Eu gosto de catar o mínimo e o escondido - Machado de Assis

© Gustavo Aimar 
11 de novembro

Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. Daí vem que, enquanto o telégrafo nos dava notícia tão graves como a taxa francesa sobre a falta de filhos e o suicídio do chefe de polícia paraguaio, coisas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver coisas miúdas, coisas que escapam ao maior número, coisas de míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam.

Não nego que o imposto sobre a falta de filhos e o celibato podia dar de si uma página luminosa, sem aliás tocar na estatística. Só a parte cívica. Só a parte moral. Dava para elogio e para descompostura. A grandeza da pátria, da indústria e dos exércitos faria o elogio. O regímen de opressão inspirava a descompostura, visto que obriga casar para não pagar a taxa; casado, obriga a fazer filhos, para não pagar a taxa; feitos os filhos, obriga a criá-los e educá-los, com o que afinal se paga uma grande taxa. Tudo taxas. Quanto ao suicídio do chefe de polícia, são palavras tão contrárias umas as outras que não há crer nelas. Um chefe de polícia exerce funções essencialmente vitais e alheias à melancolia e ao desespero. Antes de se demitir da vida, era natural demitir-se do cargo, e o segundo decreto bastaria acaso para evitar o primeiro.

Deixei taxas e mortes e fui à casa de um leiloeiro, que ia vender objetos empenhados e não resgatados. Permitam-me um trocadilho. Fui ver o martelo bater no prego. Não é lá muito engraçado, mas é natural, exato e evangélico. Está autorizado por Jesus Cristo: Tu es Petrus, etc. Mal comparando, o meu ainda é melhor. O da Escritura está um pouco forçado, ao passo que o meu, ― o martelo batendo no prego, ― é tão natural que nem se concebe dizer de outro modo. Portanto, edificarei a crônica sobre aquele prego, no som daquele martelo.

Havia lá broches, relógios, pulseiras, anéis, botões, o repertório do costume. Havia também um livro de missa, elegante e escrupulosamente dito para missa, a fim de evitar confusão de sentido. Valha-me Deus! até nos leilões persegue-nos a gramática. Era de tartaruga, guarnecido de prata. Quer dizer que, além do valor espiritual, tinha aquele que propriamente o levou ao prego. Foi uma mulher que recorreu a esse modo de obter dinheiro. Abriu mão da salvação da alma, para salvar o corpo, a menos que não tivesse decorado as orações antes de vender o manual delas. Pobre desconhecida! Mas também (e é aqui que eu vejo o dedo de Deus), mas também quem é que lhe mandou comprar um livro de tartaruga com ornamentações de prata? Deus não pede tanto; bastava uma encadernação simples e forte, que durasse, e feia para não tentar a ninguém. Deus veria a beleza dela.

Mas vamos ao que me põe a pena na mão; deixemos o livro e os artigos do costume. Os leilões desta espécie são de uma monotonia desesperadora. Não saem de cinco ou seis artigos. Raro virá um binóculo. Neste apareceu um, e um despertador também, que servia a acordar o dono para o trabalho. Houve mais uns cinco ou seis chapéus-de-sol, sem indicação do cabo... Deus meu! Quanto teriam recebido os donos por eles, além de algum magro tostão? Ríamos da miséria. É um derivativo e uma compensação. Eu, se fosse ela, preferia fazer rir a fazer chorar.

O lote inesperado, o lote escondido, um dos últimos do catálogo, perto dos chapéus-de-sol, que vieram no fim, foi uma espada. Uma espada, senhores, sem outra indicação; não fala dos copos, nem se eram de ouro. É que era uma espada pobre. Não obstante, quem diabo a teria ido pendurar do prego? Que se pendurem chapéus-de-sol, um despertador, um binóculo, um livro de missa ou para missa, vá. O sol mata os micróbios, a gente acorda sem máquina, não é urgente chamar a vista as pessoas dos outros camarotes, e afinal o coração também é livro de missa. Mas uma espada!

Há dois tempos na vida de uma espada, o presente e o passado. Em nenhum deles se compreende que ela fosse parar ao prego. Como iria lá ter uma espada que pode ser a cada instante intimada a comparecer ao serviço? Não é mister que haja guerra; uma parada, uma revista, um passeio, um exercício, uma comissão, a simples apresentação ao ministro da guerra basta para que a espada se ponha a cinta e se desnude, se for caso disso. Eventualmente, pode ser útil em defender a vida ao dono. Também pode servir para que este se mate, como Bruto.

Quanto ao passado, posto que em tal hipótese a espada não tenha já préstimos, é certo que tem valor histórico. Pode ter sido empregada na destruição do despotismo Rosas ou López, ou na repressão da revolta, ou na guerra de Canudos, ou talvez na fundação da República, em que não houve sangue, é verdade, mas a sua presença terá bastado para evitar conflitos.

As crônicas antigas contam de barões e cavaleiros já velhos, alguns cegos, que mandavam vir a espada para mirá-la, ou só apalpá-la, quando queriam recordar as ações de glória, e guardá-la outra vez. Não ignoro que tais heróis tinham castelo e cozinha, e o triste reformado que levou esta outra espada ao prego pode não ter cozinha nem teto. Perfeitamente. Mas ainda assim é impossível que a alma dele não padecesse ao separar-se da espada.

Antes de a empenhar, devia ir ter a alguém que lhe desse um prato de sopa. “Cidadão, estou sem comer há dois dias e tenho de pagar a conta da botica, que não quisera desfazer-me desta espada, que batalhou pela glória e pela liberdade...” É impossível que acabasse o discurso. O boticário perdoaria a conta, e duas ou três mãos se lhe meteriam pelas algibeiras dentro, com fins honestos. E o triste reformado iria alegremente pendurar a espada de outro prego, o prego da memória e da saudade.

Catei, catei, catei, sem dar por explicação que bastasse. Mas eu já disse que é faculdade minha entrar por explicações miúdas. Vi casualmente uma estatística de São Paulo, os imigrantes do ano passado, e achei milhares de pessoas desembarcadas em Santos ou idas daqui pela Estrada de Ferro Central. A gente italiana era a mais numerosa. Vinha depois a espanhola, a inglesa, a francesa, a portuguesa, a alemã, a própria turca, uns quarenta e cinco turcos. Enfim, um grego. Bateu-me o coração, e eu disse comigo; o grego é que levou a espada ao prego.

