O manifesto da cidade - Clarice Lispector

© Catrin Welz-Stein
O manifesto da cidade

Por que não tentar neste momento, que não é grave, olhar pela janela? Esta é a ponte. Este o rio. Eis a Penitenciária. Eis o relógio. E Recife. Eis o canal. Onde está a pedra que sinto? a pedra que esmagou a cidade. Na forma palpável das coisas. Pois esta é uma cidade realizada. Seu último terremoto se perde em datas. Estendo a mão e sem tristeza contorno de longe a pedra. Alguma coisa ainda escapa da rosa dos ventos. Alguma coisa se endureceu na seta de aço que indica o rumo de – Outra Cidade.
Este momento não é grave. Aproveito e olho pela janela. Eis uma casa. Apalpo tuas escadas, as que subi em Recife. Depois a pilastra curta. Estou vendo tudo extraordinariamente bem. Nada me foge. A cidade traçada. Com que engenhosidade. Pedreiros, carpinteiros, engenheiros, santeiros, artesãos – estes contaram com a morte. Estou vendo cada vez mais claro: esta é a casa, a minha, a ponte, o rio, a Penitenciária, os blocos quadrados de edifícios, a escadaria deserta de mim, a pedra.
Mas eis que surge um Cavalo. Eis um cavalo com quatro pernas e cascos duros de pedras, pescoço potente, e cabeça de Cavalo. Eis um cavalo.
Se esta foi uma palavra ecoando no chão duro, qual é o teu sentido? Como é cavo este coração no peito da cidade. Procuro, procuro. Casa, calçadas, degraus, monumento, poste, tua indústria.
Da mais alta muralha – olho. Procuro. Da mais alta muralha não recebo nenhum sinal. Daqui não vejo, pois tua clareza é impenetrável. Daqui não vejo mas sinto que alguma coisa está escrita a carvão numa parede. Numa parede desta cidade.

A ROSA BRANCA
Pétala alta: que extrema superfície. Catedral de vidro, superfície da superfície, inatingível pela voz. Pelo teu talo duas vozes à terceira e à quinta e à nona se unem – crianças sábias abrem bocas de manhã e entoam espírito, espírito, superfície, espírito, superfície intocável de uma rosa.
Estendo a mão esquerda que é mais fraca, mão escura que logo recolho sorrindo de pudor. Não te posso tocar. Teu novo entendimento de gelo e glória meu rude pensamento quer cantar.
Tento lembrar-me da memória, entender-te como se vê a aurora, uma cadeira, outra flor. Não temas, não quero possuir-te. Alço-me em direção de tua superfície que já é perfume.
Alço-me até atingir minha própria aparência. Empalideço nessa região assustada e fina, quase alcanço tua superfície divina...
Na queda ridícula as asas de um anjo quebrei. Não abaixo a cabeça rosnante: quero ao menos sofrer tua vitória com o sofrimento angélico de tua harmonia, de tua alegria. Mas dói-me o coração grosseiro como de amor por um homem.
E das mãos tão grandes sai a palavra envergonhada.

— Clarice Lispector, no livro “Onde estivestes de noite”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999
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Esvaziamento - Clarice Lispector

© Maria de Vries
Esvaziamento

Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos os dois de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nós tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.
Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seus amores. Experimentamos ficar calados – mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.
Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.
Foi quando, tendo minha família se mudado para S. Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto, eis-nos dentro de casa de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.
Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.
Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.
Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.
Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.
Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios dos conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade – posso dizer em consciência – que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.
Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.
Encerrada a questão com a Prefeitura – seja dito, de passagem, com vitória nossa – continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cedera a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.
Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.

— Clarice Lispector, no livro “Onde estivestes de noite”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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Dançando com o espantalho - Lya Luft

