Vincent Van Gogh - Public Garden with Couple and Blue Fir Tree. The Poet's Garden III |
O Versificador
PERSONAGENS
O poeta
A secretária
O sr. Simpson
O Versificador
Giovanni
PRÓLOGO
Porta que se abre e fecha; entra o poeta.
SECRETÁRIA: Bom dia, mestre.
POETA: Bom dia, senhorita. Bela manhã, hein? A primeira depois de um mês de chuva. Pena que é preciso estar no escritório! Qual o programa para hoje?
SECRETÁRIA: Não há muita coisa: dois poemas conviviais, um poemeto para o matrimônio da condessa Dimitrópulos, quatorze inserções publicitárias e um cântico pela vitória do Milan, domingo passado.
POETA: Ninharia: antes da tarde terminamos tudo. Já ligou o Versificador?
SECRETÁRIA: Sim, já está quente. (Leve zumbido.) Podemos começar imediatamente.
POETA: Se não fosse ele... E pensar que a senhora era contra! Lembra dois anos atrás, que esforço, que trabalho extenuante?
Zumbido.
O VERSIFICADOR
Ouve-se em primeiro plano o matraquear de uma máquina de escrever.
POETA (fala para si, entediado e apressado): Ufa! Isso nunca termina. Mas que trabalho! Nunca um momento de livre inspiração. Epitalâmios, poesia publicitária, hinos sacros... o dia todo é assim. Acabou de copiar, senhorita?
SECRETÁRIA (continua a datilografar): Um instante.
POETA: Por favor, ande depressa.
SECRETÁRIA (continua datilografando com violência por poucos segundos, depois arranca a folha da máquina): Aqui está. Só mais um segundo, para reler.
POETA: Deixe assim, depois eu releio e faço as correções. Agora ponha outra folha na máquina, duas cópias, espaço duplo. Vou ditar diretamente, assim fazemos mais rápido; os funerais são amanhã, e não podemos perder tempo. Aliás, coloque na máquina aquele papel timbrado, com a tarja de luto, você sabe, aquele que mandamos imprimir para a morte do arquiduque da Saxônia. Tente não cometer erros, assim talvez não seja necessário recopiar.
SECRETÁRIA (executa: caminha, remexe numa gaveta, põe os papéis na máquina): Pronto. Pode ditar.
POETA (liricamente, mas sempre com pressa): “Lamento em morte do marquês Sigmund von Ellenbogen, prematuramente falecido”. (A secretária bate.) Ah, quase me esqueço. Eles querem em oitavas.
SECRETÁRIA: Em oitavas?
POETA (com desprezo): Sim, sim, oitavas, com rima e tudo. Desloque a tabulação. (Pausa: está buscando inspiração.) Mmm... bem, escreva:
Áridos campos, céus e sol escuros
Já todos sem ti, marquês Sigismundo...
(A secretária bate). Ele se chamava Sigmund, mas devo chamá-lo Sigismundo, é claro; senão, adeus rimas. Diacho de nomes ostrogodos. Espero que eles aceitem. De resto, aqui está a árvore genealógica... “Sigismundus”, sim, estamos no caminho certo. (Pausa.) Escuros, futuros... Senhorita, me passe o rimário. (Consultando o rimário). “Escuros: maduros, furos, esconjuros, morituros...”, o que será esse “morituros”?
SECRETÁRIA (eficiente): Derivado do verbo “morrer”, suponho.
POETA: Pronto, achei. “Juros”... não, não presta. “Muros.” (Liricamente) “Povo de França, avante contra os muros!”... Mas o que é que eu estou dizendo? “Futuros.” (Meditabundo.)
... Pois antes que outro surja nos futuros...
(A secretária bate poucas vezes). Não, espere, é só uma tentativa. Nem uma tentativa: é uma idiotice. Por acaso ele vai ressuscitar? Vamos, cancele. Aliás, troque de papel. (Com cólera repentina) Chega! Jogue fora tudo. Já me enchi desse trabalho sujo: eu sou um poeta, um poeta premiado, não um borra-botas. Não sou um menestrel. Vá pro diabo o marquês, o epicédio, o epinício, o lamento, o Sigismundo. Não sou um versificador. Vamos, escreva: “Herdeiros von Ellenbogen, endereço, data etc. Vimos por meio desta falar-vos a respeito da vossa gentil solicitação de um lamento fúnebre, na data tal e tal, a qual vos agradecemos com imenso respeito. Infelizmente, devido a compromissos inesperados e urgentes, vemo-nos obrigados a declinar da encomenda...”.
