Pipoquices - Humberto Werneck

©Pablo Picasso

Pipoquices

Certeiro no uso das palavras ao compor seus versos, meu amigo Pipoca (preservemos sua identidade por detrás do apelido de infância, pois é homem recatado) se atrapalha todo quando vai manejá-las na conversação. Quer dizer uma coisa e sai outra. Para você ter uma ideia: ao me abraçar, emocionado, no dia do meu casamento, limitou-se a um monossílabo carregado de involuntário mau agouro:

— Tchau!

***

Homem sensível, o Pipoca viveu como perda pessoal o desaparecimento do dálmata da irmãzinha. Não só se incorporou ao choro da menina como, em segredo, botou anúncio no jornal.

No dia seguinte, uma catadupa de gozações desabou no telefone:

— É daí que sumiu uma zebra?

Zebra? — estranhou a família, e o ele, desolado, humildemente mostrou o anúncio, ao qual não faltara um pipocal equívoco ao descrever a pigmentação do dálmata: “Procura-se um cãozinho listrado…”

***

Em Paris, numa roda de jovens casais, o Pipoca, revoltado, chegou contando a desfeita de que fora vítima minutos antes, da parte de um nativo de maus bofes, sem que tivesse podido responder, já que além de tímido lhe falta domínio da língua francesa. Não, sejamos justos: fala francês fluentemente (ele vai adorar a acidental aliteração), só que ninguém entende. Naquele episódio, nem isso, pois a grosseria congelou seu rarefeito vocabulário. Pipoca só foi estourar ali entre os amigos. Suprassumo da delicadeza, pediu: “Fechem os olhos, meninas!” — e, no português mais cru, entornou o caminhão de palavrões que em vernáculo não pudera endereçar ao agressor.

***

Em outra roda, majoritariamente francesa, o poeta aventurou-se a contar o que acabara de presenciar no metrô parisiense: um velho, surtado, baixou as calças e se pôs a balangar os balangandãs. Como ao narrador sobrasse decoro e faltasse munição verbal, ninguém entendeu o que se passara. Ele tentou esclarecer, sem perder a finura jamais: o camarada tinha mostrado tous ses documents, sim, seus documentos, ses papiers — e aí a coisa se complicou de vez: seria como dizer, no Brasil, que o peladão mostrou o RG, o CPF, a carteira de motorista… Só a presença de um compatriota bilíngue pôde conferir sentido à narrativa pipocal.

***

Na cidade onde morava, no sul da França, meteu-se ele um dia a preparar para os amigos, de variadas nacionalidades, o que anunciou, aliás num verso alexandrino, como sendo “a joia negra da cozinha brasileira”. Seus dotes culinários, a bem da verdade, iam pouco além dos ovos mexidos, o que de forma alguma lhe pareceu constituir problema. Problema, esse sim, foi achar os pertences da feijoada, a começar pelo feijão preto. Vá lá, deu de ombros, e, renunciando à negritude da joia, mandou embrulhar os grãos graúdos e branquelos do cassoulet. Paio também não havia, nem lombo defumado, muito menos carne seca (causou espécie ao pedir “viande sèche”). Couve e pimenta malagueta, então…

Você pode imaginar o desastre que foi a pálida feijoada do Pipoca, a partir do instante em que ele irrompeu no recinto com um formidando e fumarento caldeirão, evocador das tragicômicas bodas de Dom Ratão. Servidos os pratos — a que não faltou, como sucedâneo da malagueta, uma pimenta vietnamita só comparável, em poder de fogo, ao napalm que os americanos despejavam sobre os vietcongues —, baixou entre os comensais um silêncio ainda mais espesso que o conteúdo do caldeirão. Na tentativa de deixá-lo à vontade, a dona da casa teve a infelicidade de louvar a feïjoadá brésilienne do Pipoca, o que, por cima do orgulho de chef, lhe feriu brios nacionalistas:

— Não, madame, isso aqui não tem nada a ver, lá é totalmente diferente — tartamudeou ele, acrescentando ao desastre o ingrediente que faltava.

***

Em outra ocasião, morando ainda na casa dos pais, foi despertado com a notícia, ao telefone, da morte de um amigo da família, e por pouco não ficou sem palavras. Antes tivesse ficado, pois a única que lhe veio aos lábios foi:

— Oba!

***

E houve também o dia em que, num encontro casual, ele soube da morte do pai de um amigo.

— Não me diga! Eu nem sabia que ele estava doente!

— Não estava — contou o outro —, mas veio uma pneumonia e…

— Ah — respirou o Pipoca —, ainda bem que não foi nada grave!


— Humberto Werneck, crônica publicada originalmente na revista “Vida Breve”, em 30.05.2014.

Conversa telefônica - Clarice Lispector

©Duy Huynh


Conversa telefônica 

Uma grande amiga minha se deu ao trabalho de ir anotando numa folha de papel o que eu lhe dizia numa conversa telefônica. Deu-me depois a folha e eu me estranhei, reconhecendo-me ao mesmo tempo. Estava escrito: “Eu às vezes tenho a sensação de que estou procurando às cegas uma coisa; eu quero continuar, eu me sinto obrigada a continuar. Sinto até uma certa coragem de fazê-lo. O meu temor é de que seja tudo muito novo para mim, que eu talvez possa encontrar o que não quero. Essa coragem eu teria, mas o preço é muito alto, o preço é muito caro, e eu estou cansada. Sempre paguei e de repente não quero mais. Sinto que tenho que ir para um lado ou para outro. Ou para uma desistência: levar uma vida mais humilde de espírito, ou então não sei em que ramo a desistência, não sei em que lugar encontrar a tarefa, a doçura, a coisa. Estou viciada em viver nessa extrema intensidade. A hora de escrever é o reflexo de uma situação toda minha. É quando sinto o maior desamparo.”

