História mais longa para quebrar o ritmo - Marina Colasanti

Paul Gauguin - a breton landscape david-s mill - 1894
História mais longa para quebrar o ritmo


Chove.
Os primeiros bichos chegam ao celeiro da montanha. E já a água sobe nas planícies e os rios abandonam seus leitos. Mas o celeiro é úmido e quente, madeira podre, cheiro de toca, e os animais se sentem protegidos. Chegam, farejam na porta escura, e logo entram misturando-se a seus pares.
Chove.
Poucos nos primeiros dias, se aquecem uns contra os outros, pêlo, pena, couro, escama. Mas a chuva continua e mais bichos chegam, enchendo o celeiro que estala debaixo da tempestade e da pressão.
Ninguém ouve quando o gato come o rato. Na noite seguinte, quando o gato é morto pelo cão, os outros animais, entretidos com a luta do tigre e do elefante, nada percebem. No alarido que acompanha a vitória do tigre, a jibóia fecha suas espirais sobre o coelho, sem que o estalar dos ossos seja notado pelos demais.
Chove.
A água sobe ao redor do celeiro, imenso lago. O ronco do trovão abafa o rosnar da pantera que salta sobre a gazela. Esquivo, o chacal bebe o sangue. Na escuridão do celeiro a coruja abre os olhos fechando a garra sobre o dorso do esquilo, o javali enterra as presas no flanco da raposa, o morcego se espoja na jugular do boi.
Chove. Mas as nuvens se esgarçam no horizonte, e uma luz distante ilumina as águas.
Lá fora o silêncio. Cá dentro balidos, gemidos, rosnados, latidos. Ágil, o macaco escapa da onça. Rápido, o condor se abate sobre ele. O veneno da tarântula mergulha a marmota em sono definitivo, a picada da lacraia paralisa o cavalo, e o escorpião ameaçado pelo tatu volta contra si o próprio ferrão. O chifre do búfalo afunda na maciez do carneiro. A girafa dobra-se ao peso do lince. A garça desfolha-se sob a fúria do lobo. A hiena ri seu longo pranto.
Perdida a violência, a chuva se faz fina e lenta garoa.
E lentamente o urso aperta o tamanduá prenhe de formigas, o rinoceronte esmaga o crocodilo farto de pássaros, a lagartixa engole o grilo devorador de mosquitos. Na palha, o quati não pressente o aproximar-se do falcão, nem vê a cobra que lhe disputa a presa.
Fina e espaçada, a chuva pára. Aos poucos a água baixa, o primeiro verde surge na lama. Então a pomba desabrocha súbitas asas em farfalhar de vôo, para logo voltar com um raminho no bico, à procura de um lugar entre as telhas, para o ninho. Embaixo, no celeiro, o leão ferido de morte estraçalha as carnes do último adversário.

— Marina Colasanti, no livro "Um espinho de marfim e outras histórias". Porto Alegre: L&PM, 1999.

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