O escrivão Coimbra - Machado de Assis

Louis Moeller - The Conversation
O escrivão Coimbra

Aparentemente há poucos espetáculos tão melancólicos como um ancião comprando um bilhete de loteria. Bem considerado, é alegre; essa persistência em crer, quando tudo se ajusta ao descrer, mostra que a pessoa é ainda forte e moça. Que os dias passem e com eles os bilhetes brancos, pouco importa; o ancião estende os dedos para escolher o número que há de dar a sorte grande amanhã — ou depois — um dia enfim, porque todas as coisas podem falhar neste mundo, menos a sorte grande a quem compra um bilhete com fé.

Não era a fé que faltava ao escrivão Coimbra. Também não era a esperança. Uma coisa não vai sem outra. Não confundas a fé na Fortuna com a fé religiosa. Também tivera esta em anos verdes e maduros, chegando a fundar uma irmandade, a irmandade de S. Bernardo, que era o santo de seu nome; mas aos cinqüenta, por efeito do tempo ou de leituras, achou-se incrédulo. Não deixou logo a irmandade; a esposa pôde contê-lo no exercício do cargo de mesário e levava-o às festas do santo; ela, porém, morreu, e o viúvo rompeu de vez com o santo e o culto. Resignou o cargo da mesa e fez-se irmão remido para não tornar lá. Não buscou arrastar outros nem obstruir o caminho da oração; ele é que já não rezava por si nem por ninguém. Com amigos, se eram do mesmo estado de alma, confessava o mal que sentia da religião. Com familiares, gostava de dizer pilhérias sobre devotas e padres.

Aos sessenta anos já não cria em nada, fosse do céu ou da terra, exceto a loteria. A loteria, sim, tinha toda a sua fé e esperança. Poucos bilhetes comprava a princípio, mas a idade, e depois a solidão, vieram apurando aquele costume e o levaram a não deixar passar loteria sem bilhete.

Nos primeiros tempos, não vindo a sorte grande, prometia não comprar mais bilhetes, e durante algumas loterias cumpria a promessa. Mas lá aparecia alguém que o convidava a ficar com um bonito número, comprava o número e esperava. Assim veio andando pelo tempo fora até chegar aquele em que loterias rimaram com dias, e passou a comprar seis bilhetes por semana; repousava aos domingos. O escrevente juramentado, um Amaral que ainda vive, foi o demônio tentador nos seus desfalecimentos. Tão depressa descobriu a devoção do escrivão, começou a animá-lo nela, contando-lhe lances de pessoas que tinham enriquecido de um momento para outro.

— Fulano foi assim, Sicrano assim, dizia-lhe Amaral expondo a aventura de cada um.

Coimbra ouvia e cria. Já agora cedia às mil maneiras de convidar a sorte, a que a superstição pode emprestar certeza, número de uns autos, soma de umas custas, um arranjo casual de algarismos, tudo era combinação para encomendar bilhetes, comprá-los e esperar. Na primeira loteria de cada ano comprava o número do ano; empregou este método desde 1884. Na última loteria de 1892 inventou outro, trocou os algarismos da direita para a esquerda e comprou o número 2981. Já então não cansava por duas razões fundamentais e uma acidental. Sabeis das primeiras, a necessidade e o costume, a última é que a Fortuna negaceava com gentileza. Nem todos os bilhetes saíam brancos. Às vezes (parecia de propósito) Coimbra dizia de um bilhete que era o último e não compraria outro se lhe saísse branco; corria a roda, tirava cinqüenta mil-réis, ou cem, ou vinte, ou ainda o mesmo dinheiro. Quer dizer que também podia tirar a sorte grande; em todo caso, aquele dinheiro dava para comprar de graça alguns bilhetes. “Comprar de graça” era a sua própria expressão. Uma vez a sorte grande saiu dois números adiante do dele, 7377; o dele era 7375. O escrivão criou alma nova.