— Clarice Lispector, no livro “A descoberta do mundo”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999


Saiba mais sobre Clarice Lispector:

Ferreira Gullar explica como criou 'Poema sujo'



Publicado originalmente em 1976, Poema sujo transformou a paisagem da poesia brasileira com sua torrente arrebatadora de versos, expressão máxima de uma subjetividade convulsa pela atmosfera sufocante da ditadura.

O poema foi escrito na Argentina, onde o autor se encontrava exilado. “Sentia-me dentro de um cerco que se fechava. Decidi, então, escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre”, escreveu Gullar. “Imaginei que poderia vomitar, em escrita automática, sem ordem discursiva, a massa da experiência vivida - lançar o passado em golfadas sobre o papel e, a partir desse magma, construir o poema que encerraria a minha aventura biográfica e literária.” Quarenta anos depois, o poema continua atual como nunca.
Neste vídeo, Ferreira Gullar explica como criou o poema:



*Publicado originalmente no site da editora Companhia das Letras, em 25.10.2016.

Quem ama, cuida - Lya Luft

©Francisco Pimiango


Quem ama, cuida

Somos uma geração perplexa, somos uma geração insegura, somos uma geração aflita — mas, como tudo tem seu lado bom, somos uma geração questionadora.
O que existe por aí não nos satisfaz. Sofremos com a falta de uma espinha dorsal mais firme que nos sustente, com a desmoralização generalizada que contamina velhos e jovens, com uma baixa auto-estima e descaso que, penso eu, transpareceram em nossa equipe de futebol na Copa do Mundo.
Algum remédio deve ser buscado na realidade, sem desprezar a força da imaginação e a raiz das tradições — até no trato com as crianças.
Uma duradoura influência em minha vida, meu trabalho e arte, foram os contos de fadas: antiquíssimas histórias populares revistas e divulgadas por Andersen e pelos Irmãos Grimm, para povoar e enriquecer alma de milhões de crianças — e adultos.
Esses relatos, plenos de fantasia, falam de realidades e mitos arcaicos que transcendem linguagem, raça e geografia, e nos revelam.
Nessa literatura infantil reúnem-se dois elementos que me apaixonam: o belo e o sinistro. Ela abre, através da imaginação, olhos e medos para a vida real, tecida de momentos bons e ameaças sinistras, experiências divertidas e outras dolorosas — também na infância.
Na realidade, nem sempre os fortes vencem e os frágeis são anulados: a força da inteligência de pessoas, grupos, ou povos ditos “fracos”, inúmeras vezes derrota a brutalidade dos “fortes” menos iluminados. Porém o mal existe, a perversão existe, atualmente a impunidade reina neste país nosso, confundindo critérios que antes nos orientavam. Cabe à família, à escola, e a qualquer pessoa bem intencionada, reinstaurar alguns fundamentos de vida e instaurar novos.
Não vejo isso em certa — não generalizada — tendência para uma educação imbecilizante de nossas crianças, segundo a qual só se deve aprender brincando, a escola passou a ser quase um pátio tumultuado, e a falta de respeito reproduz o que acontece tanto em casa quanto em alguns altos escalões do país.
Essa mesma corrente de pensamento quer mutilar histórias infantis arcaicas como a do Chapeuzinho Vermelho: agora o Lobo acaba amigo da Vovó... e nada de devorar a velha, nada de abrir a barriga da fera e retirá-la outra vez. Tudo numa boa, todos na mais santa paz, tudo de brincadeirinha — como não é assim a vida.
Modificam-se textos de cantigas como “Atirei o pau no gato”, transformando-a em um ridículo “Não atire o pau no gato” e outras bobajadas, porque o gato é bonzinho e nós devemos ser idem, no mais detestável politicamente correto que já vi.
O mundo não é assim. Coisas más e assustadoras acontecem, por isso nossas crianças e jovens devem ser preparados para a realidade. Não com pessimismo ou cinismo, mas com a força de um otimismo lúcido.
Medo faz parte de existir, e de pensar. Não precisa ser terror da violência doméstica, física ou verbal, ou da violência nas ruas — mas o medo natural e saudável que nos faz cautelosos, pois nem todo mundo é bonzinho, adultos e mesmo crianças podem ser maus, nem todos os líderes são modelos de dignidade. Uma dose de realismo no trato com crianças ajudará a lhes dar o necessário discernimento, habilidade para perceber o positivo e o negativo, e escolher melhor.
Temos muitos adolescentes infantilizados pelo excesso de proteção paterna ou pela sua omissão, na gravíssima crise de autoridade que nos assola; temos jovens adultos incapazes porque quase nada lhes foi exigido, nem na escola, nem em casa. Talvez tenha lhes faltado a essencial atenção e interesse dos pais, na onda de “tudo numa boa”.
Dar a volta por cima significará mudar algumas posturas e opções, exigir mais de nós mesmos e de nossos filhos, de professores e alunos, dos governos, das instituições. Ou vamos transformar as novas gerações em fracotes despreparados, vítimas fáceis das armadilhas que espreitam de todos os lados, no meio do honrado e do amoroso — que também existem e precisam se multiplicar.
Não prego desconfiança básica, mas uma perspectiva menos alienada: duendes de pesadelo aparecem em nosso cotidiano. Nem todos os amigos, vizinhos, parentes, professores ou autoridades nos amam e nos protegem. Nem todos são boas pessoas, nem todos são preparados para sua função, nem todos são saudáveis.
Para construir de forma mais positiva nossa vida, é preciso, repito, dispor da melhor das armas, que temos de conquistar sozinhos, duramente, quando não a recebemos em casa nem na escola: discernimento. Capacidade de analisar, argumentar, e escolher para nosso bem — o que nem sempre significa comodidade ou sucesso fácil.
Quem ama, cuida: de si mesmo, da família, da comunidade, do país — pode ser difícil, mas é de uma assustadora simplicidade, e não vejo outro caminho.