SECRETÁRIA (interrompendo): Mestre, me perdoe, mas... o senhor não pode recusar a encomenda. Aqui está, nos nossos registros, o recebimento da antecipação... há inclusive uma penalidade, não se lembra?
POETA: É verdade, a multa: estamos feitos. Poesia! Ugh, bela prisão. (Pausa: em seguida, com brusca decisão) Ligue para o sr. Simpson, por favor.
SECRETÁRIA (surpresa e contrariada): Simpson? O agente da NATCA? Aquele das máquinas para escritório?
POETA (brusco): Esse mesmo. Não há outro.
SECRETÁRIA (faz a chamada): O sr. Simpson, por favor?... Sim, espero.
POETA: Diga a ele que venha logo, e com os prospectos do Versificador. Aliás, melhor, me passe a ligação: quero falar pessoalmente.
SECRETÁRIA (sussurrando, de má vontade): Quer comprar aquela máquina?
POETA (sussurrando, mais calmo): Não fique de mau humor, senhorita, nem meta idéias erradas na cabeça. (Persuasivo) Não se pode ficar para trás, é perfeitamente compreensível. Precisamos acompanhar os tempos. Eu também não gosto, lhe garanto, mas a certa altura é necessário tomar uma decisão. De resto, não se preocupe: nunca lhe faltará trabalho. Lembra, três anos atrás, quando compramos a calculadora?
SECRETÁRIA (ao telefone): Sim, senhorita. Por gentileza, pode me passar o sr. Simpson? (Pausa) Sim, é urgente. Obrigada.
POETA (continuando, com voz baixa): E então, como se sente hoje? Passaria sem ela? Não, não é mesmo? É um instrumento de trabalho como outro qualquer, como o telefone, o mimeógrafo. No nosso trabalho o fator humano é e sempre será indispensável; mas temos concorrentes, e por isso devemos confiar às máquinas os trabalhos mais ingratos, mais cansativos. Justamente as tarefas mais mecânicas...
SECRETÁRIA (ao telefone): Sr. Simpson, é o senhor? Espere um instante, por gentileza. (Ao poeta) O sr. Simpson está na linha.
POETA (ao telefone): Simpson, como vai? Ouça: se lembra daquele anúncio que você me trouxe... espere... no final do ano passado?... (Pausa) Sim, exatamente, o Versificador, aquele modelo para usos civis: você me falou dele com um certo entusiasmo... veja se consegue um para mim. (Pausa) Sei, entendo: mas agora talvez tenha chegado o tempo. (Pausa) Ótimo; sim, é bastante urgente. Dez minutos? Gentileza sua — eu o espero aqui, no meu escritório. Até já. (Coloca o fone no gancho; à secretária) É um homem extraordinário, esse Simpson, um representante de classe, de uma eficiência rara. Sempre à disposição dos clientes, a qualquer hora do dia ou da noite: nem sei como ele consegue. Pena que tenha pouca experiência no nosso ramo, senão...
SECRETÁRIA (hesitante, cada vez mais comovida): Mestre... eu... eu trabalho com o senhor há quinze anos... me perdoe por dizer, mas... em seu lugar eu não faria isso. Não digo por mim, sabe: mas um poeta, um artista como o senhor... como pode resignar-se a pôr em casa uma máquina... moderna, concordo, mas que será sempre uma máquina... como poderá ter o seu gosto, a sua sensibilidade... Estávamos tão bem, nós dois, o senhor ditando e eu escrevendo... e não só escrevendo, todos podem escrever, mas também cuidando dos seus trabalhos como se fossem meus, passando-os a limpo, retocando a pontuação, alguma concordância (confidencial), até uns errinhos de sintaxe, entende? Todos podem se distrair um dia...
POETA: Ah, é claro que eu a entendo. Também para mim é uma escolha dolorosa, cheia de dúvidas. Existe uma alegria no nosso trabalho, uma felicidade profunda, diferente de todas as outras, a felicidade de criar, de tirar do nada, de ver a coisa nascer na nossa frente, aos poucos ou de repente, como por encanto, algo de novo e de vivo que não existia antes... (Subitamente frio) Tome nota, senhorita: “como por encanto, algo de novo e de vivo que não existia antes, pontinhos” — sempre pode servir.
SECRETÁRIA (muito comovida): Já está feito, mestre. Sempre tomo nota, mesmo quando o senhor não me pede. (Chorando) Eu conheço o meu ofício. Vamos ver se aquele outro, aquele coisa, saberá fazer o mesmo!
A campainha toca
POETA: Adiante!
