A galhofa melancólica de Dom Machado de Assis

Machado de Assis
A galhofa melancólica de Dom Machado de Assis
Nuno Costa Santos*


"Há em Dom Machado uma arte de manusear o português como poucos, com uma vivacidade literária que não precisa de maneirismos para se afirmar. E com um ingrediente raro e delicioso: aquilo que na advertência ao leitor em “Brás Cubas” é designado como “a pena da galhofa e a tinta da melancolia."
- Nuno Costa Santos


“Não foi apenas um grande escritor”, diz Gabriela Silva, especialista em Literatura Brasileira. “Superou a ideia do subúrbio como âmbito de vida e foi para o centro da cidade, fez amizades, estabeleceu-se e tornou-se um reconhecido intelectual. O peso do racismo não o impediu de ser um grande escritor”.
Dom Casmurro, de Machado de Assis (Portugal)

A rentrée também se faz de clássicos escritos com o melhor português. Nuno Costa Santos visitou dois romances de Machado de Assis recentemente reeditados e ouviu opiniões divergentes sobre o autor.


“Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível”. Assim se dirige a quem o lê, a certa altura, Bento Santiago, o narrador de Dom Casmurro, de Machado de Assis, reeditado por estes dias pela Guerra & Paz, juntamente com outro romance decisivo do autor, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

O seu drama primeiro é conhecido: foi destinado como padre à conta de uma promessa da mãe e está apaixonado por Capitu. Nessa altura ainda não se havia salvo desse destino eclesiástico – aliás, acabara de sucumbir ao mesmo. Só mais tarde é que o amor e o desamor se consumarão, como convinha a um escritor que sabia que muita da literatura maior se faz de tragédia. E comédia.

Dom Casmurro é um exemplo subtil da intenção tragicómica do autor que criou uma personagem cuja visão da existência amargou à medida que a vida lhe ia acontecendo, sem deixar o abrigo de um humor triste. As suspeitas de traição da amada com o seu melhor amigo conjugam-se com comentários de uma ironia conformada e fina. Como este: “Um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”. Ou este: “Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos”. O gosto pela frase curta comparece na sua prosa — “Deus recebe em ouro, Satanás em papel” – e deixa-se cativar pelo perfume do aforismo: “O destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra, isto é, designa a entrada dos personagens em cena”.

A conversa com o leitor, a partir do remoinho da memória, apela a uma divertida compaixão mesmo quando o que vai sendo descrito fala a graves sentimentos: “Se achares neste livro algum caso da mesma família, avisa-me, leitor, para que o emende na segunda edição”. Há descrições desagradáveis, de um realismo sujo e ao mesmo tempo cómico. Os olhos da amada Capitu são desenhados com estes divertidos traços impuros: “Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Sim, de ressaca”.


Epiléptico, gago e artista

As passagens apresentam bem a visão do mundo e dos homens que tinha Joaquim Maria Machado de Assis, nascido a 21 de Junho de 1839 no morro do Livramento (Rio de Janeiro). Desencantada, antes de mais. Passou uma boa parte do seu percurso a jogar ao pessimismo nos romances, nos contos, nas crónicas – e aqui jogar não é verbo usado em vão. Começou com poemas românticos e toscos mas, quando atingiu a maioridade, o tom da sua literatura tornou-se mais lúdico, sem deixar de ser sério. Acentuou-se o sentimento céptico em relação à natureza humana, capaz de praticar os melhores gestos, sim, só que com motivações egoístas.

O escritor brasileiro Luiz Antonio de Assis Brasil destaca o modo como Machado, não imaginando nenhuma transcendência na natureza humana, mascara o negrume com recursos em que é mestre: a ironia e o humor. A personagem Brás Cubas é, para o também professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, “um ser confrangedor em sua mediocridade — e mesmo sua morte é patética. Apesar disso, esse homem tem um travo de amargura na frase final do romance: ‘Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria’”.

Filho de um mulato, pintor de paredes, e de uma lavadeira (açoriana, de Ponta Delgada, ilha de São Miguel), o autor de Quincas Borba, gago e epiléptico, construiu-se através do trabalho disciplinado de que um talento como o seu precisava. Aos poucos foi-se afirmando como a principal figura das letras brasileiras do seu tempo. A multiplicidade de registos ajudou-o a atingir o estatuto. Mas decisiva mesmo foi a originalidade dos seus romances no contexto da língua portuguesa, filhos de uma assumida influência de autores como Laurence Sterne e Xavier de Maistre, mas pensados e executados por alguém demasiado complexo, livre e criativo para se ficar por qualquer tipo de mimese.