— Lya Luft, no livro "Em outras palavras". Rio de Janeiro: Record, 2011

Mais sobre a autora:

Aconteceu na Praça XV - Caio Fernando Abreu

©Henri Matisse


Aconteceu na Praça XV 

Como uma personagem de Tânia Faillace: os restos da escassa dignidade do dia apodreciam entre o cheiro de pastéis, os encontrões e os ônibus da Praça XV. Não era uma personagem de ninguém, embora às vezes, mais por comodismo ou para não sentir-se desamparado como obra de autor anônimo, quisesse achar que sim. Mas à tardinha as dores doíam e o suor cheirava mal embaixo dos braços. À tardinha não tinha a quem recorrer e precisava controlar a vontade de dizer para qualquer alguém, olha, venci mais um. Quando a irritação não era muita, conseguia olhar para os lados pensando que dentro das corridas, dos gritos e dos cheiros havia como olhos que não precisavam se olhar para que uma silenciosa voz coletiva repetisse, olha, venci mais um; e, quando além da não-irritação havia também um pouco de bom humor, conseguia até mesmo sorrir e falar qualquer coisa sobre o tempo com alguém da fila. Mas havia os dias molhados, quando as pessoas com capas e guarda-chuvas andavam por baixo das marquises espetando os olhos ou deixando ao desabrigo os sem capa nem guarda-chuva, como ele; mas havia aquelas pessoas que nos ônibus superlotados não sentavam imediatamente no lugar deixado vago, até que duas ou três paradas depois, tão discretamente quanto podia, ignorando grávidas, velhinhos e aleijados, ele se atrevesse a conquistar o banco (lavava muitas vezes as mãos depois de chegar em casa, canos viscosos ―
estafilococos, miasmas, meningites), embora soubesse que tudo ou nada disso tinha importância; mas havia as latas transbordantes de lixo e os cães sarnentos e os pivetes pedindo “um-cruzeirinho-pra-minhamãe-entrevada”, mãos crispadas nas bolsas. O dia se reduzindo à sua exigüidade de ônibus tomados e máquinas batendo telefones cafezinhos pequenas paranóias visitas demoradas ao banheiro para que o tempo passasse mais depressa e o deixasse livre para. Para subir rápido a rua da Praia, atravessar a Borges, descer a galeria Chaves e plantar-se ali, entre o cheiro dos pastéis, gasolina, e o “ardido-suor-dos-trabalhadores-do-Brasil”, tentava inutilmente dar uma outra orientação ao cansaço despolitizado e à dor seca nas costas, alguém compreenderia? E para que tudo não doesse demais quando não era capaz de, apenas esperando, evitar o insuportável, fazia a si próprio perguntas como: se a vida é um circo, serei eu o palhaço? Às vezes também o domador que coloca a cabeça dentro da boca escancarada do leão, às vezes o equilibrista do arame suspenso no abismo, a bailarina sobre o pônei, e também o engolidor de espadas, e mais a mulher serrada ao meio ― e ainda, o quê?
Inesperadamente, ela chegou por trás e afundou os dedos no seu cabelo, coçando-lhe a cabeça como fazia antigamente. Ele voltou-se e afundou os dedos no seu cabelo, coçando-lhe a cabeça como fazia antigamente. Depois os dois se abraçaram e se deram beijos nas duas faces e como duas pessoas que não se vêem há muito tempo atropelaram perguntas como: por onde é que tu anda, criatura, ou exclamações como: mas tu não mudou nada, ou reticências tão demoradas que as filas chegavam a deter-se um pouco, as pessoas reclamando e uma hesitação entre mergulhar nas gentes entre um beijo e um me telefona qualquer dia e ficar ali e convidar para qualquer coisa, mas um medo que doesse remexer naquilo, e tão mais fácil simplesmente escapar que chegou a dar dois passos. Ou três. Mas de repente estavam sentados no Chalé com dois chopes um em frente ao outro, e ela dizia que as nuvens pareciam o saiote de uma bailarina de Degas e tinha um céu laranja atrás dos edifícios e uma estrela muito brilhante que ela apontou dizendo que era Vênus e riu quando ele mexeu com ela e disse que podia nascer uma verruga na ponta de seu dedo, e teriam ficado nesse clima por mais tempo se de repente ela não perguntasse se ele não se lembrava de um determinado bar e ele disse que sim e ela risse continuando, sabe que a garçonete nos conhecia tanto que outro dia me perguntou ué, tu não ia casar com aquele moço, e ela dissera que não, que eram apenas amigos. Então ele pediu outro chope e com um ar dramático disse que só se casaria com ela se ela tivesse um bom dote, duas vacas leiteiras, por exemplo, mas ela respondeu rindo que vacas leiteiras não tinha não, mas se servia uma coleção completa de Gênios da Pintura, e ele perguntou se tinha Bosch e Klimt, e ela disse claro, dois fascículos inteiros, e ele disse ah, vou considerar a sua proposta, e ela disse mas não pense que vou me jogar nessa empreitada (ele achou engraçado, mas foi assim mesmo que ela disse, acentuando tanto a palavra que ele percebeu que o jeito dela falar não tinha mudado nada, sempre ironizando um pouco o próprio vocábulo e carregando de intenções o que a ela mesma parecia meio ridículo), assim no mais, ela continuou, só caso contigo se tu também tiver um dote ponderável. Ele acendeu um cigarro e ela outro e ele viu que ela havia mudado para Continental com filtro e que antigamente era Minister, Minister, gola role preta, olheiras e festivais de filmes nouvelle vague no Rex ou no Ópera, e ela odiava Godard, só gostava do trecho onde Pierrot le fou sentava numa pedra e Ana Karina vinha caminhando pela praia gritando que se há de fazer, não há nada a fazer, rien àfaire e assim por diante, até chegar em primeiro plano, e então ele lembrou e disse que tinha as obras completas de Sartre, Simone e Camus, e ela fez hmmmmmm, é uma boa oferta, e se ela lembrava que tinha sido posta para fora da aula de introdução à metafísica depois de dizer que estava mergulhada na fissura ôntica, o nome científico da fossa, e ela lembrava sim. E logo em seguida ele quis falar duma passeata em que tinha apanhado dentro da catedral, e já fazia tanto tempo, todos gritando “o-povo-organizado-derruba-a-ditadura-mais-pão-menos-canhão”, braços dados, mas não chegou a dizer nada porque ela estava contando que fizera vinte e oito anos semana passada e que tinha ficado completamente