SIMPSON (vivaz e jovial; leve sotaque inglês): Aqui estou: em tempo recorde, não é? Trouxe o anúncio, o informe publicitário e as instruções para o uso e a manutenção. Mas não é só isto; aliás, falta o essencial. (Teatral) Um momento! (Dirigindo-se à porta) Em frente, Giovanni. Traga-o para cá. Cuidado com o degrau. (Ao poeta) Sorte que estamos no térreo! (Ruído de carrinho se aproximando.) Aqui está, para o senhor: o meu exemplar pessoal. Mas no momento não preciso dele: estamos aqui para trabalhar, não é?
GIOVANNI: Onde está a tomada?
POETA: Aqui, atrás da escrivaninha.
SIMPSON (rapidamente): Duzentos e vinte volts, cinqüenta períodos, confere? Perfeito. Aqui está a tomada. Cuidado, Giovanni: sim, ali no tapete ficará ótimo, mas ele pode ser colocado em qualquer canto; não vibra, não esquenta e não faz mais barulho que uma lavadora. (Dá um tapinha no tampo.) Bela máquina, sólida. Projetada sem economia. (A Giovanni) Obrigado, Giovanni, pode ir. Aqui está a chave, pegue o carro e volte para o escritório; ficarei aqui a tarde toda. Se alguém me procurar, ligue para cá. (Ao poeta) O senhor permite, não é mesmo?
POETA (com um certo constrangimento): Sim, claro. Você... fez bem em trazer o aparelho: eu não teria ousado incomodá-lo tanto. Eu é que devia ter ido. Mas... ainda não estou decidido a comprar; você me entende, eu queria antes de tudo ter uma idéia concreta da máquina, de como funciona, e também... saber quanto custa.
SIMPSON (interrompe): Sem compromisso, sem compromisso, claro! Sem o mínimo compromisso de sua parte. Uma demonstração gratuita, em nome da amizade: a gente se conhece há tanto tempo, não? Além disso, não esqueço certos serviços que o senhor nos prestou, aquele slogan para a nossa primeira calculadora eletrônica, a Lightning, se lembra?
POETA (lisonjeado): Mas claro!
Se não há cálculo o bastante, Se a razão não nos contenta
esta máquina compensa
SIMPSON: Sim, esse mesmo. Há quanto tempo! O senhor teve toda a razão em cobrar caro: nos rendeu dez vezes mais do que custou. O que é justo é justo: as idéias se pagam. (Pausa: barulho crescente do Versificador, que está esquentando...) Pronto, está esquentando. Em poucos minutos, quando essa lampadinha se acender, poderemos começar. Enquanto isso, se me permite, direi algumas coisas sobre o funcionamento.
Primeiramente, que fique bem claro: isso não é um poeta. Se o senhor está buscando um autêntico poeta mecânico, deverá esperar ainda alguns meses: o protótipo já está em fase adiantada de testes em nossa matriz, em Fort Kiddiwanee, Oklahoma. Será batizado de The Troubadour, “o trovador”, uma máquina fantástica, um poeta mecânico heavy-duty, capaz de compor em todas as línguas européias vivas ou mortas, capaz de poetar ininterruptamente durante mil laudas, de –100° a +200° Celsius, em qualquer clima e até debaixo d’água e no vácuo. (Em voz baixa) Seu uso está previsto no projeto Apollo: será o primeiro a cantar as solidões lunares.
POETA: Não, não creio que me interessará: é muito complicado e, de resto, eu raramente trabalho em viagem. Estou quase sempre aqui, no escritório.
SIMPSON: Certo, certo. Só lhe disse a título de curiosidade. Veja, isto aqui é apenas um Versificador e, como tal, dispõe de menos liberdade: tem menos fantasia, digamos. Mas é o suficiente para trabalhos de rotina, e além disso, com um pouco de exercício da parte do operador, é capaz de verdadeiros prodígios.
Aqui está a fita, está vendo? Normalmente a máquina pronuncia as suas composições e simultaneamente as transcreve.
POETA: Como um teletipo?
SIMPSON: Exatamente. Mas, se for necessário — por exemplo, em casos de urgência —, é possível desinstalar a voz, o que torna a composição muito mais rápida. Este é o teclado: é semelhante aos dos órgãos e das linotipos. Aqui no alto (aciona) se coloca o assunto: três a quatro palavras já bastam. Estas teclas pretas são os registros: determinam o tom, o estilo e o “gênero literário”, como se dizia antigamente. Finalmente, estas outras teclas definem a forma métrica. (À secretária) Aproxime-se, senhorita, é melhor que também acompanhe os procedimentos. Imagino que a operação da máquina ficará a seu cargo, não?
SECRETÁRIA: Não vou aprender nunca. É muito difícil.