Assim viveu os últimos anos do império e os primeiros da república, sem já crer em nenhum dos dois regimes. Não cria em nada. A própria justiça em que era oficial, não tinha a sua fé; parecia-lhe uma instituição feita para conciliar ou perpetuar os desacordos humanos, mas por diversos e contrários caminhos, ora à direita, ora à esquerda. Não conhecendo as Ordenações do Reino, salvo de nome, nem as leis imperiais e republicanas, acreditava piamente que tanto valiam na boca de autores como de réus, isto é, que formavam um repositório de disposições avessas e cabidas a todas as situações e pretensões. Não lhe atribuas nenhum ceticismo elegante; não era dessa casta de espíritos que temperam a descrença nos homens e nas coisas com um sorriso fino e amigo. Não, a descrença era nele como uma capa esfarrapada.

Uma só vez saiu do Rio de Janeiro; foi para ir ao Espírito Santo à cata de uns diamantes que não achou. Houve quem dissesse que essa aventura é que lhe pegou o gosto e a fé na loteria; também não faltou quem sugerisse o contrário, que a fé na loteria é que lhe dera a vista antecipada dos diamantes. Uma e outra explicação é possível. Também é possível terceira explicação, alguma causa comum a diamantes e prêmios. A alma humana é tão sutil e complicada que traz confusão à vista nas suas operações exteriores. Fosse como fosse, só daquela vez saiu do Rio de Janeiro. O mais do tempo viveu nesta cidade, onde envelheceu e morreu. A irmandade de S. Bernardo tomou a si dar-lhe cova e túmulo, não que lhe faltassem a ele meios disso, como se vai ver, mas por uma espécie de obrigação moral com o seu fundador.

Morreu no começo da presidência Campos Sales, em 1899, fins de abril. Vinha de assistir ao casamento do escrevente Amaral, na qualidade de testemunha, quando foi acometido de uma congestão, e antes da meia-noite era defunto. Os conselhos que se lhe acharam no testamento podem todos resumir-se nesta palavra: persistir. Amaral requereu traslado daquele documento para uso e guia do filho, que vai em cinco anos, e entrou para o colégio. Fê-lo com sinceridade, e não sem tristeza, porque a morte de Coimbra sempre lhe pareceu efeito de seu caiporismo; não dera tempo a nenhuma lembrança afetuosa do velho amigo, testemunha do casamento e provável compadre.

Antes do golpe que o levou, Coimbra não padecia nada, não tinha a menor lesão, apenas algum cansaço. Todos os seus órgãos funcionavam bem, e o mesmo cérebro, se nunca foi grande coisa, não era agora menos que dantes. Talvez a memória acusasse alguma debilidade, mas ele consolava-se do mal dizendo que “com a memória lhe saíram muitas coisas ruins da cabeça”. No foro era benquisto e no cartório respeitado. Em 1897, pelo S. João, o escrevente Amaral insinuou-lhe a conveniência de descansar e propôs-se a ficar à testa do cartório para seguir “o exemplo fortificante do amigo”. Coimbra recusou, agradecendo. Entretanto, não deixava de temer que viesse a fraquear e cair de todo, sem mais corpo nem alma que dar ao ofício. Já não saía do cartório, às tardes, sem um olhar de saudades prévias.

Chegou o Natal de 1898. Desde a primeira semana de dezembro foram postos à venda os bilhetes da grande loteria de quinhentos contos, chamada por alguns cambistas, nos anúncios, loteria-monstro. Coimbra comprou um. Parece que dessa vez não cedeu a nenhuma combinação de algarismos; escolheu o bilhete dentre os que lhe apresentaram no balcão. Em casa, guardou-o na gaveta da mesa e esperou.

— Desta vez, sim, disse ele no dia seguinte ao escrevente Amaral, desta vez cesso de tentar fortuna; se não tirar nada, deixo de jogar na loteria.

Amaral ia aprovar a resolução, mas uma idéia contrária suspendeu a palavra antes que ela lhe caísse da boca, e ele trocou a afirmação por uma consulta. Por que deixar para sempre? Loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia.

— Já não estou em idade de esperar, retrucou o escrivão.

