Um mundo de papel - Rubem Braga

© Glenda Sburelin
Um mundo de papel

“O senhor imagina o que é isso para uma pessoa moça que se esforça para melhorar de vida? As taxas pagas, o dinheiro dos professores, das passagens, o tempo perdido, a decepção...”

A história que essa carta me conta é triste e banal. Houve um concurso para escriturário de determinada autarquia. A moça inscreveu-se, tomou cursos, estudou meses, fez as provas, foi aprovada, foi classificada, chorou de alegria quando a mãe a beijou, ficou esperando a nomeação, passaram-se dois anos, ela não foi nomeada e o concurso não vale mais.
O Estado, no Brasil, é um brincalhão.
Um homem me conta história idêntica: “gastei tempo, dinheiro e saúde, passei noites em claro, fiquei até doente dos olhos... deixei de levar minha filhinha a passear aos domingos... tudo em troca de nada... sou um ‘otário’...”
O pior é que os dois me pedem conselho. Só posso dizer que continuem a se esforçar e a ser bonzinhos, pois Deus protege os inocentes. Ou então o remédio é nascer outra vez, em uma família conveniente. Eu poderia fornecer aqui o nome de algumas famílias convenientes, isto é, famílias onde as mocinhas e os rapazes são nomeados, sem concurso nenhum, para cargos esplêndidos.
É verdade que há sujeitos admiráveis que, mesmo não pertencendo a essas famílias, conseguem coisas impressionantes. O diabo é que eles não revelam sua técnica. O DASP deveria requisitar um desses cavalheiros e encarregá-lo de escrever um livro no estilo de Dale Carnegie: Como Fazer Amigos e Arranjar uma Galinha-Morta no Serviço Público Federal.
Foi em Minas, creio, que um secretário de Estado mandou afixar em sua repartição esta frase com um conselho aos funcionários: “Não basta despachar o papel, é preciso resolver o caso.”
Quem fez isso devia ser um empírico, sem uma verdadeira e fina vocação burocrática. O exemplo mais brilhante dessa vocação deu-o anos atrás um cavalheiro cujo nome não sei; era presidente da Câmara Municipal de S. João de Meriti.
Foi o caso que morreu um vereador, e seu suplente quis tomar posse. O presidente exigiu dele a certidão de óbito do vereador. O suplente disse que não a trouxera, mas podia providenciar depois; achava, entretanto, que não havia inconveniente em tomar posse naquela mesma sessão...
O presidente respondeu:
— Não é questão de conveniência ou inconveniência. O que há é impossibilidade. O suplente não pode se empossar sem estar provada a morte do vereador.
— Mas V. Ex.ª não ignora que o vereador morreu...
— A prova do falecimento é a certidão de óbito.

— Mas V. Ex.ª tomou conhecimento oficial da morte; V. Ex.a, como presidente da Mesa, praticou vários atos oficiais motivados por essa morte!
— A prova do falecimento é a certidão de óbito.
— Mas o morto foi velado neste recinto. O enterro saiu desta sala, desta Câmara.
— A prova do falecimento é a certidão de óbito.
— Mas V. Ex.ª segurou uma das alças do caixão!
— A prova do falecimento é a certidão de óbito.
E não se foi adiante, enquanto o suplente não apresentou a certidão de óbito. Todos os argumentos esbarravam naquela frase irretorquível, perfeita, quase genial, que mereceria ser gravada em mármore no frontispício do DASP: “A prova do falecimento é a certidão de óbito.” Só os medíocres, os anarquistas e os pobres-diabos, condenados a vida inteira a ser suplicantes ou requerentes e que jamais serão Autoridade, não percebem a profunda beleza dessa frase. Eles jamais compreenderão que uma pessoa não pode existir sem certidão de nascimento nem pode deixar de existir sem certidão de óbito. Que acima da vida e da morte, do bem e do mal, da felicidade e da desgraça está esta coisa sacrossanta: o papel.
Eu também quero fazer uma frase. Proponho que o DASP investigue o nome daquele antigo presidente da Câmara Municipal de São João de Meriti e, no dia em que ele morrer, mande gravar em seu túmulo (depois, naturalmente, de apresentada a certidão de óbito) esta frase de suprema consagração burocrática: “Ele amou o papel.”


Rio, maio, 1958.

— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Rio de Janeiro: Record, 2010.


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Um comentário:

  1. E lá se vão 58 anos deste Poema/texto, e o BRASIL continua igual......o mundo evoluiu, passamos a ser a, pelo menos classificada como a 7ª Economia do Mundo, hoje?????? nem sei mais, só regredimos, nunca crescemos..crescemos na mentira, n

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