E aqui vão as razões da suspeita ou descoberta. Antes de mais nada, sendo o grego não era nenhum brasileiro, ― ou nacional, como dizem as notícias da polícia. Já me ficava essa dor de menos. Depois, o grego era um, e eu corria menor risco do que supondo algum das outras colônias, que podiam vir acima de mim, em desforço do patrício. Em terceiro lugar, o grego é o mais pobre dos imigrantes. Lá mesmo na terra é paupérrimo. Em quarto lugar, talvez fosse também poeta, e podia ficar-lhe assim uma canção pronta, com estribilho:

Eu cá sou grego,
Levei a minha espada ao prego.

Finalmente, não lhe custaria empenhar a espada, que talvez fosse turca. About refere de um general, Hadji-Petros, governador de Lâmia, que se deixou levar dos encantos de uma moça fácil de Atenas, e foi demitido do cargo. Logo requereu à rainha pedindo a reintegração: “Digo a Vossa Majestade pela minha honra de soldado que, se eu sou amante dessa mulher, não é por paixão, é por interesse; ela é rica, eu sou pobre, e tenho filhos, tenho uma posição na sociedade, etc.” Vê-se que empenhar a espada é costume grego e velho.

Agora que vou acabar a crônica, ocorre-me se a espada do leilão não será acaso alguma espada de teatro, empenhada pelo contra-regra, a quem a empresa não tivesse pago os ordenados. O pobre-diabo recorreu a esse meio para almoçar um dia. Se tal foi, façam de conta que não escrevi nada, e vão almoçar também, que é tempo.


- Machado de Assis, em 'A semana'na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 11 de novembro 1900 | presente em "Obra Completa de Machado de Assis". Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994. (Crônicas)
------
Veja mais sobre Machado de Assis:

Jackson Tomé - poemas

ilustração © André da Loba


BREVE COLETÂNEA POÉTICA DE JACKSON TOMÉ


BEIJO
As rosas são singelas e perfumadas,
Você é bela e adorada...
As rosas são símbolo do amor
Você a razão da existência do amor...
Estas rosas são vermelhas,
Pois o coração também o é...
É ele, que lhe manda um grandíssimo beijo.  

Jackson Tomé (23.5.1984)

§

CAETANO
Eu vi um homem menino
Eu vi um menino homem
Eu vi uma pétala acarinhada pelo sereno
Eu vi a gota do orvalho no seio da ideia.

Eu vi um sonho de amor...(Brasil)
Eu vi uma canção baiana...(Universal)
Eu vi um pouco do branco, do preto, do índio...(Velhos Espíritos)

Ouvi o nome do filho...(moreno)
Senti-me filho de Maria...(cristão)
Um igual, porém poeta matinal...(lampejos)
Eu ouço um nome eternizado pela canção, participação e construção.
Eu vi, ouvi Caetano, na manchete, no globo, e de baixo dos caracóis do seus cabelos, eu vi o brasil, sobre o sol, sol, sol, sol...

Jackson Tomé (28.12.1992)

§

CAETANO É POESIA
Chove á um ar unido de final de verão
Ouve-se ao longe uma canção
Nos olhos vesse o poeta e sua solidão

Bem próximo de ti está a solução
Ela vem na solidariedade e participação
Tu que é grande, eis que pequeno serás sem um amigo.

Verá que tudo se vê nada se possui
És o pai, filho e homem, és fruto de Maria!
Tens cheiro da terra, o suor das estrelas e o
desejo de Deus.
És poeta na Bahia, és poeta do Brasil, és tu fim e meio no universo...
"És Caetano para o Brasil"

Jackson Tomé (São Paulo, 27.12.1992)

§

MARIAS
Nesta manha de sol reluzente achei um diamante de um brilho esplendido e nele via algo que suprimiu, toda beleza que eu havia visto até então era tu Maria rosa, Maria Ana, Maria, Maria cor de jambo, cor da paixão, cor da vida musica e canção beleza na sua forma, mas esplendorosa. Há Maria reflexão de paz e ternura na forma, mas, pura...
És luz no coração, és à flor do puro amor, és coração...    

Jackson Tomé 

§

MORTE SEM SENTIDO...(Marquinhos)
Posso viver 20 anos sem a flor do amor conhecer
E através da batalhas sem vitorias continuar a viver
Posso crescer sem pai sem mãe, mas como pode ele
Inocente ser puro, alegre a crescer morrer
Óh! São Paulo Óh! Brasil á meu Deus é justo
viver e nada ter conhecido além da dor de parti
Isto é ser prisioneiro ou tornar outros prisioneiro
de seus sonhos é ideais 
Quero que ele viva para sempre, em São Paulo
Em nossos corações , em nossas preces, em

Nós por ti Senhor meu Deus...amém

Jackson Tomé 

§

O BRANCO
Bela manhã de sol canta ao longe um rouxinol
Conto chinês de imperador e seus jardins...
Fala ao longe o sonho de rara beleza
Diz a mente, pensando intensamente eco, eco...(92)

És que não vejo tudo
És que absorvi o nada,
Presente se fez o sonho longe se vai
És que renasce do fungo o cogumelo.

Traz dissonância a bela flor,
Traz arrogância a sutileza da brisa que a caricia
Vem tu agora rogar a vida
Todavia fizeste jus ao nome; homem branco...

Jackson Tomé (21.6.1992)

§


ORAÇÃO AOS SEIOS
Banho de rosa, banho de leite de rosa
Banho de sabonete francês
Perfumam a beleza de seus seios
Porém não existe nada neste mundo
Para mostrar a força vida do que o toque
Sutil de meus dedos para deixar seus seios
duros e altivos como o Pão de Açúcar
Toda esta altivez mostra o amor puro,
Belo e doce; teus seios existem para
dar ênfase ao prazer de amar a vida..

Jackson Tomé

§

QUESTÕES
Corre ao longe um boato
Sim és sobre a flor de fato
Linda sempre fostes, tu mulata!
Escuta a razão morena

Traz desilusão aos brados
Filho da noite és tu o carrasco
Fim da trama desta raça
Condenada és, a tulipa negra!

Todavia, teu encanto transpõe barreiras!
Faz a luz brilhar na igualdade do lar
Vem a brisa do mar, és tu sopro de vida no ar...
Negra, branca, amarela, mãe mulher...

Jackson Tomé (21.6.1992)

§

SONHO
Sonho ele chega de mansinho vem como senhor da verdade, companheiro dos cegos, amantes da escuridão e toma conta das palparas, e traz paz ao cérebro. Ah, viva ao sonho do amor, viva ao sonho da solidariedade, viva ao sonho da paz, viva a mulher que tudo isto nós traz...   

Jackson Tomé 

§

TOCAR O SENTIDO DO SENTIMENTO
Tocar a cúpula da vida.
Tocar o sopro da alma. 
Tocar o poder da paz.

Sonhar que tudo e possível
Sonhar que o amor é tudo
Ler, ler tudo sobre sermos todos irmãos.