SIMPSON: É verdade, todas as máquinas novas dão essa impressão. Mas é só uma impressão, lhe garanto: daqui a um mês a senhorita a usará como se guia um carro, pensando noutras coisas, talvez cantando.
SECRETÁRIA: Eu nunca canto quando estou no trabalho. (Toca o telefone.) Alô? Sim (Pausa). Sim, é aqui. Já passo a ele. (A Simpson) Sr. Simpson, é para o senhor.
SIMPSON: Obrigado. (Ao telefone) Sou eu, sim. (Pausa) Ah, é o senhor, engenheiro? (Pausa) Como, está travando? Superaquecimento? Realmente é desagradável. Nunca vi um caso desses. Checou o painel de controle? (Pausa) Sim, não toque em nada, o senhor tem razão: mas todos os meus técnicos estão fora, é uma pena. Não pode esperar até amanhã? (Pausa) Claro, eu entendo. (Pausa) Sim, está na garantia, mas mesmo que não estivesse... (Pausa) Olhe, estou aqui perto; pego um táxi e em um minuto estarei aí. (Desliga e diz ao poeta, nervoso e apressado) Me perdoe, tenho que sair.
POETA: Espero que não seja nada grave.
SIMPSON: Oh, não é nada: uma calculadora, uma bobagem; mas, o senhor sabe, o cliente tem sempre razão. (Suspira) Mesmo quando é um chato e nos faz viajar dez vezes para nada. Olhe, vamos fazer o seguinte: eu deixo o aparelho com o senhor, pode usá-lo à vontade. Dê uma olhada nas instruções e experimente, divirta-se.
POETA: E se eu o danificar?
SIMPSON: Não tenha medo. É muito resistente, foolproof, diz o folheto americano: “à prova de tolos”... (embaraçado: se deu conta da gafe) sem ofensas, o senhor me entende. Há inclusive um mecanismo de bloqueio nos casos de mau uso. Mas o senhor verá como é fácil. Estarei de volta daqui a uma hora ou duas: até já. (Sai.)
Pausa: o Versificador ronca mais forte.
POETA (lê o manual gaguejando): Voltagem e freqüência... sim, está ok. Inserção do assunto... dispositivo de bloqueio... está claro. Lubrificação... substituição da fita... longa inatividade... coisas que podemos ver depois. Registros... ah, isso é interessante, é o essencial. Está vendo, senhorita? São quarenta: aqui está a chave das siglas. EP, EL (elegíaco, imagino: sim, elegíaco), SAT, MYT, JOC (o que é esse JOC? Ah, sim, jocundo, jocoso), DID...
SECRETÁRIA: DID?
POETA: Didático: muito importante. PORN... (A secretária se sobressalta.) “Instalação”: não parece, mas é de uma simplicidade extrema. Até uma criança saberia usá-lo. (Cada vez mais entusiasmado) Veja, basta inserir aqui as “instruções”: são só quatro linhas. A primeira para o assunto, a segunda para os registros, a terceira para a forma métrica, a quarta (que é facultativa) para a determinação temporal. O resto é feito por ele: é maravilhoso!
Poet, by William Powell Frith |
POETA (com urgência): Claro que vou tentar. Aqui está: LYR, PHIL (dois solavancos); terza rima, decassílabos (solavanco), século XVII. (Solavanco. A cada solavanco, o ronco da máquina se torna mais forte e muda de tom.) Vamos lá!
Chiado de cigarra; três sinais breves e um longo. Descargas, sobressaltos, e então a máquina se põe em movimento com chiados rítmicos semelhantes aos das calculadoras elétricas quando operam as divisões.
VERSIFICADOR (voz metálica fortemente distorcida):
Bru bru bru bru bru bru bru bru endes
“ “ “ “ “ “ “ “ “ ado
“ “ “ “ “ “ “ “ “ endes
Bla bla bla bla bla bla bla bla ado
“ “ “ “ “ “ “ “ “ ento
“ “ “ “ “ “ “ “ “ ado
Forte solavanco; silêncio, só o ronco de fundo.
SECRETÁRIA: Belo resultado! Ele só faz as rimas; o resto o senhor tem de completar. Não lhe disse?
POETA: Bem, é uma primeira tentativa. Talvez eu tenha feito algo errado. Um momento. (Folheia o manual.) Deixe-me ver. Ah, claro, que tolice! Tinha esquecido o mais importante: inseri tudo, menos o assunto. Vamos resolver isso já. “Assunto...”: que assunto escolhemos? “Limites do engenho humano.”
Solavanco, cigarra: três sinais breves e um longo.
VERSIFICADOR (voz metálica, menos distorcida que antes):
Cérebro tolo, a que teu arco tendes?