louca o dia inteiro, ainda por cima um domingo, e que sentira vontade de escrever um conto que começasse assim, aos vinte e oito anos ela enlouqueceu completamente e de súbito abriu a janela do quarto e pôs-se a dançar nua sobre o telhado gritando muito alto que precisava de espaço, e pediu também um segundo chope enquanto ele achava que “era-um-bom-começo-se-ela-soubesse-desenvolver-bem-a-trama”, mas ela apagou o cigarro e resmungou que trama, cara, eu não sei desenvolver bosta nenhuma, tenho preguiça de imaginar o que vem depois, uma clínica, por exemplo, e se ele achava possível que um conto fosse só aquilo, uma frase, e ele quis dizer ué, por que não, Mário de Andrade, por exemplo, mas começou a soprar um vento frio e ela falou que tinha também um casaco de peles imensurável comprado na Suécia e um vidrinho de patchuli pela metade, ele disse ah, então era esse o cheiro, e ela explicou que era um pouco audacioso usar porque quando boto um pouquinho os magrinhos todos na rua vêm perguntar como é que é, tá na mão, magra, tá nas idéia, bicho, eu digo, e riram um pouco até ele dizer que tinha também um pôster de Marilyn Monroe tão amarelado mas tão bonito que um amigo o fizera jurar que deixaria para ele no testamento, então não podia dispor completamente, e sem saber por que lembrou duma charge e falou, mas não se usa mais dizer assim, é antediluviano, diz cartum, nego, senão tu passa por desatualizado, e ele riu e continuou, um cartum, então, onde tinha um palhaço ajoelhado no confessionário aos prantos enquanto o padre atrás da parede de madeira furadinha morria de rir. Foi então que ela perguntou se ele ainda continuava com a análise e ele fez que sim com a cabeça, quase dois anos, mas falando em palhaço lembrou a história do circo e quis saber o que ela achava, ela disse que se sentia mais como um peludo, e ele achou engraçadíssimo porque fazia uns dez anos que não escutava aquela palavra, chegou a ouvir bem nítido na memória um coro de vozes gritando tá-na-hora-peludo, lonas furadas, daqueles que montam e desmontam o barracão e carregam as garrafas de madeira dos malabaristas e as jaulas das feras e apanham no ar a sombrinha que a bailarina do pônei joga longe antes de equilibrar-se num pé só, e ele pediu outro chope e foi ao banheiro mijar e quando voltou ela estava com um gato no colo sentada numa mesa de dentro, porque lá fora tinha esfriado muito e começava a chover, e ele pensou que se fosse cinema agora poderia haver um flashback que mostrasse os dois na chuva recitando Clarice Lispector, para te morder e para soprar afim de que eu não te doa demais, meu amor, Já que tenho que te doer, meu Deus, tu decorou até hoje, e o teu cabelo tá caindo, ela falou quando ele se abaixou para apanhar o maço de cigarros e acendeu um, já tem como uma tonsura, e ele suspirou sem dizer nada até ela emendar que ficava até legal, dava um ar meio místico, mas ele cortou talvez um pouco bruscamente dizendo pode ser, mas atualmente ando mais pra Freud do que pra Buda ou pra são Francisco de Assis, pois é, nada de sair por aí dando a roupa aos pobres, mas eu tenho também um Atlas celeste e ela acrescentou que no verão sabia reconhecer Orion e Escorpião, e que Escorpião levantava quando Orion já estava deitando na linha do horizonte, e que, segundo o mito, Escorpião estava sempre querendo picar o calcanhar do guerreiro, e ele contou que uma vez havia feito um círculo de fogo em torno dum escorpião, mas ele não tinha se suicidado, o sacana, ficou esperando até o fogo apagar e ele achatá-lo com o pé, e que tinha se passado muito tempo, mas por que falar de escorpiões agora, os dois acenderam cigarros, e ela falou que era inverossímil pensar que a distância, quer dizer, o tempo que a separava dos dezoito anos era exatamente o mesmo que a separava dos trinta e oito, e tenho também uma luneta, só que quebrada, ele cortou novamente, ah eu estava me esquecendo do disco da Silvinha Telles que também tenho, ela sorriu, como é mesmo o nome? aquele assim todos acham que eu falo demais, e que ando bebendo demais, cantarolou, a voz grave, e outro flashback, uma madrugada qualquer, cuba-libre e Maysa, que eu não largo o cigarro, tá todo riscado, então não interessa, ele afetou um ar de desprezo, logo a melhor faixa, e ela falou tu viu que horror fizeram na pracinha da ponta do Gasômetro, e mais um flashback, os dois sem dinheiro para assistir ao Arqui-Samba no Cine Cacique e Nara Leão dizendo é aparte que te cabe neste latifúndio, deitados na grama e o barulho do rio limpo, naquele tempo, corta, outro dia fui lá e tinha uma coisa chocante, uma porção de gente morando dentro duns canos, e eu me senti tão mal olhando aquilo e de repente me pareceu que, ela olhou bem para ele, mas os dois baixaram a cabeça quase ao mesmo tempo e, começando a despedaçar a caixa de fósforos, ele disse que era incrível assistir como as ruas iam se modificando e de repente uma casa que existia aqui de repente não ocupava mais lugar no espaço, mas apenas na memória, e assim uma porção de coisas, ela completou, e que era como ir perdendo uma memória objetiva e não encontrar fora de si nenhum referencial mais e que. Aí ela olhou o relógio e falou que precisava mesmo ir andando antes que a chuva apertasse e as ruas ficassem alagadas, não sei se tomo um táxi ou uma gôndola, e ele chegou a abrir a boca para dizer qualquer coisa e ela perguntou o que foi, perfeitamente calma, a bolsa de couro a tiracolo e nenhuma pintura, como sempre, a fissura ôntica? e ele disse que não era nada, só ia tomar outro chope enquanto os ônibus esvaziavam um pouco mais. Então, por trás, inesperadamente, ela afundou os dedos no seu cabelo, coçando-lhe a cabeça como fazia antigamente, depois saiu depressa enquanto ele acendia outro cigarro e continuava a despedaçar a caixa de fósforos pensando coisas como: ou então o mágico que tira coelhos da cartola, ou ainda o motociclista do Globo da Morte, ou quem sabe estava nos bastidores ou na platéia ao invés de no picadeiro, como se fosse apenas um leitor e não uma personagem nem de Tânia Faillace nem de ninguém.