— Esperança não tem idade, sentenciou Amaral, recordando uns versos que fizera outrora, e concluiu com este velho adágio: Quem espera sempre alcança.

— Pois eu não esperarei e não alcançarei, teimou o escrivão; este bilhete é o último.

Tendo afirmado a mesma coisa tantas vezes, era provável que ainda agora desmentisse a afirmação, e, malogrado no dia de Natal, voltaria à sorte no dia de Reis. Foi o que Amaral pensou e não insistiu em convencê-lo de um vício que estava no sangue. A verdade, porém, é que Coimbra era sincero. Tinha aquela tentação por última. Não pensou no caso de ser favorecido, como de outras vezes, com alguns cinqüenta ou cem mil-réis, quantia mínima para os efeitos da ambição, mas bastante para convidá-lo a reincidir. Pôs a alma nos dois extremos: nada ou quinhentos contos. Se fosse nada, era o fim. Faria como fez com a irmandade e a religião; deitaria o hábito às urtigas, remia-se de freguês e iria ouvir a missa do Diabo.

Os dias começaram a passar, como eles costumam, com as suas vinte e quatro horas iguais umas às outras, na mesma ordem, com a mesma sucessão de luz e trevas, trabalho e repouso. A alma do escrivão aguardava o dia 24, véspera do Natal, quando devia correr a roda, e continuou os traslados, juntadas e conclusões dos seus autos. Convém dizer, em louvor deste homem, que nenhuma preocupação estranha lhe tirara o gosto à escrivania, por mais que preferisse a riqueza ao trabalho.

Só quando o dia 20 alvoreceu e pôs a menor distância à data fatídica é que a imagem dos quinhentos contos veio interpor-se de vez aos papéis do foro. Mas não foi só a maior proximidade que trouxe este efeito, foram as conversas na rua e no mesmo cartório acerca de sortes grandes, e, mais que conversas, a própria figura de um homem beneficiado com uma delas, cinco anos antes. Coimbra recebera um tal Guimarães, testamenteiro de um importador de sapatos, que ali foi assinar um termo. Enquanto se lavrava o termo, alguém que ia com ele perguntou-lhe se estava “habilitado para a loteria do Natal”.

— Não, disse Guimarães.

— Também nem sempre há de ser feliz.

Coimbra não teve tempo de perguntar nada; o amigo do testamenteiro deu-lhe notícia de que este, em 1893, tirara duzentos contos. Coimbra fitou o testamenteiro cheio de espanto. Era ele, era o próprio, era alguém que, mediante uma pequena quantia e um bilhete numerado, entrara na posse de duzentos contos de réis. Coimbra olhou bem para o homem. Era um homem, um feliz.

— Duzentos contos? disse ele para ouvir a confirmação do próprio.

— Duzentos contos, repetiu Guimarães. Não foi por meu esforço nem desejo, explicou; não costumava comprar, e daquela vez quase quebro a cabeça ao pequeno que me queria vender o bilhete; era um italiano. Guardate, signore, implorava ele metendo-me o bilhete à cara. Cansado de ralhar, entrei num corredor e comprei o bilhete. Três dias depois tinha o dinheiro na mão. Duzentos contos.

O escrivão não errou o termo porque nele já os dedos é que eram escrivães; realmente, não pensou em nada mais que decorar esse homem, reproduzi-lo na memória, escrutá-lo, bradar-lhe que também tinha bilhete para os quinhentos contos do dia 24 e exigir-lhe o segredo de os tirar. Guimarães assinou o termo e saiu; Coimbra teve ímpeto de ir atrás dele, apalpá-lo, ver se era mesmo gente, se era carne, se era sangue... Então era verdade? Havia prêmios? Tiravam-se prêmios grandes? E a paz com que aquele sujeito contava o lance da compra! Também ele seria assim, se lhe saíssem os duzentos contos, quanto mais os quinhentos!