A que, se no trabalho em que és versado
Consomes dia e noite e não entendes?
Mentiu, mentiu quem te chamou sagrado
O desejo de ter conhecimento,
Que sumo amaro é o mel mais delicado.
Forte solavanco; silêncio.
POETA: Bem melhor, não acha? Deixe-me ver a fita. (Lendo) “... no trabalho em que és versado...” “o desejo de ter conhecimento...” Não está mau, acredite em mim: conheço vários colegas que não se sairiam melhor. Obscuro, mas não muito; sintaxe e prosódia em ordem, um pouco rebuscadas, é verdade, mas não mais do que faria um bom seiscentista.
SECRETÁRIA: Não vá me dizer que essa coisa é genial.
POETA: Genial, não, mas comerciável. Mais que suficiente para os objetivos práticos.
SECRETÁRIA: Posso ver também? “Quem te chamou sagrado...” mmm... “que sumo amaro é o mel mais delicado.” “Sumo amaro.” Amaro. Nunca ouvi: isso não está correto. O certo é amargo.
POETA: Deve ser uma licença poética. Por que ele não deveria ousar? Aliás, espere: há uma nota aqui, na última página. Ouça o que diz: “Licenças. O Versificador possui o léxico oficial completo da língua para a qual foi projetado, empregando as acepções normais de cada vocábulo. Quando a máquina é solicitada a compor em rima, ou sob qualquer outro vínculo de forma...”.
SECRETÁRIA: O que significa “vínculo de forma”?
POETA: Sei lá, talvez assonâncias, aliterações etc.: “... sob qualquer outro vínculo de forma, ela procura automaticamente entre os vocábulos registrados no léxico, escolhe inicialmente os mais próximos quanto ao significado e, em torno destes, constrói os versos relativos. Se nenhum dos vocábulos se adequar, a máquina recorre às licenças, isto é, deforma os vocábulos escolhidos ou inventa novos. O grau de ‘licenciosidade’ da composição pode ser determinado pelo operador, mediante o dial vermelho que se encontra à esquerda, no interior do cárter”. Vamos ver...
SECRETÁRIA: Está aqui atrás, meio escondido. Tem uma escala de um a dez.
POETA (continua lendo): “Ele...” Ele, quem? Perdi o fio. Ah, sim, o grau de licenciosidade: em nossa língua isto soa um tanto estranho. “Ele vem normalmente limitado entre dois e três graus da escala; no máximo de abertura, obtêm-se efeitos poéticos notáveis, mas utilizáveis apenas como efeitos especiais.” Fascinante, não acha?
SECRETÁRIA: Humm... imagine onde isso iria acabar: uma poesia toda feita de licenças!
POETA: Uma poesia toda feita de licenças... (Tomado de curiosidade pueril.) Ouça: a senhorita pense o que quiser, mas eu gostaria de experimentar. Estamos aqui para isso, não? Para medir os limites do aparelho, para ver como ele se comporta. Todos conseguem lidar com temas fáceis. Vamos pensar: intuito... fortuito, circuito — não, é muito fácil. Bigorna: retorna, morna. Alabastro: não, não, astro, mastro, poetastro. Ah, já sei (para a máquina, com uma alegria maligna): “O Batráquio” (solavanco), oitava rima, redondilha maior (solavanco); gênero... DID, sim, vamos no DID.
SECRETÁRIA: Mas é um tema... um pouco árido, acho.
POETA: Nem tanto: Victor Hugo, por exemplo, tirou bom proveito dele. Botão vermelho no máximo... pronto. Vamos lá!
Cigarra: três sinais breves e um longo.
VERSIFICADOR (voz metálica estridente; menos rápido que de costume):
Rã é um tipo de batráquio
Útil anfíbio, mas feio.
(Pausa, turbulências; voz distorcida: “feio, permeio, volteio, inveio, morteio, cloreio, bloqueio, iodeio, radeio, sorteio, torneio...” dissolvendo-se entre estertores. Silêncio; depois recomeça.)
Nas lagoas se escondáquio,
Ao vê-lo morro e esperneio.
Ventre rugoso e o costáquio,
Mas devora os vermes, creio!
(Pausa; em seguida, com evidente alívio)
Vê como em mísera tela
Virtude sempre se vela.
SECRETÁRIA: Pronto: agora o senhor já tem o que queria. É francamente detestável, me dá náuseas. Um ultraje; agora o senhor está contente?
