©Kathe Kollwitz |
Um artista da fome
O protagonista desta história é um artista que ganha a vida atraindo o público em suas performances públicas de jejum. Para o artista, jejuar significa vida e morte. Durante essas apresentações, que seu empresário não permite que durem mais de quarenta dias, é visto e vigiado por um público implacável, que não entende a natureza artística do ato de ficar sem comer. Seja como for, ele magnetiza a multidão. Quando suas atuações deixam de ser populares, ele se transforma num pobre-diabo num circo de arrabalde. No final, leva o seu desejo de jejuar até o limite, mas nem ele nem os espectadores sabem quantos dias ele fica sem comer. Na realidade, jejua até a morte. Quando está agonizando, admite que o ato de jejuar, para ele, não era apenas fácil, mas também necessário, porque nunca conseguiu encontrar um alimento que o satisfizesse. Para o artista da fome, sua arte é um modo de existir, e a perfeição neste caso — ou seja, o ponto em que fica satisfeito — significa a morte.
O artista esquelético tem sido comparado ao próprio Kafka, que na época em que compôs esta narrativa estava com o organismo minado pela tuberculose da laringe e só podia comer com a maior dificuldade. (Modesto Carone)
Nas últimas décadas o interesse pelos artistas da fome diminuiu bastante. Se antes compensava promover, por conta própria, grandes apresentações desse gênero, hoje isso é completamente impossível. Os tempos eram outros. Antigamente toda a cidade se ocupava com os artistas da fome; a participação aumentava a cada dia de jejum; todo mundo queria ver o jejuador no mínimo uma vez por dia; nos últimos, havia espectadores que ficavam sentados dias inteiros diante da pequena jaula; também à noite se faziam visitas cujo efeito era intensificado pela luz de tochas; nos dias de bom tempo a jaula era levada ao ar livre e o artista mostrado especialmente às crianças. Embora para os adultos ele não passasse de um divertimento, no qual tomavam parte por causa da moda, as crianças olhavam com assombro, de boca aberta, uma segurando a mão da outra por insegurança, aquele homem pálido, de malha escura, as costelas extremamente salientes, que desdenhava até uma cadeira para ficar sentado sobre a palha espalhada no chão: ora ele acenava polidamente com a cabeça, ora respondia com um sorriso forçado às perguntas, esticando o braço pelas grades para que apalpassem sua magreza e mergulhando outra vez dentro de si mesmo, sem se importar com ninguém, nem mesmo com a batida do relógio — tão importante para ele e a única peça que decorava a jaula —, mas fitando o vazio com os olhos semicerrados e bebericando de vez em quando água de um copo minúsculo para umedecer os lábios.
Além dos espectadores que se revezavam, havia ali também vigilantes escolhidos pelo público — em geral, curiosamente, açougueiros, sempre três ao mesmo tempo, e que assumiam a tarefa de observar dia e noite o artista da fome para que ele não se alimentasse por algum método oculto. Mas isso era apenas uma formalidade introduzida para tranquilizar as massas, pois os iniciados sabiam muito bem que o jejuador, durante o período de fome, nunca, em circunstância alguma, mesmo sob coação, comeria alguma coisa, por mínima que fosse: a honra da sua arte o proibia. Sem dúvida nem todo vigilante podia entender isso; havia muitas vezes grupos de vigia que à noite exerciam com muita displicência o seu papel, reunindo-se de propósito num canto distante, onde mergulhavam no jogo de cartas com a intenção manifesta de conceder ao artista da fome um descanso durante o qual, no seu modo de ver, ele podia lançar mão de provisões secretas. Nada atormentava tanto o jejuador quanto esses vigilantes; eles turvavam seu estado de ânimo e tornavam o jejum terrivelmente difícil; às vezes, superando a fraqueza, ele cantava, enquanto tinha forças, no período de vigia, para mostrar às pessoas como era injusto suspeitarem dele. Mas isso pouco ajudava, porque então eles se admiravam da sua destreza para comer até cantando. Para ele eram muito preferíveis os vigilantes que se sentavam bem junto às grades, não se contentavam com a fosca iluminação noturna da sala e faziam incidir sobre o jejuador os raios de lanternas elétricas de bolso que o empresário punha à sua disposição. A luz crua não o incomodava de modo algum; embora não pudesse dormir, sempre cochilava um pouco com qualquer luminosidade e a qualquer hora, mesmo na sala superlotada e barulhenta. Com esses vigilantes estava sempre pronto a passar a noite toda em claro, a trocar gracejos com eles, contar-lhes histórias da sua vida errante e depois escutar as deles — tudo para mantê-los despertos, para poder provar-lhes que não tinha nada comestível na jaula e que jejuava como nenhum deles seria capaz. Mas era de manhã que ficava mais feliz do que nunca, pois então, por sua conta, era servido aos vigilantes um café da manhã suculento, ao qual eles se atiravam com o apetite de homens sadios depois de uma noite de trabalhosa vigia. Na realidade não faltavam pessoas que queriam ver nessa refeição uma influência indevida sobre os vigilantes; mas isso era ir longe demais, e quando perguntavam a elas se porventura queriam assumir a vigilância noturna em nome da causa e sem o café da manhã, elas torciam a cara e conservavam suas suspeitas.