Espantalho, Portinari - 1958
Dançando com o espantalho

Tenho dito ou insinuado aqui que amadurecer deveria ser visto como algo positivo e que envelhecimento não é revogação da individualidade. Um dos motivos de nossas frustrações, homens e mulheres, é vivermos numa cultura que idolatra a juventude e endeusa a forma física além de qualquer sensatez. Se maturidade é fruto da mocidade e velhice é resultado da maturidade, viver é ir tecendo naturalmente a trama da existência. Processo tão enganosamente trivial para aquele que o vive, tão singular para quem o observa. Tão insignificante no contexto da história humana. Seguindo esse fluxo, vestidos com nossas circunstâncias, carregando a bagagem que nos foi dada e a que fomos adquirindo, navegamos. Escolhemos algo do roteiro, desenhamos alguma coisa nas margens, acompanhados por presenças positivas mas também pelo monstro da nossa dificuldade de viver bem, sempre pronto a liquidar conosco. Não nos damos sempre conta dele: faz parte da nossa cultura, nossa educação, da mídia, da personalidade. Está nas revistas, na mente dos que nos rodeiam e dos que amamos, está dentro de nós. Cresce e prospera na medida em que não temos o costume de lidar com ele. O inimigo é variado, tem muitas cabeças. Somos muitos, dizia o demônio que possuíra um infeliz na literatura cristã. Todas elas nos controlam e inibem: a imposição e aceitação de modelos inatingíveis; a não-apreciação de si; a submissão a preconceitos, a ausência de valores pessoais; a frivolidade nos relacionamentos afetivos mais variados. O consequente temor do processo que em lugar de evolução e crescimento nos assusta como aniquilamento. Precisamos superar a ideia de que estamos meramente correndo para o nosso fim, num processo de deterioração e apagamento. Esse é o nosso fantasma mais destrutivo, pois se alimenta com nosso terror da morte, e cresce desmesuradamente porque nosso vazio interior lhe concede um espaço extraordinário. Se quisermos, mais que sobreviver, crescer enquanto humanos e pensantes, esse relógio sobre a mesa-de-cabeceira ou no pulso - especialmente o relógio em nossa mente - deve ser apenas aquilo que é: instrumento para medir e coordenar as atividades cotidianas. Para marcar as fases com seus encantos e limitações, sua riqueza e suas privações, mas de modo geral significando crescimento, não mutilação. A cada transição executamos nossos rituais, perdemos alguns bens e ganhamos outros, alguns duramente conquistados.
Falo dos bens de dentro.
Esses que nem o banco fechando nem país falindo caducam; esses que nem o amado morrendo a gente perde; esses que na dor nos iluminam, na alegria nos ajudam a curtir mais, e no tédio - quando tudo parece tão sem graça - agitam correntes submersas de energia mesmo se a superfície parece morta. Quando pensamos que tudo acabou, que nunca mais teremos alegria ou emoção, tudo isso que estava guardado e é bom emerge em plena vigência e força. É desses tesouros que eu falo: eles podem vencer o que nos paralisa. Hão de superar essa cultura do aqui e agora, do aproveitar, do adquirir, do estar na moda, do estar por cima, do estar-se agitando e curtindo sem parar. Na infância tudo é sempre agora.
Estamos ocupados em viver. Aos poucos se distinguem antes e depois, talvez pela separação momentânea de uma presença reconfortante que vai e retorna num tempo ainda não medido. A ausência se torna real num lampejo quando essa pessoa volta."Ué, você não estava aí?" Por fim emergimos daquelas águas mornas e percebemos que existimos - no tempo.
Estamos em processo, em viagem, estamos em curso. O limbo assume nitidez e começa a nossa história. Quando menina eu gostava de levantar ao amanhecer e saborear o proibido, pois criança tinha de ficar quieta na cama até a mãe chamar. Ia até a janela e abria, devagar para não fazer ruído. Como era mágico o jardim naquela hora. Pleno da noite que terminava, pleno da espera pelo dia que ia começar.