Há como justificamos, as quireras, vida.
Viva o Brasil, viva o sincretismo.
Ah, como é simples ser feliz basta ter amor à vida, vida.

Mas tu porta deste mundo que tantas vezes te faz mundano
Tu que às vezes queres ser general?
Tu que és general quando do amor “pois” geras incondicionalmente a vida, vida.
Mas tu que nasceste, para reinar sem poderes queres, o poder...
Abandonas teu soldado e suposto dono de seu amor
Aí vem um mundo sem amores possíveis só prazer sofrível...

Tocar a cúpula da vida...
Tocar o sopro da alma...
Tocar o poder da paz...
Tocar tu mulher alem do corpo, vida.

Jackson Tomé (4.11.2001)


-----
Jackson Tomé é poeta autodidata. (...)
- poemas enviados pelo autor (inéditos) - 

Melim-Meloso - João Guimarães Rosa

© Adélio Sarro

Melim-Meloso
(sua apresentação)

Nos tempos que não sei, pode ser até que ele venha ainda a existir. Das Cantigas de Serão, de João Barandão, tão apócrifas, surge, com efeito, uma vez:

Encontrei Melim-Meloso
fazendo ideia dos bois:
o que ele imagina em antes
vira a certeza depois.

Conto-me, muito, quando não seja, a simpática história de Melim-Meloso, filho das serras, intransitivo, deslizado, evadido do azar. Daria diversidade de estória a primeira-mão de suas governanças; e aventura. Eis, assim:

Melim-Meloso
amontado no seu baio:
foi comprar um chapéu novo,
só não gosta de trabalho.

Sombra de verdade, apenas. Ele trabalhava, em termos. E, o que sobre isso afirma, tira-se no bíblico e raia no evangélico: — Trabalho não é vergonha, é só uma maldição... Bismarques, o vendeirão, quis impingir-lhe chapéu antiquíssimo, fora-de-moda, que ninguém comprava. Melim-Meloso renegou dele, só sorrindo; se o regateou, foi com supras de amabilidades. Bismarques veio baixando o preço, até a um quase-nada. Melim-Meloso fechou a compra, botou na cabeça o chapéu — dando-lhe um arranjo — e o objeto se transformou, uma beleza, no se ver. Despeitificado, o Bismarques então abusou de tornar a agravar o preço. Melim-Meloso o refutou, delicado. Por fim, para não desgostar o outro, falou: concorde. Pagou, com uma nota nova, se disse ainda agradecido. Mas, em célere seguida, riu, às claras risadas. O Bismarques, enfiado, remirou a nota: meditou que ela podia ser falsa. Mas já tinha assumido. Com o que, Melim-Meloso logo propôs a humildade de aceitar de volta a nota, desde que com um rebate: que orçava, por acaso, justo no tanto aumentado depois no preço do chapéu. Bismarques se coçou e aprovou. Mas, como o ar de lá se tinha amornado, meio sem-ensejo, Melim-Meloso fez que lembrou, só suave, o talvez: que um copázio de vinho, pelo seguro, era o que tudo bem espairecia. O Bismarques serviu o vinho. Somente no encerrar, foi que viu que o convidador se dava de ser ele mesmo, para a salda das custas. Restou desenxavido; não mal-alegrado de todo. Melim-Meloso ganhara, às vazas, aquele chapéu de príncipe.
Ou, pois:

Melim-Meloso

amontado no pedrês:
foi à missa, chegou tarde,
só desfez o que não fez.

Melim-Meloso

amontado no murzelo:
uma nôiva em Santa-Rita,
outra nôiva no Curvelo.

Melim-Meloso

amontado no alazão:
— Veio ver minha senhora,
disto é que eu não gosto, não.

Duvide-se, divirja-se, objete-se. Padre Lausdéo, da Conceição-de-Cima, louvou e premiou Melim-Meloso, naquela domingação. A nôiva de Santa-Rita, Quirulina, era só por uma amizade emprestada. Maria Roméia, a nôiva no Curvelo, a ele ensinava apenas certas formas de ingratidão. E a mulher do Nhô Tampado notava-se como a feia das feias. São estas, aliás, para mais tarde, estórias de encompridar. Melim-Meloso, ipso, de si pouco fornecia:

Diz assim: Melim-Meloso,
não repete o seu dizer.
Perguntei: — coisa com coisa,
não quis nada responder.

Reportava-se: — Sou homem de todas as palavras! Mas gostava de guardar segredos; e aproveitava qualquer silêncio. Do mal que dele se dizia, tenha-se por exagerada, senão de todo inautêntica, à propala, a parla dessa afamação. O herói nunca foi conquistador, vagabundo, impostor, nem cigano exibidor de animais. Corra tanta incertidão por conta dos que tentaram ser inimigos dele: o Cantanha, Reumundo Bode, o Sem-Caráter, Pedro Pubo, o Alcatruz; o Cagamal e José Me-Seja. Melim-Meloso, mesmo, é que nunca foi inimigo de ninguém. Escutem-se, pois, à outra face da lenda, os seus amigos principais: Cristomiro, o Dandrá, José Infância, João Vero, Padrinho Salomão, Seo Tau, o Santelmo, Montalvões e Sosiano:

Melim-Meloso
amontado no quartau:
viaja para as cabeceiras,
procura o rio no vau.

Melim-Meloso
amontado no corcel:
porque é Melim-Meloso,
bebe fel e sente o mel.

Melim-Meloso

amontado no castanho:
— O que ganho, nunca perco,
o que perco sempre é ganho...

Diz assim: Melim-Meloso

só quer amar sem sofrer.
Errando sempre, para diante,
um acerta, sem saber.

Diz assim: Melim-Meloso

ouve “não”, sabe que é “sim”:
o sofrer vigia o gozo,
mas o gozo não tem fim.