Isso no entanto já fazia parte das suspeitas inerentes à profissão do artista da fome. Ninguém estava em condições de passar todos os dias e noites ininterruptamente a seu lado como vigilante, portanto ninguém era capaz de saber, por observação pessoal, se o jejum fora realmente mantido sem falha e interrupção; só o artista podia saber isso e ser o espectador totalmente satisfeito do próprio jejum. Entretanto ele nunca estava satisfeito por outro motivo: talvez não fosse em virtude do jejum que estivesse tão magro — a tal ponto que muitos, lamentando-se por causa disso, tinham que se afastar das apresentações porque não conseguiam suportar aquela visão — mas sim em virtude da insatisfação consigo mesmo. É que só ele sabia — só ele e nenhum outro iniciado — como era fácil jejuar. Era a coisa mais fácil do mundo. Ele não o ocultava, mas não acreditavam nele; no melhor dos casos consideravam-no modesto, no geral porém um faroleiro ou simples farsante, para quem o jejum era fácil porque ele conhecia a maneira de torná-lo fácil e ainda por cima tinha o topete de o admitir só pela metade. Ele era obrigado a aceitar tudo isso, mas no correr dos anos se acostumou; no entanto a insatisfação o roía por dentro e nem uma única vez, depois de qualquer período de fome — tinham de conceder-lhe esse crédito —, deixara espontaneamente a jaula. O empresário havia fixado em quarenta dias o prazo máximo de jejum, acima disso ele nunca deixava jejuar nem nas grandes cidades do mundo — e isso por um bom motivo. A experiência mostrava que durante quarenta dias era possível espicaçar o interesse de uma cidade através de uma propaganda ativada gradativamente, mas depois disso o público falhava e se podia verificar uma redução substancial da assistência; naturalmente existiam neste ponto pequenas diferenças segundo as cidades e os países, mas como regra quarenta dias eram o período máximo. Sendo assim, no quadragésimo dia eram abertas as portas da jaula coroada de flores, uma plateia entusiasmada enchia o anfiteatro, uma banda militar tocava, dois médicos entravam na jaula para proceder às medições necessárias no artista da fome, os resultados eram anunciados à sala por um megafone e finalmente duas moças, felizes por terem sido as sorteadas, ajudavam o jejuador a sair da jaula, descendo com ele alguns degraus de escada até uma mesinha onde estava servida uma refeição de doente cuidadosamente selecionada. E neste momento o artista da fome sempre resistia. Na verdade colocava voluntariamente os braços ossudos nas mãos das jovens que se curvavam sobre ele, mas não queria se levantar. Por que parar justamente agora, depois de quarenta dias? Ele poderia aguentar ainda muito tempo, um tempo ilimitado; por que suspender agora, quando estava no melhor, isto é, ainda não estava no melhor do jejum? Por que queriam privá-lo da glória de continuar sem comer, de se tornar não só o maior jejuador de todos os tempos — coisa que provavelmente já era — mas também de superar a si mesmo até o inconcebível, uma vez que não sentia limites para a sua capacidade de passar fome? Por que essa multidão, que fingia admirá-lo tanto, tinha tão pouca paciência com ele? Se ele aguentava continuar jejuando, por que ela não suportava isso? Além do mais ele estava cansado, bem assentado sobre a palha e devia endireitar o corpo todo e caminhar até a comida: só de pensar nela sentia náuseas, cuja exteriorização porém ele reprimia a custo só em consideração às damas. E erguia a vista para os olhos das moças na aparência tão amáveis, mas na verdade tão cruéis, e balançava a cabeça excessivamente pesada sobre o pescoço fraco. Mas então acontecia o mesmo de sempre. O empresário chegava e sem dizer uma palavra — a música tornava qualquer discurso impossível — levantava os braços sobre o artista da fome, como se convidasse o céu a contemplar sua obra sobre