Essas frases cortadas que aí ficam dizem vagamente a confusão das idéias do escrivão. Até agora trazia em si a fé, mas já reduzida a costume só, um costume longo e forte, sem assombros nem sobressaltos. Agora via um homem que passara de nada a duzentos contos com um simples gesto de fastio. Que ele nem sequer tinha o gosto e a comichão da loteria; ao contrário, quis quebrar a cabeça da Fortuna; ela, porém, com olhos de namorada, fê-lo trocar a impaciência em condescendência, pagar-lhe cinco ou dez mil-réis, e três dias depois... Coimbra fez todo o mais trabalho do dia automaticamente.

De tarde, caminhando para casa, foi-se-lhe metendo na alma a persuasão dos quinhentos contos. Era mais que os duzentos do outro, mas também ele merecia mais, teimando como vinha de anos estirados, desertos e brancos, mal borrifados de algumas centenas, raras, de mil-réis. Tinha maior direito que o outro, talvez maior que ninguém. Jantou, foi à casa pegada, onde nada contou pelo receio de não tirar coisa nenhuma e rirem-se dele. Dormiu e sonhou com o bilhete e o prêmio; foi o próprio cambista que lhe deu a nova da felicidade. Não se lembrava bem, de manhã, se o cambista o procurou ou se ele procurou o cambista; lembrava-se bem das notas, eram parece que verdes, grandes e frescas. Ainda apalpou as mãos ao acordar; pura ilusão!

Ilusão embora, deixara-lhe nas palmas a maciez do sonho, o fresco, o verde, o avultado dos contos. Ao passar pelo Banco da República pensou que poderia levar ali o dinheiro, antes de o empregar em casas, títulos e outros bens. Esse dia 21 foi pior, em ânsia, que o dia 20. Coimbra estava tão nervoso que achou o trabalho demasiado, quando de ordinário ficava alegre com a concorrência de papéis. Melhorou um pouco, à tarde; mas, ao sair, entrou a ouvir meninos que vendiam bilhetes de loteria, e esta linguagem, gritada da grande banca pública, novamente lhe fez agitar a alma.

Ao passar pela igreja onde era venerada a imagem de S. Bernardo, cuja irmandade ele fundou, Coimbra deitou olhos saudosos ao passado. Tempos em que ele cria! Outrora faria uma promessa ao santo; agora...

— Infelizmente, não! suspirou consigo.

Sacudiu a cabeça e guiou para casa. Não jantou sem que a imagem do santo viesse espreitá-lo duas ou três vezes, com o olhar seráfico e o gesto de imortal bem-aventurança. Ao pobre escrivão vinha agora mais esta mágoa, este outro deserto árido e maior. Não cria; faltava-lhe a doce fé religiosa, dizia consigo. Saiu a passeio, à noite e, para encurtar caminho, enfiou por um beco. Deixando o beco, pareceu-lhe que alguém chamava por ele, voltou a cabeça e viu a pessoa do santo, agora mais celeste; já não era a imagem de madeira, era a pessoa, como digo, a pessoa viva do grande doutor cristão. A ilusão foi tão completa que lhe pareceu ver o santo estender-lhe as mãos, e nelas as notas do sonho, aquelas notas largas e frescas.

Imagina essa noite de 21 e a manhã de 22. Não chegou ao cartório sem passar pela igreja da irmandade e entrar outra vez nela. A razão que deu a si mesmo foi saber se a gente local trataria a sua instituição com o zelo do princípio. Achou lá o sacristão, um velho zeloso que veio para ele com a alma nos olhos, exclamando:

— Vossa senhoria por aqui!

— Eu mesmo, é verdade. Passei, lembrou-me saber como é aqui tratado o meu hóspede.

— Que hóspede? perguntou o sacristão sem entender a linguagem figurada.

— O meu velho S. Bernardo.

— Ah! S. Bernardo! Como há de ser tratado um santo milagroso como ele é? Vossa Senhoria veio à festa deste ano?

— Não pude.

— Pois esteve muito bonita. Houve muitas esmolas e grande concorrência. A mesa foi reeleita, sabe?