Resumo. Serra do Sõe, verde em sua neblina, nesse frio fiel, que inclina os pássaros. Serra do Sõe e Serra da Maria-Pinta, que a redobra; serras e pessoas. O fazendeiro Pedro Matias, rico. Tio Lirino, com as sensatas barbas. Elesbão — o estrito boiadeiro. Lá, ressoam distâncias; e a alegria é pouca: é devagarinho, feito um gole. A serra faz saudade de outros lugares. Melim-Meloso possuía somente seus sete cavalos, comprados, um a um, com seus economizados. Seria para ir-se embora, com luxo, com eles. Melim-Meloso tinha pena de não ser órfão também do padrasto, com quem descombinava; porque o padrasto era prático de bronco, na desalegria, não avistava o sutil de viver, principalmente. Vai, um dia, Melim-Meloso não aguentou mais: — Faço de conta que este padrasto não existe, de jeito nenhum... — ele entendeu de obrar, com doçuras. Isto é: não via mais, nem em frente nem em mente, a pessoa existente do padrasto, para bem ou para mal. Procedeu. Aí, o padrasto teve a graça de morrer, subitamente, em paz; mas, deixando dívidas. Melim-Meloso se disse: — A vida são dívidas. A vida são coisas muito compridas. Para pagar esses deveres, teve de negociar seus cavalos, foi dispondo de um por um. Vendia um — chorava (o que seja: no figuradamente), mas com mágoas medidas. Queria mais ir-se embora, lá ele corria o risco de ficar mofino; salvava-o sua incompetência de tristeza. Mas o Elesbão desceu, para o Quipú, com boiada completada. Pedro Matias desceu, num lençol, na vara, carregado, para o cemitério-mor, no Adiante. Tio Lirino desceu com a tropa, tantos lotes de burros: rumo de sertões e ranchos. Melim-Meloso sentiu-se pronto: — Quando vi — adeus! — minha gente, vou de arrieiro — no formal...
Episódios. Mas Melim-Meloso fazia-se muito causador de invejas. Sofrer, até, ele sofria tão garboso, que lho invejavam. Sofria só sorrisos. Vai, pois, por qual-o-quê, quiseram vingar-se dele, disso. Os sujeitos que lhe tinham comprado os cavalos, compareceram na saída, para o afligir, cada qual montado no agora seu. Mas Melim-Meloso se riu, de pôr a cabeça para trás. Conforme pensou, tãoforme lhes falou: — O que vejo, na verdade, é que estes cavalos formosos continuam sendo meus. Por prova, é que vocês tiveram de trazer todos eles, para os meus olhos!
No que se diga, os invejantes não podiam naquilo achar razoável espécie. Mas, orabolas deles. Melim-Meloso pediu: — Me esperem amigos, só um pouquinho... Foi, veio, trouxe uma égua, luzente, quente. Os sete cavalos sendo todos pastores. Relinchou-se! Aí — que Melim-Meloso soltou de embora a égua: aqueles pulavam e escoiceavam, rasgalhando rinchos, mordendo o ar, e assim desembestaram os cavalos equivocados. Jogaram seus cavaleiros no chão. Só ficou em sela o João Vero, no preto. Os outros se estragaram um bocado, até um, o pior, o Cantanha, se machucou o bastante. Melim-Meloso somente sorriu, atencioso. Virou-se para o João Vero, lhe disse: — Você, se vê: que parece mestre cavaleiro! Prazido, com essas, o Vero conseguiu então admirar Melim-Meloso; perguntou: Se ele se ia era por querer uma nôiva, coberta de ouro-e-prata, feito Dona Sancha? Melim-Meloso respondeu: — Não. É para, algum dia, tornar a adquirir, um a um estes cavalos... Com essas, o Vero começou a respeitar a decisão do outro. De repente, se determinou: ofereceu que cedia desde já o preto a Melim-Meloso, para ele pagar indenizado, quando possível... Melim-Meloso, aceitando, gentil, disse: — Você, se vê: que sabe dar, direito, sem prazo de cobrar. Deus dá é assim... Com essas, o Vero também se riu, por fora e por dentro. E Melim-Meloso disse um mais: — Para, em futura ocasião, eu pagar a você a quantia redonda, você me empresta agora o quebrado que falta, para poder logo arredondar... O Vero concedeu.
Melim-Meloso muito se despediu, da terra da Serra, à sua satisfação. Soltou as rédeas para a Vila, ia levar o caminho até lá. Saiu com os pés na aurora, à fanfa, seu nariz bem alumiado. Era sujeito a morrer; por isso, queria antes dar uma vista no mundo, achar a fôrma do seu pé. Sobre o que, o Vero ainda veio com ele, e com a tropa, por um trecho, conversavam prezadamente — o Vero conseguira começar a querer-bem a ele.
E chegou-se, de caminho, na fazenda Atravessada, antes de chegar-se ao próprio fim, que era na Conceição-de-Baixo. Nessa fazenda, reinava, na noite, a furupa de uma grande festa — de casamento ou batizado. Melim-Meloso apeou lá sem espera de agrados, não conhecendo ninguém. Ora vez, ali se deram várias coisas, ele com elas. Porém, são para outra narração; convém que sejam. A vida de Melim-Meloso nunca se acaba. Ao que, na voz das violas, segundo o seguinte:

Conte-se a estória de Melim-Meloso
sempre sem sossego, sempre com repouso,
vivo por inteiro, possuindo amor:
Melim-Meloso, ao vosso dispor...



 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
-------
Veja aqui Biobibliografia do autor:

Obsessão - Luis Fernando Verissimo

© Andrey Aranyshev

Obsessão

A culpa não é minha, delegado. É do nariz dela. Ela tem um nariz arrebitado, mas isso não é nada. Nariz arrebitado a gente resiste. Mas a ponta do nariz se mexe quando ela fala, delegado. Isso quem resiste? Eu não. Nunca pude resistir a mulher que quando fala a ponta do nariz sobe e desce. Muita gente nem nota. É preciso prestar atenção, é preciso ser um obsessivo como eu.
•••

O nariz mexe milímetros, delegado. Para quem não está vidrado, não há movimento algum. Às vezes só se nota de determinada posição, quando a mulher está de perfil. Você vê a pontinha do nariz se mexendo, meu Deus. Subindo e descendo. No caso dela também se via de frente. Uma vez ela reclamou, “Você sempre olha para a minha boca quando eu falo”. Não era a boca, era a ponta do nariz. Eu ficava vidrado no nariz. Nunca disse pra ela que era o nariz. Eu sou louco, delegado? Ela ia dizer que era mentira, que seu nariz não mexia. Era até capaz de arranjar um jeito de o nariz não mexer mais.
•••

Mas a culpa mesmo, delegado, não é do nariz, não é dela e não é minha. A culpa é da inconstância humana. Ninguém é uma coisa só, nós todos somos muitos. E o pior é que de um lado da gente não se deduz o outro, não é mesmo? Você, o senhor, acreditaria que um homem sensível como eu, um homem que chora quando o Brasil ganha bronze, delegado, bronze? Que se emocionava com a penugem nas coxas dela? Que agora mesmo não pode pensar na ponta do nariz dela se mexendo que fica arrepiado? Que eu seria capaz de atirar um dicionário na cabeça dela? E um Aurelião completo, capa dura, não a edição condensada ou o CD? Mas atirei. Porque ela também se revelou. Ela era ela e era outras.
•••

