Reminisção - João Guimarães Rosa

Zinaida Serebriakova - camponeses - 1914
Reminisção

Vai-se falar da vida de um homem; de cuja morte, portanto. Romão — esposo de Nhemaria, mais propriamente a Drá, dita também a Pintaxa — ímpar o par, uma e outro de extraordem. Escolheram-se, no Cunhãberá, destinado lugar, onde o mal universal cochila e dá o céu um azul do qual emergir a Virgem. Sua história recordada foi longa: de tigela e meia, a peso de horror. O fundo, todavia, de consolo. Esse é um amor que tem assunto. Mas o assunto enriquecido — como do amarelo extraem-se ideias sem matéria. São casos de caipira.
Foi desde. Parece até que iam odiar-se, moço e moça, no então. Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafermiça, abexigada, feia feito fritura queimada, ximbé-ximbeva; primeiro sinisga de magra, depois gorda de odre, sempre própria a figura do feio fora-da-lei. Medonha e má; não enganava pela cara. Olhar muito para uma ponta de faca, faz mal. Dizia-se: — “Indicada.”
Romão, hem, gostou dela, audaz descobridor. Pois — por querer também os avessos, conforme quem aceita e não confere? Inexplica-o a natureza, em seus efeitos e visíveis objetos; ou como o principal de qualquer pergunta nela quase nunca se contém. Romão, meão, condiçoado, normalote, pudesse achar negócio melhor. Mas ele tinha em si uma certa matemática. E há os súbitos, encobertos acontecimentos, dentro da gente.
De namoro e noivado, soube-se pouco. Também da sem-graça cerimônia ou maneira, de que se casaram, padrinhos Iô Evo e Iá Ó e quiçá os de Romão e Drá anjos entes. Àquilo o povo assistiu com condolência? Tais vezes, a gente ao alheio se acomoda — preto no branco, café na xícara. Cunhãberá via-os não via, sem pensar em poder entender: anotava-os.
Mas o casal morou na Rua-dos-Altos, onde o Romão estava bom sapateiro. Para fora, deviam de ser moderados habitantes. Era um silêncio quase calado. Comparem-se: o vagalume, sua luzinha química; fatos misteriosos — a garça e o ninho por ela feito. Iam, consortes, para os anos que tendo de passar.
Se como o nem faro e cão — mas num estado de não e sim, rodavam tantas voltas — juntos, pois. A Drá contra a ocasião de querer-bem se tapava, cobreando pelos cabelos, nas mãos um pedaço de pedra. Ela não perdoava a Deus. — “Padece o que é...” — deduzia Iá Ó. Da dor de feiura, de partir espelho. Iô Evo disse: que tomava culpa, de ter testemunhado.
Romão, hem, se botava de nada? Não o deixava ela, enxerente, trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos; afugentou os de sua amizade. Romão amava. Decerto ela também, se sabe hoje, segundo a luz de todos e as sombras individuais. O estudo do mundo.
Todo o tempo o atanazava, demais de cenhosa, caveirosa, dele, aquela mulher mandibular. Vês tu, ou vê você? Romão punha-lhe devoção, com pelejos de poeta, ou coisa ou outra, um gostar sentido e aprendido, preciso, sincero como o alecrim.
Tinhava-se, a Drá. Seus filhos não quiseram nascer. Romão imutava-se coitado. Disso ninguém dava razão: o atamento, o fusco de sua tanta cegueira? Sapateiro sempre sabe. Ou num fundo guardasse memória pré-antiquíssima. Tudo vem a outro tempo.
Então, quando deles no diário ninguém mais se espantava, de vez, houve. Sortiu-se a Drá, o diabo às artes, égua aluada, e com formigas no umbigo. Em malefaturas, se perdeu, por outro, homem vindiço, mais moço. O povo, vendo, condenava-a; de pena do Romão — a tragar borras. Ele, não, a quem o caso de mais perto tocava. E a Iô Evo disse: que bom era ela crer, que valia, que dela gostavam... Romão olhava em ponto, pisava curto, tinham receio de sua responsabilidade.
Nem o moço de fora a quis mais. Desrazoável, mesmo assim, a Drá de casa se sumiu, com seus dentes de morder. Romão esperou, sem prazo. Se esforçava, nesse eixar-se, trincafiava, batia sola. Seguro que, por meio de Iá Ó, pediu que ela tornasse.
Drá voltou, empeçonhada, trombuda, feia como os trovões da montanha. Romão respeitava-a, sem ralar-se nem mazelar-se, trocando pesares por prazeres, fazendo-lhe muita fidelidade. Fez-lhe muita festa. De por aí, embora, seresma ela se aquietou, em desleixo e relaxo. Nem fazia nada, de cabeça que dói. Só empestava. Vivia e gemia — paralelamente. Chamou-a então Pintaxa o bufo do povo.
Foi, e teve ela uma grande doença, real, de que escapou pelo Romão, com seus carinhos e tratos. Sarou e engordou, desestragadamente, saco de carnes e banhas, caindo-lhe os cabelos da cabeça, nos beiços criado grosso buço, de quase barba. Era bem a Pintaxa, a esta só consideração. Cunhãberá jurou-a por castigada. Romão queria vê-la chupar laranjas, trivial, e se enfeitar sem ira nem desgosto. Ele envelhecia também. Os dois, à tarde, passeavam. Quem espera, está vivendo.
Depois, ele se enfermou, à-toa, de mal de não matar. A Drá alvoroçou o lugar. Ela chorava, adolorada: teve, de de em si, notícia, das que não se dão. Pedia socorro.
O povo e o padre no quarto, o Romão onde se prostrava, decente, chocho, em afogo, na cama. Ele estava tão cansado; buscava a Drá com os olhos. Que quis falar, quis, pôde é que foi não. Iá Ó passava um lenço, limpava-lhe a cara, a boca. Iô Evo mandou-o ter coragem, somente.
Dando-se, no Cunhãberá, o fato, de inaudimento.
Romão por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso mais verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados viam também, pedacinho de instante: o esboçoso, vislumbrança ou transparecência, o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria.
Romão dormido caiu, digo, hem, inteiro como um triângulo, rompido das amarras. Ele era a morte rodeada de ilhas por todos os lados. Mentiu que morreu. Deu tudo por tudo.
A Drá esperançada se abraçou com o quente cadáver, se afinava, chorando pela vida inteira. Todo fim é exato. Só ficaram as flores.


 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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