a palha, este mártir digno de compaixão — que o artista da fome de fato era, mas num sentido muito diferente; agarrava-o pela cintura delgada, com um cuidado exagerado, como se quisesse fazer acreditar que tinha de lidar aqui com uma coisa muito quebradiça e — não sem sacudi-lo um pouco às escondidas, de tal forma que o artista da fome balançava descontrolado de um lado para outro com as pernas e o tronco — entregava-o às jovens que nesse ínterim tinham ficado mortalmente pálidas. Aí então o jejuador tolerava tudo: a cabeça caía sobre o peito, como se tivesse rolado para lá e ficasse ali sem explicação; o corpo estava esvaziado; as pernas, para se sustentarem, apertavam-se uma contra a outra na altura dos joelhos, raspando o chão como se ele não fosse o verdadeiro — este elas ainda procuravam; e o peso inteiro do corpo, embora bem pequeno, recaía sobre uma das damas que, buscando ajuda, com o fôlego entrecortado — não tinha imaginado desse jeito a missão honorífica —, esticava o mais que podia o pescoço para livrar pelo menos o rosto do contato com o artista da fome. Mas depois, como não o conseguisse e a companheira, mais feliz que ela, não ia em seu socorro — contentando-se em transportar, trêmula, a mão do jejuador, esse pequeno feixe de ossos, sob o riso deliciado da sala —, rompia no choro e precisava ser substituída por um criado havia muito tempo preparado para isso. Em seguida vinha a refeição, na qual o empresário fazia o artista da fome engolir alguma coisa durante um semissono de desmaio em meio a uma conversa divertida que devia desviar a atenção do estado do artista; depois era erguido um brinde ao público, supostamente soprado pelo jejuador ao empresário; a orquestra reforçava tudo com uma grande fanfarra, as pessoas se dispersavam e ninguém tinha o direito de ficar insatisfeito com o acontecimento — ninguém a não ser o artista da fome, só ele, sempre.
Assim viveu muitos anos, com pequenas pausas regulares de descanso, num esplendor aparente, respeitado pelo mundo mas, apesar disso, a maior parte do tempo num estado de humor melancólico, que se tornava cada vez mais sombrio porque ninguém conseguia levá-lo a sério. Aliás, com o que poderia ser consolado? O que lhe restava desejar? E se alguma vez uma pessoa bem-intencionada se compadecia dele e queria explicar que sua tristeza provavelmente vinha da fome, podia acontecer — em especial no estágio avançado do jejum — que respondesse com um acesso de fúria e começasse a sacudir as grades como um animal, para susto de todos. Mas para esses estados o empresário dispunha de um castigo que gostava de aplicar. Desculpava o artista perante o público reunido, admitia que só a irritabilidade provocada pelo jejum — facilmente compreensível por pessoas bem alimentadas — tornava perdoável o comportamento do jejuador; nesse contexto acabava se referindo também à afirmação do artista da fome — igualmente merecedora de um esclarecimento — de que poderia jejuar muito mais ainda do que jejuava; elogiava a elevada ambição, a boa vontade, a grande negação de si mesmo que sem dúvida estavam contidas nessa afirmação; mas depois procurava refutá-la, pura e simplesmente, mostrando fotografias — que eram vendidas naquela hora —, pois nas imagens se via o artista da fome, no quadragésimo dia de jejum, quase extinto de inanição. Essa distorção da verdade, de resto bem conhecida, mas sempre enervante, era demais para o jejuador. O que era consequência do encerramento prematuro do jejum se apresentava aqui como sua causa! Era impossível lutar contra essa incompreensão, contra esse mundo de insensatez. Embora sempre tivesse ouvido de boa-fé o empresário, quando as fotografias apareciam ele largava das grades da jaula, às quais estivera ansiosamente grudado, e afundava outra vez na palha, soluçando; e então o público, acalmado, podia aproximar-se e examiná-lo.