A multiplicidade humana é isso. A tragédia é essa. Dois nunca são só dois, são dezessete de cada lado. E quando você pensa que conhece todos, aparece o décimo oitavo. Como eu podia adivinhar, vendo a ponta do narizinho dela subindo e descendo, que um dia ela me faria atirar o Aurelião completo na cabeça dela? Capa dura e tudo? Eu, um homem sensível? Porque ela não era uma, delegado. Tinha outra, outras, por dentro. Tudo bem, eu também tenho outros por dentro. Por exemplo: nós já estávamos juntos havia um tempão quando ela descobriu que eu sabia imitar o Silvio Santos. Sou um bom imitador, o meu Romário também é bom, faço um Lima Duarte passável, mas ninguém sabe, é um lado meu que ninguém conhece. Ela ficou boba, disse “Eu não sabia que você era artista”. E eu também sou um obsessivo. Reconheço. E a obsessão foi a causa da nossa briga final. Tenho outros por dentro que nem eu entendo, minha teoria é que a gente nasce com várias possibilidades e quando uma predomina as outras ficam lá dentro, como alternativas descartadas, definhando em segredo, ressentidas. E, vez que outra, querendo aparecer. Tudo bem, viver juntos é ir descobrindo o que cada um tem por dentro, os dezessete outros de cada um, e aprendendo a viver com eles. A gente se adapta. Um dos meus dezessete pode não combinar com um dos dezessete dela, então a gente cuida para eles nunca se encontrarem. A felicidade é sempre uma acomodação.
•••

Eu estava disposto a conviver com ela e suas dezessete outras, a desculpar tudo, delegado, porque a ponta do seu nariz mexe quando ela fala. Mas aí surgiu a décima oitava ela. Nós estávamos discutindo as minhas obsessões. Ela estava se queixando das minhas obsessões. Não sei como, a discussão derivou para a semântica, eu disse que “obsedante” e “obcecante” eram a mesma coisa, ela disse que não, eu disse que as duas palavras eram quase iguais e ela disse “Rará”, depois disse que “obcecante” era com “c” depois do “b”, eu disse que não, que também era com “s”, fomos consultar o dicionário e ela estava certa, e aí ela deu outra risada ainda mais debochada e eu não me aguentei e o Aurelião voou. Sim, atirei o Aurelião de capa dura na cabeça dela. A gente aguenta tudo, não é delegado, menos elas quererem saber mais do que a gente.
Arrogância intelectual, não.

- Luis Fernando Verissimo, no livro "Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos".  1ª ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
------
Saiba mais sobre o autor

Joaquim Luís Mendes Gomes - poemas

Vincent van Gogh - Wheat Field with a Lark

No princípio...
Era o nada.

Nem o escuro.
Nem o claro.

Havia o zero.
Tudo era perfeito.
Porque o defeito não havia.

Então,tudo estava certo.

Não havia o deserto.
Nem a montanha.

Mas havia um leito,
Onde o rio não corria.

No lugar do mar,
Não havia água.
Não havia ondas.
Tudo era sereno.

Nem uma brisa breve.
Tudo era seco.
Tudo suave.
Nem o quente,
Nem o frio.
tudo era leve.

Um descampado gigante.

Não havia céu.
Não havia horizonte.

Nem uma nuvem só.
Por isso, também,
Nunca mais chovia.

Não havia o longe.
Só havia o perto.

Estava tudo à mão.
Era o princípio.

Tudo poderia ser.
Bastava nascer.

E assim foi.

Não se sabe donde,

Apareceu o sol.

Todo risonho.
Curioso.

Acendeu a luz.
E o calor.

Que desolação!

Tudo era só chão.

Deu uma volta imensa
E logo se escondeu,
Ninguém mais o viu.

E assim nasceu o escuro.
Parecia uma noite.
Não negra.
Nada se via.

Pouco depois,

Se assim se pode dizer,

Um clarão surgiu ao fundo.

De novo ele,
Um balão de luz,

Muito lento,
Começou a subir.

Veio a cor...nasceu o claro.
Tudo aqueceu,
Mas sem nada queimar.

Logo a seguir,
Um cortejo de lã,
Em enormes farrapos,

Se estendeu no alto.
Encobrindo tudo,
Mas sem nada esconder.

E veio o vento.
As desfez em chuva.

Tanta caíu,
Encheu de rios,
Tão tresmalhados,
Tão aturdidos,
A correr nos leitos,
Sem saber para onde...

E encheram o mar.
Que o vento cobriu de ondas.

Num azul perfeito.
Um espelho do céu.

Onde surgiram estrelas.
Só brilhavam no escuro.

Não se sabe como,
Nem qual a semente,
Foi tão de repente.

Tudo verdejou de vida.
Com forma de árvores,
Tantas folhas verdes,
Que deram flores
E que deram frutos.

Caíam ao chão.
Aos montes.
Ninguém os comia!...

Surgiram os campos,
Como mantos de verde.
Nasceram flores,
De tantas cores,
Dançando ao vento.

E, pelo ar, ao alto,

Surgiram aves,
Aos bandos.

Batendo as asas,
Soltando pios.
Iam onde queriam.
Em liberdade.

Quando o mar encheu,
Ninguém sabe como,
Se encheu de peixes.
Parecendo aves.
Andavam livres,
Em grandes cardumes.

E, assim, a solidão que havia,
Se encheu de seres.
Com tantas figuras,
A bailar de vida.
Se sentiram bem.
Nunca mais se foram.

- Ouvindo o “Lago dos cisnes” de Tchaikovsky -
Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 22 de Maio de 2014)
- enviado pelo autor -

Tchaikovsky: Swan Lake - The Kirov Ballet

§

As linguagens
Tudo seria um ermo,
entre os seres viventes,
sem o dom da linguagem.
Rutilantes se pavoneiam as papoilas,
bailando ao vento
e como deliciam nossos olhos.
Transmitem alegria os gritos e as gargalhadas das crianças,
nas inesgotáveis brincadeiras,
dando esperança a quem passa.
As desprendidas excursões a pé,
ora subindo ora descendo,
as encostas e os vales,
sorvendo o ar e a luz do céu,
que nos suaviza o caminhar,
mesmo que se queixem de cansaço
as nossas pernas.
Enchendo-nos de força e vontade de viver.
Contemplar os rios a correr,
ora em fúria ora brandos,
através dos leitos que rasgaram.
Nos despertam as ganas de lutar e fugir à letargia.
E as voltas incessantes
dos bailados
que descrevem pelo ar em festa,
a passarada
fazem-nos esquecer o chão
com suas asperezas,
e alcançar a doçura da vertigem das alturas.
E a viagem imparável do rodar da natureza,
em fulgorosas cavalgadas,
quer chova neve
ou faça sol.
Como a dizer que nossa vida é um fluir,
em constante mudança de cor.
E a corrente de amizades
que vão surgindo,
pelos caminhos,
qualquer que seja a nossa sorte.
Como archotes a arder
que aquecem e iluminam.
É o esplendor do encanto
de tanta forma de linguagem
que foi posto ao nosso dispor...
ouvindo Plácido Domingo e outros...
o sol já brilha alto
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlin, 24 de Maio de 2015)
- enviado pelo autor -