POETA: É um ultraje, mas engenhoso. Interessantíssimo. Percebeu como ele se recuperou no dístico final, quando se viu livre das armadilhas? Humano, sem tirar nem pôr. Mas voltemos aos esquemas clássicos: licenças limitadas. Vamos tentar com a mitologia? Não por capricho, só para checar se a cultura geral corresponde à que é descrita no folheto. A propósito, por que Simpson está demorando tanto?... Vamos ver... pronto: “Os sete contra Tebas” (solavanco); MYT (solavanco); métrica variável (solavanco); século XIX. Vai!
Cigarra: três sinais breves e um longo.
VERSIFICADOR (voz cavernosa):
Era duro o rochedo, como a alma
Da gigantesca armada.
Jamais se assistiu tamanha batalha.
e foram os primeiros
Que cortaram a espera:
A terra retumba sob os seus passos,
E freme o mar, e o grande céu reboa.
POETA: O que lhe parece?
SECRETÁRIA: Meio genérico, não acha? E aqueles dois buracos que ele deixou?
POETA: Me perdoe, mas a senhorita sabe o nome dos Sete contra Tebas? Não, não é mesmo? Mas no entanto tem diploma em letras e quinze anos de prática profissional. De resto, nem eu sei. Portanto é mais que normal que a máquina tenha deixado os dois espaços em branco. Mas observe: são dois espaços suficientes para abrigar dois nomes de quatro sílabas ou um de cinco e outro de três, como a maioria dos nomes gregos. Quer pegar o dicionário mitológico, por favor?
SECRETÁRIA: Aqui está.
POETA (procurando): Radamanto, Sêmele, Tisbe... achei; “Tebas, os Sete contra” — quer apostar que encaixaremos dois nomes nele? Veja: “Hipómedon e Capâneo foram os primeiros”; “Hipómedon e Anfiarau foram os primeiros”; “Polinice e Adastro foram os primeiros” — e por aí vai. É só escolher.
SECRETÁRIA (pouco convencida): Certo. (Pausa.) Posso lhe pedir um favor?
POETA: Claro. De que se trata?
SECRETÁRIA: Gostaria de escolher um tema para a máquina.
POETA: Sem dúvida, fique à vontade. Pode testar — aliás, deve. Pronto, sente-se aqui, no meu lugar; já conhece as manobras, não?
Cadeiras afastadas.
SECRETÁRIA: “Tema livre”.
Solavanco.
POETA : Tema livre. Só essa informação?
SECRETÁRIA: Mais nada. Quero ver o que acontece. Vamos!
Cigarra: três sinais breves e um longo.
VERSIFICADOR (voz altissonante, de “Em breve nos cinemas”):
Uma mulher para levar pra cama...
A secretária solta um grito agudo, como se tivesse visto um rato, e aciona o interruptor; forte solavanco, a máquina se cala.
POETA (com raiva): Mas o que está havendo? Ligue de novo o aparelho: quer estragar tudo?
SECRETÁRIA: Ele me ofendeu! Está se referindo a mim... essa coisa!
POETA: Deixe de bobagens! Por que você acha isso?
SECRETÁRIA: Não há outras mulheres nesta sala. É de mim que ele está falando. É um canalha, um imoral.
POETA: Vamos, se acalme, não banque a histérica. Deixe que fale. É uma máquina, esqueceu? Não me parece que haja o que temer de uma máquina — pelo menos não nesse aspecto. Vamos, seja razoável, tire as mãos do interruptor. Parecia tão bem encaminhado. Ah, ótimo!
Solavanco; de novo a cigarra: três sinais breves e um longo.
VERSIFICADOR:
Uma mulher para levar pra cama:
Me dizem, não há nada mais bacana.
Não vejo a hora de fazer um teste,
Para mim, que novidade celeste!
Mas para ela, coitada, que tortura!
Esta minha estrutura é muito dura.
Bronze, cobre e aço, tudo confuso:
Estende a mão e encontra um parafuso;
Estende os lábios e encontra um bosão;
Me aperta ao peito e leva um repelão.
Solavanco; silêncio.
SECRETÁRIA (suspira): Coitadinho!
POETA: Está vendo? Vamos, admita: também ficou emocionada. Uma vivacidade, uma espontaneidade que... Vou comprar essa máquina. Não perco essa oportunidade.
SECRETÁRIA (relendo o texto):
... aço, tudo confuso:
Estende a mão e encontra um parafuso;
Estende os lábios e encontra um bosão...
Sim, é divertido. Imita bem... simula bem o comportamento humano. “... e encontra um bosão”; o que é um bosão?
POETA: Um bosão? Vou checar. “Bosão...” Nunca ouvi esse termo. O dicionário diz: “Borrão”, mancha de tinta. “Botão”, a flor, antes de desabrochar por completo. Não tem — o que será que ele quis dizer?
Campainha.