— Caio Fernando Abreu, no livro "Pedras de Calcutá". São Paulo : Companhia das Letras, 1996

Biografia Caio F. Abreu:

Jean-Pierre Lemaire - poemas

Encontro, de Damião Martins
poema de jean-pierre lemaire (edição bilíngue)


A virgem das rosas
(Colmar)

Estas aí, Maria, com o manto vermelho,
majestosa, amável, vigiando de um lado
e teu filho do outro.
À volta, rosas
sem espinhos, como no jardim do Éden,
e esses pássaros, pintarroxos, canários,
rouxinóis, talvez, de ar estranho :
pássaros pintados que não podem cantar.
Como eles, eu te olho,
aprendo a me calar,
em penitência no Paraíso.
.

de 'figure humaine'

La Vierge au buisson de roses
(Colmar)

Vous êtes là, Marie, en manteau rouge,
majestueuse, aimable, veillant d’un côté
et votre fils de l’autre.
Autour de vous, des rosess
ans épines, comme au jardin d’Éden,
et ces oiseaux, rouges-gorges, mésanges,
rossignols, peut-être, à l’air étrange :
des oiseaux peints qui ne peuvent chanter. 
Comme eux, je vous regarde,
j’apprends à me taire, 
en pénitence au Paradis.
- Jean-Pierre Lemaire. "Poemas". [seleção e tradução de Júlio Castañon Guimarães]. São Paulo: Lumme Editor, 2010.

§

O sol da ilha de Poros
O quarto do sol
o quarto dos enamorados azuis
o quarto das flores
o quarto da noite dos tempos
Todos se comunicam
na memória da felicidade
que conserva suas cores puras
sem paredes entre as horas
.

Le soleil de Poros
La chambre du soleil
la chambre des amants bleus
la chambre des fleurs
la chambre de la nuit des temps
Toutes communiquent
dans la mémoire du bonheur
qui garde leurs couleurs pures
sans mur entre les heures
- Jean-Pierre Lemaire. "Poemas". [seleção e tradução de Júlio Castañon Guimarães]. São Paulo: Lumme Editor, 2010.

§

O papagaio
O antigo papagaio perdido no invisível
subiu demais por certo. E tentas no teu sonho
fazer que ele desça com todo cuidado
verso após verso, enrolando a linha
impalpável em torno ao coração
como se recolhê-lo a alcance da palavra
dizer suas cores, amarelo e azul passados
fosse voltares tu mesmo para terra
.

Le cerf-volant
L’ancien cerf-volant perdu dans l’invisible
a dû monter trop haut. Tu tentes en rêve
de le faire descendre avec précaution
vers après vers, enroulant le fil
impalpable autour du cœur
comme si l’amener à portée de parole
en dire les couleurs, jaune et bleu passées
c’était revenir toi-même sur la terre.
- Jean-Pierre Lemaire, em "Poetas de França hoje. 1945-1995". [organização e tradução Mário Laranjeira]. São Paulo: Edusp, 1996.

§

Quando te é dado ver a vida
já não apenas sob o céu
mas como através dele
(adivinhas então a existência
de um segundo céu em transparência
e até por vezes de um terceiro)
podes suportar o grito do choupo
o olhar dos ofendidos
e tua própria história
como se a memória nessa profundeza
tomasse a cor da misericórdia
tal como o ar se torna azul…
.

Quand il t’est donné de voir cette vie
non plus seulement sous le ciel
mais comme à travers lui
(tu devines alors l’existence
d’un second ciel en transparence
et même parfois d’un troisième)
tu peux supporter le cri du peuplier
les yeux des offensés et ta propre histoire
comme si la mémoire à cette profondeur
prenait la couleur de la miséricorde
de même que l’air devient bleu…
- Jean-Pierre Lemaire, em "Poetas de França hoje. 1945-1995". [organização e tradução Mário Laranjeira]. São Paulo: Edusp, 1996.

§

BREVE BIOGRAFIA
Jean-Pierre Lemaire nascido em 1948, na cidade de sallaches, o poeta jean-pierre lemaire (que hoje leciona letras no khâgne, uma espécie de pré-vestibular francês) ainda é um ilustre desconhecido no brasil. sua poesia – pouca em quantidade – tem sido bastante valorizada na frança nos últimos anos. seus 9 livros de poesia são: les marges du jour (1981), l’exode et la nué (1982), visitation (1985), le coeur circoncis (1989), le chemin du cap (1993), l’annonciade (1997), l’intérieur du monde (2002), figure humaine (2008) & faire place (2013).