§

A bengala…
Companheira pronta e fiel
Que se oferece de graça 
Num arco à mão.
Torna mais curto e leve o caminho.
Sustenta o peso dos passos no chão.
Sentinela avançada que espreita e avisa
Se é para seguir
Ou se deve parar.
Uma arma secreta.
Vara certeira, pronta a apontar,
Se houver um ataque.
Oxalá muito tarde ou nunca
Eu precise de ti…
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlin, 5 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -

§

Sermão da montanha…
Não subo à montanha,
Nem prego sermões.
Não visto fardas.
Nem opas de igrejas.
Sem distintivos na minha lapela.
Não sirvo clubes
Nem nenhum partido.
Enchi o meu espírito
Com luzes nascidas
Nos alvores do Marão.
Com rocha,
Granito,
Cobertos de musgo,
Onde crescem as urzes,
Há lobos vadios
Que louvam a Deus.
Minha estrela é polar,
O cruzeiro é do sul.
A lua de Agosto,
Em noite de breu.
O sol me ilumina e me aquece.
Me banho no mar.
Respiro a brisa
Em ondas de espunha.
Me visto com algas,
E durmo no chão.
Não tenho automóvel.
Nem sigo as estradas.
Sigo caminhos trilhados
Por feras ou rebanhos
Perdidos que só vivem ao ar.
Oiço as aves rapinas
Pairando nos ares,
Às voltas na vida,
Fazendo seu ninho,
Buscando seu pão.
Como carcaças silvestres.
Amoras das negras,
Que nascem maduras
No meio das silvas.
E cachos de uvas
Que nascem bravias
No meio das fragas.
Não servem para vinho.
Mas são como o mel.
Não ando descalço.
Trago sandálias de couro
E de pele.
Um manto de trapos,
Com um cinto apertado,
Me cobre e me tapa.
Não uso camisa.
Não ponho gravata,
De inverno e verão.
Meus cabelos
E barbas grisalhos,
Soltos ao vento,
Me pendem à frente
E ficam para trás.
Levo um cajado,
Por causa das feras.
Encho o cantil
Com água das rochas
Faço fogueiras,
Asso maçarocas de milho,
Sabem a pão.
Não tenho relógio
Nem conto o tempo.
Nem somo os dias e noites,
Que nascem e morrem
Sem mim,
Caídos do céu.
Minha alma sem penas,
Afastada do mundo,
Voa tão livre,
Com asas de sonho.
Meu corpo cansado,
Dormita,
Estendido no chão.
É assim que eu vivo
Não prego nem oiço sermões…
Ouvindo Bill Douglas
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlin, 25 de Maio de 2014)
- enviado pelo autor -

§

Aprendi de cor... 
Sei tudo de cor... 
Como Deus me ensinou à nascença. 
Tudo que aprendi depois, 
Veio manchado de mentira. 

Levei a vida inteira a limpar... 
Só agora, 
Ao fim de tantos anos, 
Voltei a reaver 
A limpidez do que aprendi, 
Mal acordava 
Para nascer.

 A partir daí, 
Ouvi tanta coisa falsa. 
Com que intuito, 
Eu não sei. 
Tudo é simples, afinal. 
Como a água fluente, 
Quando nasce 
No cimo do monte. 
A humanidade é um terror. 
Só pensa em destruir. 
A riqueza está na nascente. 
Nunca a deixem inquinar. 
O rio, quando nasce,
Só pensa em chegar ao mar... 
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 20 de Novembro de 2013)
- enviado pelo autor -

§

Molho de chaves... 
Tenho um molho de chaves, 
Religiosamente guardado, 
Desde os meus verdes anos. 
Desde a altura 
Em que me senti entregue a mim. 
Nos anos de 52... 

A primeira foi da mala, 
Onde transportei meu enxoval. 
Quando entrei no seminário. 
Mala em pinho, 
De encomenda, 
Ao carpinteiro amigo Do meu Pai. 
Em ferro forjado. 
Uma verdadeira miniatura, 
Que a ferrugem come, 
Da chave duma casa. 

Depois, a da mala de cartão castanho. 
Muito minúscula. 
Pareceria agora um brinco... 
Onde trazia a roupa e livros, 
Quando vinha e ia no fim das férias. 

A terceira, deu-ma a tropa. 
Era singela... 
Para um saco em pano, 
Em manga d’alpaca 
Até à hora solene 
Em que me vi oficial. 
Mais fidalga... 
Luzia a prata. 
Viajava em primeira, 
Nos comboios 
E no paquete luxuoso
Que me levou 
Num camarote, 
Até ao Funchal. 

E dali, até à Guiné... 
Muito velhinha, 
Só ela sabe o que lá passei... 

Depois, a do quarto, 
Como dum armário, 
Em Lisboa, 
Que eu tirei à dona, 
Onde fui hóspede, 
Até casar. 

Fui saltitão, 
De casa em casa, 
Até assentar.
Do sul ao norte, 
Terão sido sete. 
As casas onde eu vivi. 
E criei os filhos. 

Agora, em Berlim, 
Onde me trouxe o vento... 
Que grande molho! 
Com tantas histórias... 
Até à derradeira, 
Parecerá de oiro... 
Que me levará para a cova... 
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 19 de Novembro de 2013)
- enviado pelo autor -

§

Incontáveis distracções... 
Minha casa é um mundo aberto. 
Onde cabe o mundo inteiro. 
Minhas portas,
 Largas, 
Estão sempre abertas. 
Pode passar alguém cansado, 
É só bater e pernoitar. 

A lareira tem sempre fogo, 
Nem que seja em lume brando. 
Sempre à mão, 
Há chá e há café. 

Há cadeiras junto à lareira, 
É só pôr a cafeteira ao lume 
E nunca há horas para deitar. 

Minhas janelas amplas 
Não têm cortinas, 
Além da bruma negra 
Ou maresia em neblina. 
Nas noites longas, 
Sem o sono ou companhia. 

Oiço o piar das toutinegras, 
Conto estrelas ao luar...
.
(Ouvindo Hélène Grimaud)
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 19 de Novembro de 2013)
- enviado pelo autor -

§

Ponto morto...
Nem demais nem de menos.
Nunca o ponto morto.
Já chega o campo santo.
Onde jaz para sempre
O forte e o fraco.