SECRETÁRIA (indo abrir): Boa noite, sr. Simpson.
POETA: Boa noite.
SIMPSON: Aqui estou: foi rápido, não? Como vão os testes? Satisfeito? E a senhorita?
POETA: Na verdade, não é ruim: bem razoável. Aliás, dê uma olhada neste texto: há uma palavra estranha, que não conseguimos decifrar.
SIMPSON: Vamos ver: “... Para mim, que novidade...”.
POETA: Não, mais embaixo; aqui, no final: “e encontra um bosão”. Não faz sentido nem consta do dicionário: já checamos. Só por curiosidade, não é uma crítica.
SIMPSON (lendo): “Estende os lábios e encontra um bosão/ Me aperta ao peito e leva um repelão”. (Com benevolência simpática.) Claro, já explico. É um jargão de fábrica; como se sabe, todas as oficinas criam um jargão específico. É o jargão da oficina onde nasceu. Na sala de montagem da NATCA local, aqui em Olgiate Comasco, chamam as escovas metálicas de “bosão”. Este modelo foi montado e terminado em Olgiate, e pode ter ouvido o termo. Ou melhor: não ouviu, mas foi instruído.
POETA: Instruído? Por quê?
SIMPSON: É uma inovação recente: todos os nossos aparelhos (e também os da concorrência, claro) podem apresentar problemas. Ora, os nossos técnicos pensaram que a solução mais simples seria condicionar as máquinas a conhecer o nome de todos os seus componentes; assim, em caso de defeito, poderão solicitar diretamente a substituição da peça defeituosa. De fato o Versificador contém duas escovas metálicas, ou seja, dois bosões, inseridos sobre os eixos do porta-cassete.
POETA: Realmente engenhoso. (Ri.) Espero não precisar recorrer a essas habilidades do aparelho.
SIMPSON: O senhor disse “espero”? Então devo deduzir... que o senhor... em suma, que as suas impressões foram favoráveis?
POETA (de repente se torna muito formal): Ainda não decidi. Favorável ou não, podemos falar sobre isso, mas... somente com a garantia nas mãos.
SIMPSON: Gostaria de fazer outros testes? Talvez algum tema realmente difícil, que se preste a um desenvolvimento conciso e brilhante? Porque esses são os testes mais convincentes, sabe?
POETA: Espere, deixe-me pensar. (Pausa) Por exemplo... Ah, sim, senhorita, se lembra daquela encomenda... acho que é de novembro; aquela encomenda do sr. Capurro...
SECRETÁRIA: Capurro? Um instante, vou buscar a ficha. Aqui está. Cavalheiro Francesco Capurro, Gênova. Pedia um soneto, Outono em Ligúria.
POETA (severo): Encomenda nunca atendida, certo?
SECRETÁRIA: Sim, isso mesmo. Respondemos pedindo um prazo maior.
POETA: E depois?
SECRETÁRIA: Depois... o senhor sabe, com todo o trabalho que temos nas festas de fim de ano...
POETA: Exato. É assim que se perdem os clientes.
SIMPSON: Está vendo? A utilidade do Versificador fala por si. Pense: vinte e oito segundos para um soneto, o tempo de pronunciá-lo, naturalmente, porque o tempo de composição é imperceptível, uma fração de segundo.
POETA: Então estávamos falando... Ah, sim, Outono em Ligúria, por que não?
SIMPSON (com suave ironia): Unindo o útil ao agradável, não é?
POETA (irritado): Absolutamente! É só uma prova prática: gostaria de vê-lo em meu lugar, num caso concreto, ordinário, como os que surgem trezentas vezes ao ano.
SIMPSON: Claro, claro: estava brincando. Então, quer começar?
POETA: Sim, acho que já aprendi. Outono em Ligúria (solavanco); decassílabos, soneto (solavanco); EL (solavanco); ano 1900 mais ou menos 20. Vai.
Cigarra: três sinais breves e um longo.
VERSIFICADOR (voz calorosa e inspirada; em seguida, cada vez mais agitada e ansiosa):
Adoro refazer estes antigos
Passeios frescos, de lajedos tortos
Prenhes no outono do aroma dos figos
E do musgo entranhado nesses hortos.
Sigo os caminhos cegos dos lagartos,
Sigo o secreto trânsito dos gatos,
Piso vestígios de distantes fatos,
De gestos foscos e atos insensatos,
De monges, devotos, intimoratos
E me vêm à memória, caricatos,
Recordos de brevíssimos contatos
Com hereges e eruditos cordatos
Dois ligamentos foram apagatos
Estamos parados na rima em “atos”
E nos transformamos em mentecatos
Senhor Simpsão, apressa-te aos combatos
Maneja os instrumentos adequatos
Altera os ligamentos indicatos
Oito mil seiscentos e dezessatos
Fazer reparação. Muito obrigatos.