Já naquela época a alternância dos dias não me parecia hostil, mas uma espécie de feitiço que provocava transformações: o casulo com a promessa de asas cintilantes. Por que necessariamente agora, com corpo agrandado, pele menos suave, rugas e experiência, estarei em declínio e não em natural transformação - como tudo o mais? O que é bonito num bebê desagrada num adolescente; o que num jovem deslumbra, numa pessoa madura pode ficar deslocado; assim como na velhice - se ela não for uma caricatura da juventude -, encanta o que é próprio dela. "Mas o que pode haver de positivo em ficar velho?" perguntaram-me um dia. "Diga uma coisa só, e vou acreditar." As qualidades interiores vão sobressaindo, afirmando-se sobre as físicas. Ao contrário da pele, cabelos, brilho de olhar e firmeza de carnes, elas tendem a se aprimorar: inteligência, bondade, dignidade, escutar o outro. Capacidade de compreender. Mas é preciso que exista algo interior para sobressair: o desgaste físico será compensado pelo brilho de dentro. Não será preciso nem mutilar-se com cirurgias além do razoável, maquilagem exagerada, roupas extravagantes.., nem ocultar-se porque estamos maduros, ou já estamos velhos. Se a transformação que se efetua em nosso corpo é inexorável, sua velocidade e características dependem de genética, cuidados, saúde, vitalidade interior também. Com o inexorável só há uma saída, e não será fugir: é vivenciá-lo do melhor modo que posso. A questão não é que a vida fique suspensa, mas que a gente viaje com ela, em lugar de paralisar-se e ficar atrás.
Se não formos demasiado tolos, gostaremos de nossa aparência em todos os estágios. Olhar-se no espelho e dizer: "Bom, essa sou eu". Nem extraordinariamente conservada nem excessivamente destruída. Estou como se está nesta fase. E se eu sou assim, gosto de mim. Sou a minha história. Pois não somos só nossa aparência; mas somos também nossa aparência. Negá-la é negar o que, afinal, nos tornamos. Por isso, se é melancólico negligenciar a aparência, é patético querermos parecer ter 20 anos aos 40, ou 40 aos 70. Deveríamos querer ser belas, dignas, elegantes e vitais pessoas - de 60 ou 80 anos. Felizes, ainda, aos oitenta anos.
Emprestaram-me um livro onde estava sublinhada a frase: a meta da vida é a morte. Bem, eu acredito que o final da vida é a morte, mas que a meta da vida é uma vida feliz. Palavras gastam-se como pedras de rio: mudam de forma e significado, de lugar, algumas desaparecem, vão ser lama de leito das águas. Podem até reaparecer renovadas mais adiante. Felicidade é uma delas. Banalizou-se porque vivemos numa época de vulgarização de grandes emoções e desejos, tudo fast food, prêt-à-porter, pronto para o micro-ondas, fácil e rápido… e tantas vezes anêmico. Se por encantamento e profissão escolhi o território das palavras, sei o quanto algumas se contaminam pelo uso e se tornam agressivas ou contraditórias, têm ares de ironia ou de ingenuidade. Tornam-se confusas e ineficientes, prestam-se a mal-entendidos ou clareiam mais o significado. Conheço um pouco o modo como se apoderam das nossas experiências e lhes dão rostos, roupas, ares que nem tínhamos imaginado. Gosto das coisas - pessoas e palavras - desconcertantes. Seus contornos imprecisos permitem que a gente exerça o direito de refletir e de criar em cima delas. Mas algumas palavras e circunstâncias me assustam quando espio por trás de seus sete véus.
Muitas revestem as transformações de nosso tempo, mudança de padrões de comportamento, progresso e avanço, mas também sombra e estéril angústia, desperdício. Algumas têm a ver com ideais que não só raramente atingimos, como, obtidos, pouco têm a ver com liberdade e com felicidade. O curso do tempo significaria me tornar cada vez mais completo, se eu não carregasse comigo o preconceito fundante de nossa época: só a juventude é bela e tem direito de ser feliz, a maturidade é sem graça e a velhice é uma maldição. A idade madura não precisa ser o começo do fim, idade avançada não precisa ser isolamento e secura.
Podem-se fortalecer laços amorosos, familiares, de amizade, variar de interesses, curtir melhor o gozo das coisas boas. Existir é poder refinar nossa consciência de que somos demais preciosos para nos desperdiçarmos buscando ser quem não somos, não podemos, nem queremos ser. "É assim, o tempo: devora tudo pelas beíradinhas, roendo, corroendo, recortando e consumindo. E nada nem ninguém lhe escapará, a não ser que faça dele seu bicho de estimação." (O ponto cego, 1999)
Acompanhando-me neste livro o leitor me ajudará a desenovelar o tempo refletido, o tempo pensado, o tempo odiado e temido, o tempo conquistado. Por que teremos tanto medo dele? Por que, em que momento decidimos que ele será ameaça e não promessa? Ou: quando nos ensinaram a pensar assim… e por que aceitamos isso? Vivemos numa civilização que nos concedeu mais tempo mas detesta a passagem do tempo. "Você afirma que o tempo não existe… então, como escreve tanto sobre ele?", pergunta a jornalista. Ela tem - e não tem - razão. Ele tem sido pano de fundo ou até personagem de obras minhas. Afirmando que ele não existe quero dizer que não existe como algo determinante de minhas crenças ou pessimismo, se eu não quiser assim. Não é uma poderosa entidade externa que a partir de certa idade (marcada aleatoriamente ou pelas organizações mundiais de saúde) me impele montanha abaixo sem que eu possa reagir. A gente pode reagir de muitas maneiras positivas: assumindo e apreciando cada fase de si; não se resignando ao pensamento massificado nem desistindo assim que as rugas se instalam; jamais caindo na falsa rebeldia que nos transforma numa caricatura de jovem.
