Visita - Carlos Drummond de Andrade

Edgar Degas
Visita

Vai chegar dentro de poucos dias. Grande e botticellesca figura, mas passará despercebida. Não terá fotógrafos à espera, no Galeão. Ninguém, por mais afoito que seja, saberá prestar-lhe essa homenagem epitelial e difusa, que tanto assustou Ava Gardner. Estará um pouco por toda parte, e não estará em lugar nenhum. Tem uma varinha mágica, mas as coisas por aqui não se deixam comover facilmente, ou, na sua rebeldia, se comovem por conta própria, em horas indevidas, de sorte que não devemos esperar pelas consequências diretas do seu sortilégio.
Sua visita é, teoricamente, sempre pontual, mas nunca estamos preparados para recebê-la. Ou faz um inverno tardio, que nos retém em casa, com medo das mil formas de resfriado que assaltam o homem moderno, e para as quais há duas mil injeções válidas por uma semana de publicidade, e nenhuma forma de defesa real senão a velha forma de nos considerarmos doentes; ou um calor de cinema refrigerado, mas sem aparelho funcionando, e tão burros e entorpecidos ficamos que, se uma deusa da Hélade pousasse no Arpoador suas divinas plantas, não moveríamos um dedo para festejá-la.
Particularmente, devemos estar menos preparados do que nunca, para acolher com a devida disposição de alma essa visita. Emergimos de acontecimentos dos quais o menos que se pode dizer é que são tristes, porque são principalmente feios. Muitos perderam a graça de existir, sem crime ou sem ódio. Houve tanta infração ao modo natural e gostoso de viver sem ofensa ao vizinho e sem fazer mal ao grupo, que chegamos a duvidar de nós mesmos, e nos perguntamos qual será o próximo abuso, que furtos ou assassinatos estão programados para os próximos dias. Os que se mataram não quiseram esperar a visita, que talvez os salvasse. São, como se vê, tempos impróprios para a recepção aos mensageiros aéreos.
Passará, assim, por nós, e poucos a identificarão. Poucos, isto é, os sujeitos para quem os negócios mais importantes são os menos corpóreos de todos: uma nuvem, uma irisação do ar, no jogo entre céu e água. Não os botânicos, mas os que amam as árvores, e não pensam em estudá-las, nem mesmo em se recolherem à sua sombra. Pessoas para quem elas existem como árvores, autônomas, plenas de sentido telúrico, sublimes, e tais como em si mesmas a natureza as esculpiu. Pessoas que têm o costume estranho de cheirar a atmosfera, quando não há fumaças hostis a empestá-la, nem gritos de candidatos, nem as mil confusões da cidade de cimento e tédio. Que brisa de selvas longínquas trouxe até uns poucos esse feixe de essências tão poderosas, e ao mesmo tempo tão secretas, que ninguém mais as percebe, e no entanto esses privilegiados com elas se inebriam? Um ar viageiro, lépido, refinado na solidão das mais altas serranias, ou mesmo, como descobriu o poeta, varando as cachoeiras, circula especialmente para as narinas desses poucos, e consigo traz outros bens. São lembranças antigas ou novas, palpitantes, ligadas a vestidos leves e a corridas pelo campo, em que o corpo é tão animal e, contudo, se dissolve na luz matizada. São ecos, músicas de pássaros ou de câmara, sussurros, matinadas, sinos; ou serão trompas de caçadores, aboio de vaqueiros, cantiga de meninas na roda. E lembrança de água a despencar-se de pedras limosas, entre borboletas frenéticas e azuis, tinhorões nativos, seixos reluzentes, a vaga suspeita de uma cobra-coral, e os membros nus recebendo com volúpia casta — sim, pois natural — a espadana fria que lava os pensamentos mais soturnos. Como cheira esse ar mineiro, goiano, amazônico, paulista, pernambucano, sulino, piauiense, universal! As frutas se acumpliciam para transmitir-lhe sabor, e são novas cargas de sensações, que vão do tato a se enlevar no manuseio de superfícies sedosas, crespas, deslizantes ou herméticas, passando pela vista, que se perde nas gamas infinitas da coloração, até esse resumo ou síntese do prazer, que o paladar fornece pela simples penetração de uma goiaba ou de um cambucá. E vêm as flores, com seus significados e segredos distintos, e também os bichos, que se tornaram mais ligeiros, seja porque o ar influiu neles, seja porque melhor nos abrimos à sua familiaridade. Que se passa na terra? Nada. Apenas uma visita. Aqui, ali, às vezes fora de tempo, ou talvez contínua, porque em nossa desordem e riqueza de jeitos terrestres nunca sabemos ao certo quando ela veio, quando se foi, se vai demorar, se tomou o lugar de outras visitas menos deliciosas, se a temos em redor, se está só nos livros, ou se habita principalmente nossa fantasia.
Uns a nomeiam primavera. Eu lhe chamo estado de espírito.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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