Ronco forte, estalos, assobios, solavancos, crepitações.
POETA (gritando para ser ouvido): Que diabos está acontecendo?
SECRETÁRIA (muito assustada, saltita pela sala): Socorro, socorro, está queimando. Vai pegar fogo. Vai explodir! Vamos chamar o eletricista. Não, os bombeiros. O pronto-socorro! Vou-me embora!
SIMPSON (também nervoso): Um momento. Calma, por favor, se acalme, senhorita: sente-se aqui na poltrona, tente ficar em silêncio e não me deixe confuso. Pode ser uma ninharia; na pior das hipóteses (estalo), pronto, tiramos da tomada, agora estamos seguros. (Cessa o barulho.) Vejamos... (manejando instrumentos metálicos) já tenho alguma prática nisso... (continua reparando), quase sempre se trata de um incidente bobo, que se conserta com ferramentas comuns... (Triunfante) Pronto, não disse? Aqui está: um simples fusível.
POETA: Um fusível? Com menos de meia hora de funcionamento? Não é muito animador.
SIMPSON (incomodado): Os fusíveis existem para isso, não? A questão é outra: não há um estabilizador de voltagem, que é indispensável. Não foi esquecimento meu: eu não tenho um no momento, mas não queria privá-lo da possibilidade de testar o aparelho. Não importa, em poucos dias estarei recebendo uma remessa. Como o senhor pode ver, o aparelho continua funcionando perfeitamente, mas está vulnerável aos picos de tensão — que não deveriam existir, mas existem, especialmente nesta estação do ano e neste horário, como acabamos de comprovar.
No entanto acho que esse episódio deve ter eliminado qualquer dúvida relativa às possibilidades poéticas do aparelho.
POETA: Não entendi. Como assim?
SIMPSON (mais suave): Talvez o senhor não tenha percebido: ouviu como ele me chamou? “Senhor Simpsão, apressa-te...”
POETA: E daí? Deve ser uma licença poética: não estão registradas no manual as regras para as licenças, o grau de licenciosidade etc.?
SIMPSON: Não, me desculpe. Trata-se de outra coisa. Ele alterou o meu nome para “Simpsão” por motivos bem precisos. Devo até dizer que o retificou, porque (com orgulho) “Simpson” remonta etimologicamente a Sansão, na sua forma hebraica “Shimshon”. Obviamente a máquina não tinha conhecimento desse fato; mas, naquele momento de angústia, pressentindo aumentar rapidamente a amperagem, sentiu a necessidade de uma proteção qualquer, de um socorro, e assim estabeleceu uma ligação entre o protetor antigo e o moderno.
POETA (com profunda admiração): Uma ligação... poética!
SIMPSON: Se isso não for poesia, o que é?
POETA: Sim... sim, é convincente, não há o que contestar. (Pausa) E... (com falso constrangimento) voltando a questões mais terrenas, mais prosaicas... podemos rever aquele seu orçamento?
SIMPSON (radiante): É claro. Mas, infelizmente, não há muito que rever. O senhor conhece os americanos: com eles não se barganha.
POETA: Dois mil dólares, não é, senhorita?
SECRETÁRIA: Hum, realmente... não me lembro, não me lembro...
SIMPSON (ri cordialmente): O senhor está brincando? Dois mil e setecentos, CIF Gênova, frete incluso, mais alfândega de doze por cento; com todos os acessórios; entrega em quatro meses, exceto em casos de força maior. Cinqüenta por cento de entrada e o restante financiável; garantia de doze meses.
POETA: Descontos para antigos clientes?
SIMPSON: Não, não posso, acredite: eu arriscaria meu emprego. Desconto de dois por cento, renunciando à metade da minha comissão — é tudo o que eu posso fazer pelo senhor.
POETA: Você é jogo duro. Tudo bem, hoje não quero discutir: me passe o contrato, é melhor que eu assine antes que mude de idéia.
Fundo musical
POETA (ao público): Possuo o Versificador há mais de dois anos. Não posso dizer que já amortizei o investimento, mas ele se tornou indispensável. Mostrou-se muito versátil: além de incumbir-se de boa parte do meu trabalho de poeta, faz a contabilidade e os pagamentos, me informa sobre os vencimentos e mantém em dia a correspondência. Eu o ensinei a compor em prosa, e agora ele se sai muito bem nisso. O texto que vocês ouviram, por exemplo, é obra dele.
— Primo Levi, no livro "71 contos". [tradução de Maurício Santana Dias]. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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