Caro Ataulfo - Carlos Drummond de Andrade

©Vincent van Gogh

Caro Ataulfo

É difícil dizer de Ataulfo de Paiva todo o bem que ele merecia; quanto mais difícil, então, figurar todo o bem que ele fez. Quase toda gente se divertia em lembrar que era uma personalidade velhíssima, e nada mais; como se a idade extremamente provecta constituísse um defeito cômico maior, sobrelevando os demais implícitos na pessoa que o detenha. Esse ponto de vista diante da senectude sempre me impressionou; nele se distingue o ressentimento, para com os que souberam viver muito, dos que receiam viver pouco. E Ataulfo soube de fato viver sua longa vida. Dir-se-ia que a quisera e fizera assim extensa para melhor aplicá-la. Porque sua existência dava sempre a impressão de um ato de vontade. Se se desinteressasse dela, morreria como qualquer outro, de uma das mortes urbanas oferecidas cada dia à nossa fragilidade. E no mesmo ativo cuidado com que ele ia diariamente visitar seus doentes e enterrar seus defuntos se podia notar a determinação de sobre-existir, de cumprir um “programa” cuja duração e complexidade lhe estavam bem presentes aos olhos.
Que programa era esse? Vencer? Aparentemente, Ataulfo era apenas um vitorioso urbano, e, como gostasse de ser considerado tal, o julgamento frívolo se detinha nesse particular, e nele resumia o ser inteiro. Poucos reparavam em que a vitória social não o limitava nem o esgotava; e é a partir dela que Ataulfo conquista uma espantosa eficiência na condução do serviço social, sentido permanente e profundo de sua vida. O homem se comprazia com as distinções honoríficas esparzidas em seu redor, como coroas votivas, e era esse o instantâneo malicioso que se fazia dele; no entanto, Ataulfo apenas se servia desse material e desses ritos para obter condições de utilidade pública que lhe faltariam na situação comum. O conviva de todos os banquetes mal se alimentava de um copo de leite, empunhado com mão trêmula; o amigo de todos os poderosos do país não participava de seus prazeres e nada lhes pedia para si; e para os outros, o que andava maquinando, com um luxo de pormenores e uma perfeição técnica cheia de pitoresco e invenção, eram novos hospitais; eram vacinas aplicadas em massa, a atingir toda a gurizada do Brasil; eram recreatórios, colônias de férias, ou mesmo viagens individuais de amigos que careciam de repouso, e para os quais ele dispôs, durante anos, de casa em Teresópolis, com criados, luz, telefone, flores e todos os cuidados imagináveis. Esse, o seu prazer único, e pode dizer-se que a vida inteira foi Ataulfo um gozador perfeito, no sentido de que seu gozo era o serviço dos pobres e, em segundo lugar, dos amigos.
Pessoalmente, sei de muita gente que nem sequer o conhece, e que lhe deve a vida ou algum benefício relevante. A ausência de ficha eleitoral em sua benemerência tornará ignorados para sempre esses benefícios. Colocar um doente no estabelecimento adequado era para Ataulfo uma operação da mais absoluta importância. Cuidava em pessoa de tudo, mobilizando ainda a velha equipe de servidores aguçados, cada um com a tarefa rigidamente prevista. Às vezes, o paciente sentia-se meio raptado, pois a organização Ataulfo o pegava em casa, de surpresa, e ia de automóvel recolhê-lo ao ponto conveniente, ao fim de uma longa jornada, cheia de sigilo e carinho. Não sabia fazer o bem atabalhoadamente e sem toques delicados e pessoais. Era, positivamente, vieux style. E como tinha estilo!
Certo domingo já remoto, em que um grupo de amigos, com suas famílias, foi conhecer as maravilhas do Preventório Dona Amélia, em Paquetá, a cortesia imaginosa de Ataulfo como que requintou. Já antes de tomarmos a lancha no cais Pharoux, éramos olhados com espanto pelos transeuntes: o ministro fizera vir de sua casa da rua Valparaíso cadeiras de vime onde as senhoras e crianças se sentavam à espera dos acontecimentos. E pela tarde afora, na ilha florida, foi um repousante contato com a centena de crianças felizes, que cantavam e bailavam. Num intervalo, já digerido o belo almoço com que ele nos brindara, passeávamos por uma alameda, incertos sobre o que fazer, quando Ataulfo bateu três palmas rítmicas; e logo apareceu um rapaz trazendo copos e um estilete de prata, numa bandeja. Mais um sinal sonoro, e o rapaz cravou o estilete numa palmeira-anã, ali inocentemente plantada; sobre os copos jorrou uma água gelada e pura que só no oásis é encontrada, mas que ali estava aguardando nossa disponibilidade, como um dos trunfos ocultos de Ataulfo de Paiva. E na volta, já cansados de um belo dia de agitação, ele, com suas palmas sábias, fazia abrir-se o chão da lancha e de lá sair uma derradeira, imprevista e igualmente glacial laranjada, para a sede crepuscular. Tinha o dom da organização levada ao mínimo gracioso. Seus telegramas, por exemplo, constantes e minuciosos, eram todos do seu punho, em caligrafia esculpida, e entregues por mensageiro próprio; era, sozinho, uma espécie de telégrafo nacional da amizade.
Sua morte, com uma grande mágoa, me causa uma grande surpresa: é a primeira vez que o encontro em falta.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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