Quando as testemunhas se recordavam dessas cenas, alguns anos mais tarde, muitas vezes não compreendiam a si mesmas. Pois nesse meio-tempo interveio a virada já referida; isso aconteceu quase de repente; devia haver motivos mais profundos, mas quem iria se preocupar em descobri-los? Seja como for, o mimado artista da fome se viu um dia abandonado pela multidão ávida de diversão que preferia afluir a outros espetáculos. O empresário percorreu novamente com ele meia Europa para ver se aqui e ali não se reencontrava o antigo interesse; tudo inútil; como se fosse por um acordo secreto, em toda parte havia se estabelecido uma repulsa contra o espetáculo da fome. É evidente que na realidade isso não poderia ter sucedido de repente e recordava-se agora, com atraso, de muitos presságios que na época da embriaguez do triunfo não tinham sido suficientemente respeitados, nem suficientemente reprimidos; mas agora já era tarde demais para fazer alguma coisa. Certamente os bons tempos do jejum um dia também voltariam, mas para os que viviam naquela época isso não era um consolo. O que o artista da fome podia então fazer? Quem tinha sido aclamado por milhares de pessoas não podia exibir-se em barracas nas pequenas feiras, e para adotar outra profissão o artista estava não só muito velho, mas sobretudo entregue com demasiado fanatismo ao jejum. Sendo assim, demitiu o empresário, companheiro de uma carreira incomparável, e se empregou num grande circo; para poupar a própria suscetibilidade, nem olhou as condições do contrato.
Um grande circo, com seus inúmeros homens, animais e aparelhos que sem cessar se recompõem e se completam, pode utilizar qualquer um a qualquer hora, mesmo um artista da fome — naturalmente se as pretensões dele forem modestas; além disso, neste caso particular não era apenas o próprio jejuador a ser engajado, mas também o seu nome antigo e famoso; de fato não se podia dizer, dada a peculiaridade da sua arte — que com o avanço da idade não diminuía —, que o veterano artista, passado o auge da sua capacidade, queria se refugiar num posto tranquilo do circo; pelo contrário, o artista da fome garantia que jejuava tão bem quanto antes, o que era perfeitamente digno de fé; afirmava até que, se o deixassem fazer sua vontade — e isso lhe prometeram logo —, desta vez ia encher o mundo de justificado espanto; uma declaração, contudo, que só provocou um sorriso nos especialistas, cientes do espírito da época que, no seu zelo, o artista da fome facilmente esquecia.
Mas no fundo o jejuador também não deixou de perceber as condições reais e considerou natural que ele não fosse colocado com sua jaula, como número de destaque, no centro do picadeiro, mas sim fora, num lugar aliás bastante acessível, situado perto dos estábulos. Cartazes grandes e coloridos emolduravam a jaula e anunciavam o que podia ser visto nela. Quando o público, nos intervalos do espetáculo, se comprimia junto às estrebarias para visitar os animais, era quase inevitável que passassem diante do artista da fome e parassem um pouco; talvez permanecessem ali por mais tempo se a multidão que vinha atrás, sem entender aquela parada no meio do caminho aos estábulos, não tornasse impossível uma observação mais prolongada e tranquila. Esse também era o motivo pelo qual o jejuador tremia ao pensar naquelas horas de visita, que ele naturalmente desejava como meta da sua vida. Nos primeiros tempos mal podia esperar os intervalos entre as apresentações; encantado, dirigia o olhar para a multidão que se aproximava, até que logo — nem mesmo o autoengano mais pertinaz e quase consciente resistia às experiências — se convenceu de que o objetivo daquelas pessoas era sempre, sem exceção, visitar os estábulos. O mais belo continuava sendo essa visão à distância. Pois assim que os visitantes se aproximavam dele, ensurdeciam-no os gritos e xingamentos dos dois partidos que sem cessar se formavam — o daqueles que queriam vê-lo confortavelmente (tornou-se em breve o mais penoso para o artista da fome), não por compreensão, mas por capricho e teimosia; e o daqueles que queriam ir diretamente às estrebarias. Passada a grande turba, chegavam os retardatários, mas mesmo estes, a quem nada mais impedia de ficar ali quanto tempo quisessem, apertavam o passo e iam direto, quase sem olhar para o lado, a fim de chegar em tempo de ver os animais. E não era um acaso muito frequente que um pai de família viesse com seus filhos, apontasse o dedo para o jejuador, explicasse em detalhe do que se tratava, contasse coisas de anos passados, quando presenciara apresentações semelhantes, mas incomparavelmente mais grandiosas, e as crianças, em vista do seu preparo insuficiente na escola e na vida, continuavam sem entender — o que significava para elas passar fome? — mas traíam no brilho dos seus olhos perscrutadores algo dos novos tempos vindouros e mais clementes. Talvez — dizia às vezes o jejuador a si mesmo — tudo melhorasse um pouco, se o local da sua exibição não estivesse tão perto dos estábulos. Então a escolha seria mais fácil para as pessoas, sem falar que as exalações das estrebarias, a inquietação dos animais à noite, o transporte dos pedaços de carne crua para as feras, os rugidos durante a alimentação o feriam e deprimiam constantemente. Mas ele não ousava comunicar aquilo à direção; pois ainda assim agradecia aos animais a multidão de visitantes, entre os quais se podia encontrar aqui e ali algum destinado a ele. Como saber em que lugar o esconderiam se ele quisesse lembrar aos outros sua existência e com isso — pensando bem — que era apenas um obstáculo no caminho aos estábulos?