Entende-se que se ponha Machado a falar literariamente com Eça de Queirós. Mas o autor brasileiro, que escreveu uma longa crítica reticente a O Primo Basílio, perseguia a concisão verbal de quem tinha bebido na melhor literatura em língua inglesa, apostava, a partir da maturidade, numa radical auto-depreciação dos seus narradores-personagens e arriscava em capítulos mínimos e experimentais. Era, se quisermos, um falso realista. Escreveu sobre o assunto num tom que faz recordar um Oscar Wilde: “Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética”.

Assis Brasil vê Machado a dialogar com Flaubert e Dostoiévski. O problema é que, assinala, “Machado viveu numa sociedade extremamente provinciana e conservadora; sem interlocutores, foi uma façanha o fato de escrever o que escreveu”. O “meio” não o ajudou. “Foi celebrado em vida, mas sua solidão intelectual, ligada a uma timidez insuperável, transforma-o num caso único e irrepetível”. Ao contrário do que aconteceu a Eça, por exemplo, que tinha interlocutores de seu nível. “Quando pensamos nos amigos de Eça e nos amigos de Machado, a distância é galáctica”, conclui o escritor de livros como O Pintor de Retratos, A Margem Imóvel do Rio e Figura na Sombra.

Sobre a questão específica do racismo: Assis tem dúvidas sobre se o terá superado, considerando, em vez disso, que terá encontrado uma forma de se impor pela sua estatura intelectual. “Mas atenção: ele não foi o único mulato que, a seu tempo, teve essa oportunidade; eram muito comuns os homens de letras mestiços que ganharam fama, até porque o Rio de Janeiro tinha – e tem – uma expressiva presença negra em todos os sectores de actividade”.


Um grande escritor e um grande leitor

Nascida em São Paulo mas com percurso académico em Porto Alegre, Gabriela Silva, doutorada e especialista em Literatura Brasileira, recorre a Antonio Candido quando este diz que Machado construiu a sua popularidade com a sua elegância, erudição e uma linguagem pouco ou nada rebuscada. O racismo não lhe atrapalhou a obra. Pelo contrário: deu-lhe estofo e matéria-prima para o poderoso retrato da sociedade carioca do seu tempo. “Não foi apenas um grande escritor”, mas também um grande leitor, capaz de associações filosóficas e estéticas. “Superou a ideia do subúrbio como âmbito de vida e foi para o centro da cidade, fez amizades, estabeleceu-se e tornou-se um reconhecido intelectual. O peso do racismo não o impediu de ser um grande escritor”.

Actualmente a fazer um pós-doutoramento sobre “as novas identidades de escrita portuguesas”, Gabriela realça que numa primeira fase o escritor não revela uma aguçada leitura crítica ou social. Só numa segunda é que as questões sociais recebem atenção crítica e analítica. “Os negros surgem em posições submissas, sem voz, obscurecidos pela voz do senhor e da sociedade escravocrata. Embora já se organizassem e lutassem por justiça social e liberdade, na obra de Machado há um distanciamento substancial das questões raciais”.

Conta que quis ser professora de literatura por causa do autor. Tinha nove anos quando leu pela primeira vez Machado de Assis. “Na casa de minha mãe havia uma estante enorme, negra, repleta de livros de todos os tipos, uma colecção em particular me chamava a atenção”. Era a série Bom Livro, da editora Ática, que publicava todos os livros da literatura brasileira lidos nas escolas. “Peguei em Dom Casmurro e foi Bento Santiago e o modo como narrava aquela casa da Rua de Matacavalos que me fez querer ser professora de literatura. Em cada novo capítulo eu sentia-me mais ‘esfomeada’. Os olhos de ressaca de Capitu nunca me saíram da lembrança”.

Consegue perceber no brasileiro Eça de Queirós na potência crítica e na acidez da escrita. Mesmo que as obras do período ainda romântico de Machado estejam repletas de “ranços idílicos” e sonhos amorosos, além da forma herói-heroína e o destino fatalista do amor e das relações sociais, “a sua produção é extremamente rica quanto à crítica social, à percepção da sociedade” e da natureza humana e é feita com destreza e ironia. Interpreta de um modo próprio as objecções de Machado a O Primo Basílio: “Era um igualar-se, era um mostrar que Machado sabia do que falava”.

Martim Vasques da Cunha, escritor e jornalista, editou em 2015, pela Record, A Poeira da Glória – uma (inesperada) história da literatura brasileira, apresentado com muito humor na capa como um “livro que até mesmo o politicamente incorrecto considerou imprudente”. Ou seja, arrisquemos: como um livro que o provocador Machado de Assis seria capaz de visitar com agrado sabendo que nele está no menos agradável papel de criticado.

