali tão perto, na manhã diante da varanda. No marido preparando o café, logo ele entraria no quarto com a bandeja, café, fruta e uma flor. Ela gostava de ser mimada, e às vezes ele gostava de a mimar.
Sentindo-se um pouco cansada, e antecipando o dia agitado, voltou ao quarto e deitou-se em cima da coberta antes de começar a se vestir. Embora mais frágil, estava numa plenitude singular. O corpo já não a carregava como antes. Custava levantar-se de uma cadeira, às vezes para caminhar usava uma bengala com castão em forma de sapo, um sapo simpático, ou outra de corvo, que as crianças adoravam, é bengala de bruxa, vovó.
— Claro, vocês não acreditam que eu sou bruxa?
Não tinha mais o velho ímpeto de se mover, cada dia mais gostava de escutar o vento, a chuva, os passos do homem amado no corredor, a chave dele na porta do apartamento. Cada dia gostava mais de olhar as árvores com seus infinitos tons verdes. Encantava-se com as visitas dos netos e agora bisnetos, a correria das crianças, a atenção vagamente preocupada dos filhos. Deviam pensar, está tão velhinha, quanto tempo ainda a teremos conosco?
Agora, por exemplo, queria deitar-se outra vez um pouco e ficar pensando em todas as coisas boas que a vida lhe dera, maiores do que as perdas que tanto receara desde menina e que a tinham feito sofrer duramente. Fora acompanhada pela sombra do medo de perder tudo que amava — e amava tantas coisas. Na alternância entre felicidade e dores, a amargura não era sua marca e suas nostalgias agora não eram tristes. Antes, pensava: como era bom o cheiro da casa de meus pais, como era encantado aquele jardim, como afinal eu me sentia protegida. E amada, talvez fosse isso, sempre se sentira amada. E sempre pudera amar. Essa era a luz permanente, maior que todas as sombras.
Refletindo nessas coisas, deparou-se com aquele objeto no meio do quarto. Não ficou muito surpresa. Sentiu curiosidade pela esfera translúcida, uma gelatina do tamanho do mundo, ali mesmo no seu quarto, feito uma bolha de sabão colorida. Não teve medo nem susto, apenas encantamento. Era um presente para o seu dia? Como não a tinha visto antes?
Saiu da cama e sentou-se no chão. Estava mais ágil outra vez. Encostou o ouvido na esfera, que era secreta e viva. Isso é um mistério, pensou. Tudo é muito misterioso, ela sempre tinha achado isso: nascer, viver, ter de morrer... ou mais simples do que se imaginava, e um dia a gente haveria de descobrir. Ainda vestida como estava, desalinhada como não era seu jeito — mas com pressa de entender aquilo —, encolheu as pernas, joelhos junto ao rosto. Tocando a esfera com a ponta dos dedos, encostou nela o ouvido e ficou à escuta. Lá dentro girava um rumor de mar, de muitos mares. Estranho, pensou, eu nem gostava tanto do mar. Mas perguntou em voz baixa sem de verdade esperar resposta, embora soubesse que a resposta estava ali dentro:
— Onde estão todas as coisas que amei e perdi ou deixei, todas as pessoas?
Encostou a boca na grande bolha que estremecia ao ser tocada, e perguntou, nítido, mas baixinho e devagar:
— Vocês estão aí?
Então escutou: vozes vozes vozes falando falando falando, algumas bem familiares; palavras enredando-se em silêncios de conchas sopradas, o mar virando ondas num tempo sem fim. Seria bom estar ali, sem preocupação nem pressa, sem compromissos, cansaço nem dor. Sem medo de perder nada, nunca mais, pois os que tinha perdido com tanta dor seriam reencontrados. Era só escutar aquelas vozes como folhas, como gotas, como risos. Ou eram silêncios? Calar ou falar ali dentro era a mesma coisa. Que alívio, pensou, nunca mais haver mal-entendidos.
Com a ponta dos dedos abriu um buraquinho na bolha infinita, e formou-se uma fenda. Sem grande esforço, empurrando cabeça, braços, ombros, finalmente escorregou como se nadasse, e mergulhou naquele outro mar. Enquanto deslizava, ainda perguntou:
— E agora eu vou nascer?
Quando o marido a encontrou, deitada de lado sobre as cobertas remexidas, robe azul mostrando o pijama com rendas, porque mesmo na intimidade detestava coisas feias, não parecia ter sofrido, nem parecia dormir. Parecia contemplar algo bem próximo: as pálpebras entreabertas, a boca preparada para um recado muito especial, que já não poderia dar.
No velório disseram as habituais banalidades, tantas vezes falsas: está tão bem, parece dormir... vejam, ela está sorrindo! Mas não era nada disso, agora. Era, já de olhos cerrados, pura contemplação de outra coisa. Nem ostentava aquele ar que os mortos às vezes têm, de que agora sabem de tudo.
Ela corria leve e livre, numa linguagem sem palavras, num tempo sem medidas, numa luz sem sombra: assombro.
— Luft, Lya, no livro "O silêncio dos amantes". Rio de Janeiro: Record, 2011.
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