:: Fonte: escamandro

Homenagem ao Sr. Bezerra - Rubem Braga

Veleiros, de Damião Martins
Homenagem ao Sr. Bezerra

O incorporador é um Sr. Bezerra. Não chega a ser um bonito nome, é verdade, mas para mim é simpático, pois conheci vários cidadãos agradáveis com esse nome, quase todos do Nordeste, especialmente do Rio Grande do Norte — os Bezerra Dantas, por exemplo. A ideia fundamental do Sr. Bezerra parece ter sido esta: tirar a minha vista do mar. Imagino que o Sr. Bezerra seja meu leitor e notou que muitas vezes começo minhas crônicas falando do mar que vejo de minha varanda; é verde aqui, azul ali, nordeste semeando espumas, o raivoso e frio sudoeste, e barcos passando, e o farol da ilha e não sei mais o que — e o Sr. Bezerra se encheu. Imaginou então construir um edifício bastante largo e alto para me tapar a paisagem e o assunto. Deve ter gasto um bom dinheiro para prestar esse grande serviço às letras nacionais, pois na esquina da praia havia uma sólida casa revestida de pedras e rodeada de um parque. Uma grande equipe de trabalhadores desmantelou a casa e cortou as árvores, inclusive um belo pé de magnólia e um casal de pinheiros que há muitos anos faziam parte de minha paisagem. Sim, era alguma coisa minha que eles estavam derrubando — mas o advogado me disse que a lei não reconhece esse direito de propriedade visual e sentimental.
Erguido um grande tapume — onde seu nome brilha em uma tabuleta na qualidade de incorporador —, o Sr. Bezerra mandou fazer um imenso buraco, cavando a terra e a areia, para as fundações. Depois não sei o que aconteceu, com certeza alguma dificuldade de financiamento; sei que os operários se foram, ficando apenas um melancólico vigia, cuja função é olhar com tristeza aquele buraco.
Toda manhã, quando vou à praia, vejo o nome do Sr. Bezerra na tabuleta — e fico a imaginar com certa delícia que deve ser um senhor de meia-idade, muito bem-falante e de sotaque potiguar, que prometeu entregar o edifício prontinho em tantos meses e agora coça a cabeça e dá desculpas, falando em Banco, na Caixa, no Instituto, que faltam certas formalidades, houve dificuldades imprevisíveis, de qualquer modo ele deseja evitar um reajustamento, aliás acredita que no mês próximo as obras poderão ser reiniciadas, o senhor compreende a culpa é dessa política estúpida do governo, etc., etc.
Dois outros edifícios iniciados muito antes já estão quase prontos, mas o prédio do Sr. Bezerra é apenas um sonho pairando sobre um buraco. À medida que as outras obras progridem, o Sr. Bezerra deve coçar a cabeça com mais raiva, o que estimo sinceramente. Há casos de obras que ficam paradas anos e anos, e esse pensamento me parece encantador. É verdade que no caso do Sr. Bezerra ainda não se pode falar propriamente em obras, mas em desobras, pois ele não fez nada, só desfez. Talvez o Sr. Bezerra passe à história como um emérito construtor de buracos, título a que vários estadistas nossos fazem jus.
Enfim, enquanto o Sr. Bezerra estiver mal, tudo irá bem. Ele me roubou as árvores, mas me deixou um pedaço de mar com brisa e ondas. Os cavalheiros que entraram com dinheiro adiantado para ter um apartamento devem estar com raiva do Sr. Bezerra; eu, entretanto, desejo de todo o coração ao Sr. Bezerra uma excelente saúde, muitas alegrias, bons vinhos e boas mulheres — e um encalacramento financeiro prolongado e sutil, que entretenha com fúteis esperanças, anos a fio, o coração dos ex-futuros condôminos.
Um encalacramento que se prolongue através dos tempos e se torne tão crônico e dramático que acabará comovendo a todos, e só terminará no dia em que o Sr. Bezerra for enterrado (homenagem especial) no buraco enorme que ele abriu ali na esquina.


Rio, maio, 1958.

— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Rio de Janeiro: Record, 2010.

Saiba mais sobre o autor:

Michel Deguy - poemas

Vincent van Gogh - green wheat fields - 1890
poemas de michel deguy (edição bilíngue)

[…]
“Um poeta nunca está totalmente ausente”, ouvi dizer. Eis a questão. E substituo poeta por poema para propor a questão: um poema pode em algum momento estar totalmente ausente?
O que faz a chuva, por exemplo? E não falo do “fenômeno meteorológico”, mas da chuva que molha, aquela que recebe o astrofísico sem capa de chuva na saída do observatório em um certo dia. Falo de seu papel e de sua função dentro da peça, de seu efeito em nosso drama, in hoc theatro mundi.
Ela cola, cola a saia ao corpo, os cabelos ao crânio, a pele ao osso; ela encolhe, tira a maquiagem, denuncia a mímica; ela desincha, reduz, localiza; sob a chuva, o aparecer coincide com aquilo que aparece. Também não falo da idéia da chuva, mas daquilo que chamei, em outro momento, de figurante da encenação geral. O poema pega as coisas no ato, na circunstância, e testemunha sobre o que nos fazem.
[…]
.

(fragmento de L’énergie du désespoir)

[…]
« Un poète n’est jamais tout à fait absent », ai-je entendu dire. C’est la question. Et je substitue poème à poète pour faire la question: un poème peut-il être jamais tout à fait absent ?
Que fait la pluie par exemple? Et je ne parle pas du «phénomène météorologique» mais de la pluie qui mouille, celle que reçoit l’ astrophysicien sans imper à la sortie de l’observatoire ce jour -là. Je parle de son rôle et de sa fonction dans la pièce, de son effet dans notre drame, in hoc theatro mundi.
Elle colle, elle colle la jupe au corps, les cheveux au crâne, la peau à l’os ; elle retrousse, elle défarde, elle dénonce la mimique, elle dégonfle, elle réduit, elle localise ; sous elle l’ apparaître coïncide à ce qui apparaît. Je ne parle pas non plus de l’idée de la pluie mais de ce que j’ai appelé ailleurs un figurant de la mise en scène gênérale.Le poème prend les choses sur le fait, dans la circonstance, et témoigne de ce qu’elles nous font. »
[…]
- Michel Deguy, {tradução Marcos Siscar}. em "A rosa das línguas". [organização e tradução de Paula Glenadel e Marcos Siscar]. São Paulo: Cosac & Naify; Rio de Janeiro, 7 Letras; 2004.