Nessa obra de 628 páginas, Vasques da Cunha, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, detém-se em diversos autores brasileiros — de Euclides da Cunha a Otto Lara Resende — para pensar o Brasil segundo os seus critérios. Explica assim o seu objectivo: “O que me interessa quando estudo a obra de um Machado ou de um Nelson Rodrigues ou de um Guimarães Rosa é perceber como a literatura deles afectou a sensibilidade moral de um país e como eles ajudaram, para o bem ou para o mal, a moldar a imaginação do brasileiro”. O que faz não se insere, pois, numa perspectiva de crítica literária mas num ângulo de crítica cultural. Que — é notório – quer abanar o pedestal e provocar debate.

Logo na página 25, o mito Machado de Assis começa por ser questionado num capítulo intitulado “uma poética da dissimulação”, no qual se pergunta “se a sua grande obra não passa de ‘pose literária’”. O também autor de Crise e Utopia: o dilema de Thomas More argumenta que ninguém o conheceu realmente, “talvez com excepção de sua esposa, Carolina, que sem dúvida foi o grande amor de sua vida”. De resto, é um “verdadeiro enigma”, apresentando-se sempre com máscaras dentro de máscaras, reflectidas em espelhos dentro de espelhos.

Vasques da Cunha defende que o grande triunfo estético e técnico de Machado de Assis como escritor é o facto de apresentar os seus personagens sem fazer nenhum juízo moral sobre eles mas também salienta que essa grandeza tem um contraponto negativo: o que entende ser um “fascínio pelas trevas”, pelo comportamento sombrio do ser humano, “criando assim a típica obsessão hobbesiana de que não há uma ‘soberania do Bem’ (para usar os termos de Iris Murdoch)” e que esse mesmo ser humano vive apenas num palco onde, “se não há um criador aparente, então o mal deve ser a única regra constante”.


A pena da galhofa e a tinta da melancolia
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis (Portugal)

Machado de Assis não era um indivíduo excepcional, capaz de de escapar aos racismos muitos pelo seu mérito próprio? Vasques da Cunha responde que sim, crendo no entanto que a sua batalha essencial foi mais a de tentar superar as suas dificuldades pessoais — a gagueira, a epilepsia, a posição social — do que a de procurar superar uma situação racial do país como um todo. “Wilson Martins conta em sua História da Inteligência Brasileira que um dos motivos de Machado ‘ter vencido na vida’ é o facto de ele ter trabalhado na casta mais maleável de todas para a ascensão social: a dos intelectuais”. Aí não havia racismo, diz, mas sim uma espécie de “selecção natural” que era atribuída ao sujeito como se fosse mérito aristocrático. “Ele chegou aonde chegou porque foi o melhor de todos na sua área – e teve o prestígio que merecia e que sempre desejou”.

A dado momento é feita uma comparação entre Machado de Assis e Nelson Rodrigues, agora editado pela Tinta da China. Para Martim é fácil detectar no primeiro “a profunda mesquinhez da sua visão do mundo” enquanto que em Nelson Rodrigues, o auto-intitulado Anjo Pornográfico, impera a “coragem e a sinceridade como as únicas formas de aguentar a loucura em que se tornou o mundo”. Afirmação que, no contexto desta entrevista, lhe merece o seguinte acrescento: “Nelson Rodrigues foi ao coração das trevas, olhou lá dentro, e voltou com a certeza de que aquilo não podia ser tudo o que acontece na nossa condição. Portanto, a pornografia dele não é porque teria visto o nosso pior, mas sim porque, no meio de tanta perversão, ainda há espaço para o belo, para a bondade e para a generosidade humana”.

Para lá de todos estes considerandos, Martim Vasques da Cunha faz questão de dizer que admira a obra machadiana e que tem a certeza de que é “um autor importantíssimo não só no cânone brasileiro ou da língua portuguesa, mas também no cânone ocidental”. É um dado: há em Dom Machado uma arte de manusear o português como poucos, com uma vivacidade literária que não precisa de maneirismos para se afirmar. E com um ingrediente raro e delicioso: aquilo que na advertência ao leitor em “Brás Cubas” é designado como “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. Estas reedições – tal como o volume reunindo os nove romances do autor, editado em 2014 pela Glaciar, em parceria com a Academia Brasileira de Letras – merecem ser visitados por novos leitores. E, já agora, por candidatos a escritores em língua portuguesa.

Morreu em Setembro de 1908, com 69 anos. Citando o balanço feliz do jornalista Daniel Piza, em Machado de Assis: um Gênio Brasileiro (2005): “Viveu o período festivo da Corte, a felicidade de um casamento de trinta e cinco anos e a realização de uma literatura que inclui obras-primas do romance e do conto (…). Machado morreu consagrado, embora em alguns aspectos incompreendido”. Passado tanto tempo, a sua obra continua a ser interpretada de várias maneiras, num esforço de capturar todas as suas camadas. “É a marca do génio”.
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*Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.
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:: Fonte: Observador

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