Só o plano, inerte,
Também não presta.
O equilíbrio mora 
No sobe desce.
Por ele se alcandora
À felicidade.

Nem sempre alegre,
Nem sempre triste.
Tudo seja em dose certa.
É quando não há
Que se dá valor.

E, se sobrar,
Há sempre quem esteja à espera.
Fartura a mais
Só traz tristeza.

SEmear a tempo
Para colher à hora...
.
(dia quente)
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 6 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -


§

Coro dos pardais…
Vieram em bando
De muito longe,
Do outro lado do mundo.

Pelo amanhecer dum dia,
Poisaram num castelo alto
Onde reinava em paz 
Um imperador.

Todos dormiam tranquilamente.
Até as sentinelas.

Se deram as asas,
Postados em linha ao longo das ameias
E, à uma, em coro,
Começaram a cantar
O hino do amanhecer.

Em alvoroço,
Como dum sonho,
Todo o mundo acordou espantado.

Saíram à praça
Para os ouvir melhor.

Deliciados, nunca tal acontecera.
Tanta passarada linda
De lindas cores.
Que bem cantava.

É milagre! É milagre!
Gritaram todos.

Aturdida a passarada,
Fugiu em bando
Para as alturas do céu.
E nunca mais voltou.

De tristeza e silêncio
Se encheu o castelo…
Quase morreu.

Ainda hoje se festeja lá,
O imperador o quis,
Aquela invasão feliz da passarada.
.
Ouvindo Rachmaninov, concerto nº 2 por Fedorova ao piano
Lindo dia de sol
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 8 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -


§

Arado do deserto…
Arado sem raviça
Que lavra e alisa
As areias imensas do deserto.

Desce do ar,
Rugindo forte,
Fustigando as dunas secas,
Sem espuma,
Daquele mar sem fim..

Baloiço feroz
Que vai,
Para trás e para a frente
Até as pedras se escondem
E fingem de mortas,
Como conchas inertes.

Se enfurece, 
Buscando as árvores
Que não encontra.
Devorou o sal e a água.
Era vivo, agora é morto.

Vento polar,
Do sul e do norte.
Tufão em brasa,
Vilão da morte,
De leste e de oeste. 

Leão rugindo
Com fome e sede.

És tu ...o vento
No deserto imenso…
.
(Dia enevoado)
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 9 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -

§

Suavemente...
Sem atropelos nem alvoroços,
Suplanto os ermos.
Percorros os vales.
Trepo encostas
E me alcandoro às alturas.

Vejo por cima, um mar de núvens.
E, por entre as frestas,
Miro a Terra ao fundo,
Dormindo serena e inofensiva.

Me dedico ao belo.
Como um gamo ao pasto
Donde colhe puro,
O seu alimento.

Me espanto ouvindo
O mavioso sibilar do vento,
Pelas encostas
E pelas ravinas.

Me espraio ao sol
Duma praia azul,
Sem ondas 
Nem sequer areias.

Me reclino à soberba majestade
Das galáxias, 
Engalanadas de colares de estrelas
E duma manta infinda enluarada.

Assisto ao nascer do sol,
Como o príncipe encantado
Que espera a sua virgem.

Fico esperando a hora morta do destino
Que me há-de levar feliz
Para o outro mundo...
.
ouvindo Heléne Grimaud, tocando Rachmaninov
. dia cinzento
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 15 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -

§

O Pescador ...
Partiu pálido, 
De muito triste,
Cheio de esperança…
Passou a barra 
E fez-se ao mar.
Lá em casa,
Apagou-se o lume.
Acabou-se o pão.
Havia fome
E um mês inteiro
Que o mar bramia.
- Hoje há mar!-
Exclamou o mestre, 
Cá de fora,
Em plena madrugada.
- Ainda bem que o patrão chegou.
Parecia mesmo adivinhar.
Vestiu as calças, 
O camisolão.
Enfiou o gorro.
Olhou para o berço.
Abraçou a Rosa
E partiu contente.
- Que Nossa Senhora vos proteja
E traga breve!...
- Exclamou a Rosa a soluçar.
De velinha acesa,
A tremeluzir,
nunca apagou.
- Avé Maria!...
Não secou os olhos,
Até ele vir...
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Ovar, 18 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -

§

Encontrei em mim
Numa das minhas digressões mentais,
Encontrei em mim,
Um recanto esquecido.
Abri-lhe a porta.
Fiquei espantado.
Surpresa inaudita.
Ali jazia dormente,
A agressividade
Que pensava não tinha.
Toda a vida esperou intervir.
Cansada, 
Supôs-se em desprezo,
Deitou-se à sombra
À espera da morte...

- Joaquim Luís Mendes Gomes (Tapada de Mafra, 10 de Agosto de 2016)
- enviado pelo autor -


§

Nem mais um cabe na sala de aula...
A mesa está posta.
A sala está cheia.
O mestre chegou com alimento.
Chegue e não sobre.

À hora marcada começa a lição.
Saber donde vimos.
A terra que ocupamos.
Como apareceu.
Os castros e menhires.
O sangue derramado.
O que foram os castelos.

As igrejas que temos,
sem cruzes e com.
Enchem e vagam,
depois do trabalho.

As serras e rios
Que nos banham a terra.
As culturas que dão.
Se chegam ou não
e como se fazem.

Os cantos e lendas
da nossa história passada.
Para que serve a bandeira e o hino.
E as ermidas nos cumes.

As linhas de ferro e estradas
que visitam as gentes
para lá das montanhas.

Onde chegaram os antanhos
nas suas barcaças,
arrostando os mares.
Um império de riquezas
e glórias passadas.

Ó que fartura na mesa
que dá para um ano.
Alimento dum povo.
Sem ele é um bando,
sem alma e sem corpo.
Um castelo ao vento
que não serve para nada...
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Roses, 6 de Julho de 2016)
- enviado pelo autor -

§

Tango sem concertina...
Não precisa de voz
nem concertina.
Basta-lhe o mar,
exposto ao vento,
com nuvens a bordo.

Seu ritmo é a rota
transatlântica, intercontinental.
Sem datas marcadas,
ao sabor das marés.

Gaivotas canoras voam nos ares.
Cardumes de peixes
em arcos velozes,
traçam o caminho,
nas sendas do tempo.

Navio sem mastros
nem rodas nos pés.
Cavalo alado, 
Em trote ligeiro.

Formiga esquecida
no deserto do mar.
Veleiro à vela,
sem velas ao vento,
com força gigante.

Nada o amarra na barra.
Seu destino é o tango,
Seu palco é o mar...
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Roses, 4 de Julho de 2016)
- enviado pelo autor -

§


Mais uma vez...
Mais uma vez me vejo em Roses.
Prenda linda que o Mediterrâneo dá.
Praia alegre, com tês africana,
Presa à Europa,
Começo da serra.