Coimbra não sabia, mas disse que sim, e sinceramente achou que devia sabê-lo; chamou-se descuidado, relaxado, e voltou para a imagem olhos que supôs contritos e pode ser que o fossem. Ao sacristão pareceram devotos. Também este elevou os seus à imagem e fez a reverência habitual, inclinando meio corpo e dobrando a perna. Coimbra não foi tão extenso, mas imitou o gesto.

— A escola vai bem, sabe? disse o sacristão.

— A escola? Ah! sim. Ainda existe?

— Se existe? Tem setenta e nove alunos.

Tratava-se de uma escola que ainda em tempo da esposa do escrivão, a irmandade fundara com o nome do santo, a escola de S. Bernardo. O desapego religioso do escrivão chegara ao ponto de não acompanhar a prosperidade do estabelecimento, quase esquecê-lo de todo. Ouvindo a notícia, ficou pasmado. No tempo dele não houve mais de uma dúzia de alunos, agora eram setenta e nove. Por algumas perguntas sobre a administração, soube que a irmandade pagava a um diretor e três professores. No fim do ano ia haver a distribuição dos prêmios, grande festa a que esperavam trazer o arcebispo.

Quando saiu da igreja, trazia Coimbra não sei que ressurreições vagas e cinzentas. Propriamente não tinham cor, mas esta expressão serve a indicar uma feição nem viva, como dantes, nem totalmente morta. O coração não é só berço e túmulo, é também hospital. Guarda algum doente, que um dia, sem saber como, convalesce do mal, sacode a paralisia e dá um salto em pé. No coração de Coimbra o enfermo não deu salto, entrou a mover os dedos e os lábios, com tais sinais de vida que pareciam chamar o escrivão e dizer-lhe coisas de outro tempo.

— O último! Quinhentos contos! bradavam os meninos, quando ele ia a entrar no cartório. Quinhentos contos! O último!

Estas vozes entraram com ele e repetiram-se várias vezes durante o dia, ou da boca de outros vendedores ou dos ouvidos dele mesmo. Quando voltou para casa, passou novamente pela igreja mas não entrou; um diabo ou o que quer que era desviou o gesto que ele começou a fazer.

Não foi menos inquieto o dia 23. Coimbra lembrou-se de passar pela escola de S. Bernardo; já não era na casa antiga; estava em outra, uma boa casa assobradada, de sete janelas, portão de ferro ao lado e jardim. Como é que ele fora um dos primeiros autores de obra tão conspícua? Passou duas vezes por ela, chegou a querer entrar, mas não saberia que dissesse ao diretor e temeu o riso dos meninos. Foi para o cartório e, de caminho, mil recordações lhe restituíam o tempo em que aprendia a ler. Que ele também andou na escola, e evitou muita palmatoada com promessas de orações a santos. Um dia, em casa, ameaçado de apanhar por haver tirado ao pai um doce, aliás indigesto, prometeu uma vela de cera a Nossa Senhora. A mãe pediu por ele, e alcançou perdoá-lo; ele pediu à mãe o preço da vela e cumpriu a promessa. Reminiscências velhas e amigas que vinham temperar o árido preparo dos papéis. Ao mesmo S. Bernardo fizera mais de uma promessa, quando era irmão efetivo e mesário, e cumpriu-as todas. Onde iam tais tempos?

Enfim, surdiu a manhã de 24 de dezembro. A roda tinha de correr ao meio-dia. Coimbra acordou mais cedo que de costume, mal começava a clarear. Conquanto trouxesse de cor o número do bilhete, lembrou-se de o escrever na folha da carteira para havê-lo bem fixo, e no caso de tirar a sorte grande... Esta idéia fê-lo estremecer. Uma derradeira esperança (que o homem de fé nunca perde) lhe perguntou sem palavras: que é que lhe impedia tirar os quinhentos contos? Quinhentos contos! Tais coisas viu neste algarismo que fechou os olhos deslumbrados. O ar, como um eco, repetiu: Quinhentos contos! E as mãos apalparam a mesma quantia.