De qualquer forma um pequeno obstáculo, um estorvo que se tornava cada vez menor. As pessoas acostumavam-se à estranheza de se querer chamar a atenção para um artista da fome nos tempos atuais e esse hábito lavrava a sentença contra ele. O jejuador podia jejuar tão bem quanto quisesse — e ele o fazia — mas nada mais podia salvá-lo: passavam reto por ele. Tente explicar a alguém a arte do jejum! Não se pode explicá-la para quem não a sente. Os belos cartazes ficaram sujos e ilegíveis, foram arrancados, não ocorreu a ninguém substituí-los; a pequena tabela com o número dos dias de jejum, que nos primeiros tempos era cuidadosamente renovada, continuava a mesma há muito tempo, pois após as primeiras semanas os próprios funcionários não quiseram mais se dar nem a este pequeno trabalho; assim o artista da fome continuou jejuando como um dia sonhara, e isso não representava nenhum grande esforço para ele, tal como havia previsto. Mas ninguém contava os dias, ninguém, nem mesmo o jejuador conhecia a extensão do seu desempenho, e seu coração ficou pesado. E quando certa vez, nesse tempo, um ocioso se deteve diante da jaula, escarneceu da velha cifra na tabela e falou de embuste, essa foi, à sua maneira, a mais estúpida mentira que a indiferença e a maldade inata puderam inventar, já que não era o artista da fome quem cometia a fraude — ele trabalhava honestamente — mas sim o mundo que o fraudava dos seus méritos.
Passaram-se ainda muitos dias e até isso chegou ao fim. Certa vez um inspetor notou a jaula e perguntou aos serventes por que deixavam sem uso aquela peça perfeitamente aproveitável com palha apodrecida dentro; ninguém sabia, até que um deles, com a ajuda da tabuleta, se lembrou do artista da fome. Levantaram a palha com ancinhos e encontraram nela o jejuador.
— Você continua jejuando? — perguntou o inspetor. — Afinal quando vai parar?
— Peço desculpas a todos — sussurrou o artista da fome; só o inspetor, que estava com o ouvido colado às grades, o entendia.
— Sem dúvida — disse o inspetor, colocando o dedo na testa, para indicar aos funcionários, com isso, o estado mental do jejuador. — Nós o perdoamos.
— Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum — disse o artista da fome.
— Nós admiramos — retrucou o inspetor. — Por que não haveríamos de admirar?
— Mas não deviam admirar — disse o jejuador.
— Bem, então não admiramos — disse o inspetor. — Por que é que não devemos admirar?
— Porque eu preciso jejuar, não posso evitá-lo — disse o artista da fome.
— Bem se vê — disse o inspetor. — E por que não pode evitá-lo?
— Porque eu — disse o jejuador, levantando um pouco a cabecinha e falando dentro da orelha do inspetor com os lábios em ponta, como se fosse um beijo, para que nada se perdesse. — Porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo.
Estas foram suas últimas palavras, mas nos seus olhos embaciados persistia a convicção firme, embora não mais orgulhosa, de que continuava jejuando.
— Limpem isso aqui! — disse o inspetor, e enterraram o artista da fome junto com a palha.
Mas na jaula puseram uma jovem pantera. Era um alívio sensível até para o sentido mais embotado ver aquela fera dando voltas na jaula tanto tempo vazia. Nada lhe faltava. O alimento de que gostava, os vigilantes traziam sem pensar muito; nem da liberdade ela parecia sentir falta: aquele corpo nobre, provido até estourar de tudo o que era necessário, dava a impressão de carregar consigo a própria liberdade; ela parecia estar escondida em algum lugar das suas mandíbulas. E a alegria de viver brotava da sua garganta com tamanha intensidade que para os espectadores não era fácil suportá-la. Mas eles se dominavam, apinhavam-se em torno da jaula e não queriam de modo algum sair dali.
— Franz Kafka, no livro "Essencial". tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2011
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