§

O metrônomo
Quem bate
Uma frase de língua
Ao vento do jogo

Neuma do metro
O balancim confia
O tempo à dicção

Ritmo limiar é preciso
Que uma porta de palavras
seja aberta e fechada

Longa breve e pausa
O tempo passa
Ele repassará

Há como no ser
Um ar de família um ar de nada

A corrente de ares
vira as páginas
isso não faz um vinco
mas cinco

Só mais um momento
Senhor leitor
O tempo de uma palavra nua
Entre duas viradas

O que me canta
.......dobra-se
Aos calibres das cores
.

Le métronome
Qui bat là
Une phrase de langue
Au vent du je u

Neume du mètre 
Le balancier confie 
Le temps à la diction

Rythme seuil il faut 
Qu'une porte en mots 
soit ouverte et fermée

Longue brève et pause 
Le temps passe 
Il repassera

Il y a du comme dans l'être 
Un air de famille un air de rien

Le courant d'airs 
tourne les pages 
ça ne fait pas un pli 
mais six

Encore un instant 
Monsieur le lecteur 
Le temps d'un mot nu 
Entre deux tournes

Ce qui me chante
se plie
Aux calibres des couleurs
- Michel Deguy, em "A rosa das línguas". [organização e tradução de Paula Glenadel e Marcos Siscar]. São Paulo: Cosac & Naify; Rio de Janeiro, 7 Letras; 2004.

§

O amor é mais forte que a morte vocês diziam 
Mas a vida é mais forte que o amor e
A indiferente mais forte que a vida — A vida 
Minha ou sua e nossa de alguma maneira
É em conjunto a única seqüência de 
                              metamorfoses 
(O neotênico converte-se em herói sexuado
Depois no barrigudo careca que apodrece como 
                              um deus) 
E banhos-duchas no Letes todos os meses
Lutos laqueados, renascimentos frágeis, 
                              amnésias 
E um velho mudo dentro de nós há tanto 
                              tempo 
Sobrevive sem dor ao ossuário das crianças

    (45° Oeste 60° Norte)
.

L'amour est plus fort que la mort disiez-vous
Mais la vie est plus forte que l'amour et
L'indifférente plus forte que la vie – La vie
Mienne ou tienne et nôtre en quelque manière
Est ensemble la seule séquence de 
                              métamorphoses 
(Le néoténique se mue en héros à sexe
Plus tard en ventru chauve pourrissant comme 
                              un dieu) 
Et bains-douches au Lhété tons les mois
Deuils laqués, renaissances frêles, amnèses
Et un vieillard muet en nous depois longtemps
Survit sans douleur au charnier des enfants


     (40° Ouest 60° Nord)
- Michel Deguy, {tradução Marcos Siscar}. em "A rosa das línguas". [organização e tradução de Paula Glenadel e Marcos Siscar]. São Paulo: Cosac & Naify; Rio de Janeiro, 7 Letras; 2004.

§

Os dias não estão contados
Saibamos formar um cortejo de deportados
...........................................................[que cantam
Árvores com flancos de preces
Ofélia no flutuar do tempo
Assonâncias guiando um sentido ao leito do poema
Como designar aquilo que dá o tom?
A poesia como o amor arrisca tudo nos
..........................................[signos
.

Les jours ne sont pas comptés
Sachons former un convoi de déportés qui
................................................................[chantent
Arbres à flancs de prières
Ophélie au flottage du temps
Assonances guidant un sens vers le lit du poème
Comment appellerons-nous ce qui donne le ton?
La poésie comme l'amour risque tout sur des
..................................................[signes
- Michel Deguy, {tradução Marcos Siscar}. em "A rosa das línguas". [organização e tradução de Paula Glenadel e Marcos Siscar]. São Paulo: Cosac & Naify; Rio de Janeiro, 7 Letras; 2004.

§

Lançados…
Lançados se entrelaçam o amor e a comparação!
O amor compara a comparação que ama elogiar
com anáforas
……..e a lira sáfica tece
……..a incomparável beleza das bordas
……..à contraluz de um eclipse do Ser
(ora, afastando-me de barca da ilha-hotel
— aurora que você saudava à janela de Udaipur —
— não tínhamos saído do conto
mas estávamos protegidos, edificados até
por uma constante de Propp mais bela
do que os troféus fotoscópicos)
………………………………………….. …..Será
sempre cedo demais sempre tarde demais
portanto, é agora …………………… ……. …o
tardio demais e demasiado prematuro adeus
.

Élancés…
Elancés ils s’enlacent, l’amour et la comparaison!
L’amour compare la comparaison qui aime louer
avec des anaphores
……….et la lyre saphique tisse
……….l’incomparable beauté des bords
……….à contre-jour d’une éclipse de l’Être
(or m’éloignant en barque de l’île-hôtel
—aube que tu saluais à la fenêtre d’Udaïpur —
nous n ’étions pas sortis du conte
mais protégés, édifiés même
par une constante de Propp plus belle
que les trophées photoscopiques)
…………………………………..Ce sera
toujours trop tôt toujours trop tard
donc c’est maintenant….. ………..le
trop tardif et trop prématuré adieu
- Michel Deguy, {tradução  Paula Glenadel}. em "A rosa das línguas". [organização e tradução de Paula Glenadel e Marcos Siscar]. São Paulo: Cosac & Naify; Rio de Janeiro, 7 Letras; 2004.