De caminho, foi à igreja, que achou aberta e deserta. Não, não estava deserta. Uma preta velha, ajoelhada diante do altar de S. Bernardo, com um rosário na mão, parecia pedir-lhe alguma causa, se não é que lhe pagava em orações o beneficio já recebido. Coimbra viu a postura e o gesto. Advertiu que ele era o autor daquela consolação da devota e olhou também para a imagem. Era a mesma do seu tempo. A preta acabou beijando a cruz do rosário, persignou-se, levantou-se e saiu.

Ia a sair também, quando duas figuras lhe passaram pelo cérebro: a sorte grande, naturalmente, e a escola. Atrás delas veio uma sugestão, depois um cálculo. Este cálculo, por mais que digam do escrivão que ele amava o dinheiro (e amava), foi desinteressado; era dar de si muita coisa, contribuir para elevar mais e mais a escola, que era também obra sua. Prometeu dar cem contos de réis para o ensino, para a escola, Escola de S. Bernardo, se tirasse a sorte grande. Não fez a promessa nominalmente, mas por estas palavras sem sobrescrito, e todavia sinceras: “Prometo dar cem contos de réis à Escola de S. Bernardo, se tirar a sorte grande”. Já na rua, considerou bem que não perdia nada se não tirasse a sorte, e ganharia quatrocentos contos, se a tirasse. Picou o passo e ainda uma vez penetrou no cartório, onde buscou enterrar-se no trabalho.

Não se contam as agonias daquele dia 24 de dezembro de 1898. Imagine-as quem já esperou quinhentos contos de réis. Nem por isso deixou de receber e contar as quantias que lhe eram devidas por atos judiciais. Parece que entre onze horas e meio-dia, depois de uma autuação e antes de uma conclusão, repetiu a promessa de cem contos à Escola: “Prometo dar, etc.” Bateu meio-dia e o coração do Coimbra não bateu menos, com a diferença que as doze pancadas do relógio de S. Francisco de Paula foram o que elas são desde que se inventaram relógios, uma ação certa, pausada e acabada, e as do coração daquele homem foram precipitadas, convulsas, desiguais, sem acabar nunca. Quando ele ouviu a última de S. Francisco, não se pôde ter que não pensasse mais vivo na roda ou o que quer que era que faria sair os números e os prêmios da loteria. Era agora... Teve idéia de ir dali saber notícias, mas recuou. Mal se concebe tanta impaciência em jogador tão velho. Parece que estava adivinhando o que lhe ia acontecer.

Desconfias o que lhe aconteceu? Às quatro horas e meia, acabado o trabalho, saiu com a alma nas pernas e correu à primeira casa de loterias. Lá estavam, escritos a giz em tábua preta, o número do bilhete dele e os quinhentos contos. A alma, se ele a tinha nas pernas, era de chumbo, porque elas não andaram mais, nem a luz lhe tornou aos olhos senão alguns minutos depois. Restituído a si, consultou a carteira, era o número exato. Ainda assim, podia ter-se enganado, ao copiá-lo. Voou num tílburi a casa; não se enganara, era o número dele.

Tudo se cumpriu com lealdade. Cinco dias depois, a mesa da irmandade recebia os cem contos de réis para a Escola de S. Bernardo e expedia um oficio de agradecimento ao fundador das duas instituições, entregue a este por todos os membros da mesa em comissão.

No fim de abril, casara o escrevente Amaral, servindo-lhe Coimbra de testemunha, e morrendo na volta, como ficou dito atrás. O enterro que a irmandade lhe fez e o túmulo que lhe mandou levantar no cemitério de S. Francisco Xavier corresponderam aos benefícios que lhe devia. A escola tem hoje mais de cem alunos e os cem contos dados pelo escrivão receberam a denominação de patrimônio Coimbra.


- Machado de Assis, 'O escrivão Coimbra'/Contos Avulsos. in: Relíquias de Casa Velha, Machado de Assis. Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938. (Publicado originalmente em Almanaque Brasileiro Garnier, 1906).
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