De verão há sol.
De inverno há neve.
E o vento é forte,
Quando lhe dá na gana.

Fui ver o mar.
Como vai azul.
O céu é verde
A brilhar ao sol.

Que rico colar de oiro
Que esta praia tem.
Tantas voltas dá
Como em carrocel.
Uma manta de ondinhas
Fica-lhe tão bem.

Reluzem lá ao longe
Tantas casinhas brancas.
Parecem lencinhos brancos
A acenar de paz.

Tantos barquinhos leves
Em sementeira azul,
Dançam sobre as águas,
Sua alegria é grande
Por nos ver aqui...
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Ramblamar em Roses, 3 de Julho de 2016)
- enviado pelo autor -

§

Minhas portadas brancas…
Abro de par em par, 
Minhas portadas largas,
Ao sol e ao sal
Do mar profundo.
Deixo entrar no vento
Os acordes ternos
Das ondas salsas.
Me banho, dos pés à cabeça,
Na sua espuma ardente,
Em chama branca.
Regalo meus olhos sedentos, 
Na infinita vastidão azul.
Me lanço correndo,
A toda a força,
Por este mar aberto.
Para lá do mundo.
Minha alma sobe leve
Até às nuvens.
E voa, liberta à solta,
Mirando a terra.
Como uma estrela de prata,
A vê serena e azul.
Só ela sabe 
O que, de bem e mal,
Se vive nela.
Implora aos céus
Lhe chova intensa a paz
E, com pétalas de amor,
A faça feliz…
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 30 de Junho de 2014)
- enviado pelo autor -

§


Tudo era festa...
Sentado a uma mesa luzente
Neste bar de gente,
Que fica num “super”,
Onde chegam e saem,
De sacos na mão, 
Com pão para o jantar,
Sigo atento, 
Seus rostos, seus passos,
Oiço e cogito,
Sobre o que é o presente,
Sobre o que foi o passado.
Quando não estavam certas as coisas,
Havia paz e alegria,
E nem tudo era errado.
Só havia feiras,
Ao mês,
E uma vez por semana.
Havia as “vendas” caseiras,
Onde se vendia o azeite e sabão,
Se bebia um copo,
Se trocavam as novas,
Se cortava a casaca,
Do vizinho da frente,
Se piscava o olho matreiro,
À dona da venda,
Nas barbas do dono,
A ver se pegava…
Se falava da guerra,
Da bola 
E da missa da terra,
Onde pregava o abade,
O soba da terra.
Ainda não havia os “supers”..
Tudo era festa!...
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Ovar, 28 de Junho de 2012)
- enviado pelo autor -

§

Por entre as nuvens que correm...
Por entre as nuvens que correm,
Há-de passar um raio de sol.
Há um poema escondido.
No meio de tanto negrume,
Preciso de luz para o ver.
Por mais força que faça,
Corra lá o que correr,
Mais vale esperar que amanheça
E ver o sol a nascer.
Nada vem por acaso.
A mente é um relógio escondido
Que não precisa de corda.
Só se lhe vêem as horas
Quando o sol lhe bater.
Fluem as águas do rio,
Faça o tempo que for.
Pescar é tempo perdido
Se não vai um cardume a passar...
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 28 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -

§

Na minha infância...
Na minha infância,
pelas tardinhas 
no mês de Junho,
fazia calor.
E as andorinhas,
num corropio,
voavam rentes, 
ccmo cardumes,
ao pé do chão.

O badalar das noras,
trazia do fundo,
cataratas de água,
faziam rios,
nos pés do milho
e trigais em flor.

havia noitadas,
balões subindo.
cascatas de musgo
em honra do Santo.
- "um tostãozinho pró São João!

Que felizes éramos,
Como nunca maia...
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 25 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -

§

Aquelas mesinhas parcas
Que se desciam no comboio
frente à barriga,
mesmo pequenas, 
davam para tudo.

Para poisar um livro.
Escrever uma carta.
Comer o almoço,
jogar às cartas.
Em bom convívio
a dividir por dois.

Se fizeram ao mundo.
Novos tempos.
O computador é rei.
Com internet.
Fones de orelhas.
No isolamento.
Sem ver ninguém.
Como entra sai.

Coitadas delas.
Já não dão para mais...
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 25 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -

§


fome de paz...
abro as janelas
deixo entrar
a luz e o vento.
lanço meus sonhos,
aves condor,
com fome do alto.
contemplo as nuvens.
caravelas de luz,
navegando no céu.
choram-me os olhos
de encanto e doçura.
bendigo esta fome constante
de alegria e de paz...
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 7 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -

§

minha esperança constante...
é chama que arde incandescente
e vigorosa.
é estrada segura que me leva,
seguro e certo.
é sol.
é lua de agosto com luz.
farol a rodar
me acenando presente.
minha escada degrau
que me ergue para o alto
e transcende.
lhe confio meus passos
neste chão pedregoso
que me sangra os pés.
bendigo as mãos
que ma deram
e acenderam
lá atrás...
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 7 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -

§

Meu lindoTejo
grande, forte e vigoroso rio quente 
que me banhas e inebrias.
cada hora, cada dia.
és belo. 
obra-prima da natureza.
manso e terno.
por vezes, bravo
como o vento.
tu me vês,
para mim olhas,
companheiro.
são dois braços 
que me prendem
e me abraçam
tuas margens.
ora loiras,
sempre verdes.
vens de longe.
caminhada longa,
desde a serra .
tua pureza
é da fonte onde bebes.
teu desejo,
eu bem sei:
é ver o mar
que desde sempre,
te acolhe e te espera...
ouvindo Barry White
- Joaquim Luís Mendes Gomes (Berlim, 7 de Junho de 2016)
- enviado pelo autor -

§
.
:: Ver mais poemas do autorAQUI!

----
Breve biografia do autor:
Joaquim Luís Mendes Gomes é filho de Pedra Maria, uma aldeia do Norte (Portugal). Nasceu numa casa amarela, arrendada, mesmo à beira da estrada. Pai, alfaiate. Mãe, distribuidora de pão. Ia descalço para a escola. Fez a 4ª classe com distinção. Foi seminarista. Militar e combatente por obrigação e jurista. Casado. a mulher é bióloga. Investigadora. em Biologia molecular. Tem quatro filhos - dois casais. Um é sacerdote. Duas licenciadas. Um doutorado. Quatro netos. Lê. Escreve. Passeia. Medita e maldigo o tempo que passa. Filosofia, História e Religião. Internet é a sua nave.
----
:: Página atualizada em 20.8.2016.