§

Sorriso…
Sorriso
Quando cruzo com ela no seu rosto
No seu rosto assim como nos nossos
Nos rostos deles há
Restos daquele encontro precedente
.

Sourire…
Sourire
Quand je la croise sur son visage
Sur son visage comme sur les nôtres
Sur leur visages il y a
Des restes de la rencontre precedente
 Michel Deguy, em "Poetas de França hoje. 1945-1995. [organização e tradução Mário Laranjeira]. São Paulo: Edusp, 1996.


BREVE BIOGRAFIA
Michel Deguynasceu em Paris, em 1930. É conhecido como poeta, filósofo e professor de literatura. Foi membro dos grupos responsáveis pelas revistas Poésie, Critique, Les Temps Modernes. Presidiu o Collège International de Philosophie e a Maison des Écrivains. Recebeu na última década dois dos mais importantes prêmios literários franceses, o Grand Prix national de la poésie e o Grand Prix de Poésie de l'Académie Française. Uma antologia de seus poemas foi publicada no Brasil, com tradução de Paula Glenadel e Marcos Siscar, na coleção Ás de Colete, dirigida pelo poeta carioca Carlito Azevedo. Contemporâneo exato da geração brasileira que presenciou o nascimento e maturidade poética de Haroldo de Campos, Hilda Hilst, Ferreira Gullar, Mario Faustino, o poeta francês Michel Deguy publicou, entre outros, os livros Les Meurtrières (1959), Poèmes de la Presqu’île (1961), o maravilhoso Ouï dire (1966), Poèmes 1960-1970, Abréviations usuelles (1977), La Machine matrimoniale ou Marivaux (1982), Choses de la poésie et affaire culturelle (1986), L’Énergie du désespoir, ou d’une poétique continuée par tous les moyens (1998), entre outros.
:: Fonte: revistamododeusar

O murinho - Carlos Drummond de Andrade

Edvard Munch - The girls on the bridge
O murinho

A princípio, o território neutro do edifício Jandaia era ocupado por mamães e babás, capitaneando inocentes que iam tomar a fresca da tarde; à noite, vinham empregadas em geral, providas de namorados civis e militares.
Mas impõe-se a descrição sumária do território: simples área pavimentada em frente ao edifício, separando-se da calçada por uma pequena amurada de menos de dois palmos de altura, tão lisa que convidava a pousar e repousar. Os adultos cediam ao convite, e ali ficavam praticando sobre o tempo, a diarreia infantil, a exploração nas feiras, os casamentos e descasamentos da semana. (Na parte da tarde.) Ou não conversavam, pois outros meios de comunicação se estabeleciam naturalmente na sombra, mormente se o poste da Light, que ali se alteia, falhava a seu destino iluminatório, o que era frequente. (Na parte da noite.)
Na área propriamente dita, a garotada brincava, e era esse o título de glória do Jandaia. Sem playground, oferecia entretanto a todos, de casa ou de fora, aquele salão a céu aberto, onde qualquer guri pulava, caía, chorava, tornava a pular, até que a estrela Vésper tocava gentilmente a recolher, numa sineta de cristal que só as mães escutam — as mães sentadas no “murinho”, nome dado à mureta concebida em escala de anão.
E assim corria a Idade de Ouro, quando começaram a surgir, no expediente da tarde, uns rapazinhos e brotinhos de uniforme colegial, que foram tomando posse do terreno. Esse bando tinha o dinamismo próprio da idade — e, pouco a pouco, crianças, babás e mãezinhas se eclipsaram. Os invasores falavam essa língua alta e híbrida que se forja no mundo inteiro, com raízes no cinema, no esporte, na Coca-Cola e nos gritos guturais que se desprendem — quem não os distingue? — dos quadros “mudos” de Brucutu e Steve Roper. Divertido, mas um pouco assustador. E à noite, por sua vez, fuzileiros e copeiras tiveram de ir cedendo campo à horda que se renovava.
Os moradores do Jandaia começaram a queixar-se. O porteiro saiu a parlamentar, e desacataram-no. A rua era pública. Sentavam no murinho com os pés para fora. Não faziam nada de mau, só cantar e assobiar. Os chatos que pirassem.
Ouvindo-se tratar de chatos, por trás da cortina, os moradores indignaram-se. O telefone chamou a radiopatrulha, que foi rápida, mas a turminha ainda mais: ao chegar o carro, o porteiro estava falando sozinho.
No dia seguinte, não houve concentração juvenil, mas já na outra tarde, meio cautelosos, eles reapareceram. A esse tempo a rua se dividira. Havia elementos solidários com a gente do Jandaia, e outros que defendiam a nova geração; estes argumentavam que a rapaziada era pura: em vez de bebericar nos bares, batia papo inocente à luz das estrelas. Preferível à grudação dos casais suspeitos, que antes envergonhava a rua.
Mas o Jandaia tinha moradores idosos e enfermos, aos quais aquela bulha torturava; tinha também rapazes e meninas, que preferiam estudar e não podiam. Por que os engraçadinhos não iam fazer isso diante de suas casas?
Como não houvesse condomínio, e os moradores dos fundos, livres da algazarra, se mostrassem omissos, uma senhora do segundo andar assumiu a ofensiva e txááá! um balde de água suja conspurcou a camisa esporte dos rapazes e o blue jeans das garotas. Consternação, raiva, debandada — mas no dia seguinte voltaram. E voltaram e tornaram a voltar.
Ontem pela manhã, um pedreiro começou a furar o cimento do murinho, e a colocar nele uma grade de ferro, de pontas agudas. Vaquinha dos mártires do Jandaia? Não: outra iniciativa pessoal de um deles, coronel reformado e solteirão. “Logo vi que ele não tem filho!” — comentou uma das garotas, com desprezo. Mas a turma está desoladíssima, e nunca mais ninguém ousará sentar no murinho — nem mesmo as mansuetas babás e mamães, nem mesmo os casais noturnos.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.