Alguns conceitos vigentes sobre as alegrias possíveis na maturidade são patéticos. Uma mulher de 65 anos, independente, comprou um apartamento novo. Os comentários que escutava eram estimulantes, mas alguns a deixaram desconcertada: "Você, com esse belo apartamento agora, deve ter homens aos montes." "Perto de seu edifício novo abriram uma academia de ginástica, moderna. Agora certamente você não terá dificuldade em encontrar garotões." Nesse patético reino da futilidade, esses conceitos não mandam viver, mas congelar-se. Não propõem uma construção de valores positivos, mas a semeadura de uma vegetação rasteira de tolices. O tempo será aquele ogro que devora criancinhas, e os momentos de crise vão nos jogar de um lado para o outro como bonecos de trapo, seres humanos empalhados. Se meu olhar confere sentido ao real, também ao exterior, posso declarar que o mundo tem lugar para mim independentemente de minha beleza física ou aparência e idade. Mas se meu olhar enxergar tudo pelas lentes da superficialidade mais tola ou cínica, devo arrumar as malas e me recolher antes, bem antes da plenitude da maturidade. Como tantas coisas mais, viver vai modificar meu corpo. Sobre a minha alma vai exercer apenas o poder que eu lhe conceder. Só se permitirmos esse nosso companheiro mais íntimo - o tempo no qual viajamos - se tornará nosso carrasco. Passaremos a nossa existência amarrados a um espantalho que em lugar de afugentar aves daninhas inibe a nossa possibilidade de voar. O jeito é virar o jogo. Aceitar como natural o que é natural, acolher bem o que não pode ser modificado. Há todo um leque de boas razões para viver bem e de coisas instigantes a descobrir, que antes 94 eu talvez não tivesse disponibilidade nem sabedoria para sequer tentar.
Somos tão frívolos que nos tornamos incapazes de amar a vida tal como nos é dada e conquistada em cada estágio. Somos dominados por uma inquietação que não é aquela positiva que nos leva a produzir, a nos abrirmos para novidades, mas agitação infantil de quem nunca se contenta porque não se encontra. Por isso se fragmenta e se perde. Se estamos fora dos padrões - convencionados pelos outros (nem sempre reais nem sempre muito respeitáveis) - por sermos muito grandes ou muito gordos ou muito velhos ou menos requintados ou menos ricos e menos poderosos, não nos permitimos ser naturalmente desejáveis e amorosos. Portanto, não nos deixamos ser amados. Um corpo maduro ou velho pode ser saudável e harmonioso assim como um corpo jovem pode ser doentio ou disforme.
Mas compararmos um corpo maduro ou velho a um corpo na plenitude do seu frescor é infantil e cruel. Ter mais tranquilidade, mais conhecimento e fortalecer conceitos próprios, em suma, ser um indivíduo, exige reflexão, exige firmeza e individualidade. Mas tais conceitos são antiquados. Fora de moda. Somos constantemente convocados para o que se chama aproveitar a vida - o que quer que isso queira dizer. Quando eu era jovenzinha escutava (ainda hoje às vezes) coisas como: "Não casem cedo, primeiro é preciso aproveitar!" Isso valia só para os rapazes: as meninas preparavam-se para ser submissas e gentis. Hoje escuto: "Não me inventem de ter filhos logo, primeiro aproveitem!"
Eu mesma não saberia dizer o que penso dessa expressão, até porque não a emprego. O que sei é que aproveitar não há de ser essencialmente adquirir, comprar, gozar, ter, viajar, dançar, transar, consumir. Tudo isso faz parte, e é ótimo, mas o que será exatamente esse aproveitar?
Para alguns, estar sempre na moda, ainda que o modelo oferecido esteja totalmente além (ou aquém) da nossa mais remota possibilidade. Para outros, ter materiais de consumo que não combinam com seu próprio desejo. Atrelados como animais indefesos a idéias que nem sequer aprovamos, somos vítimas de fantasias criadas e alimentadas pela mídia, pela indústria, pela moda, pelo comércio - que nos quer vender essas mercadorias iconizadas, valorizadas sobre todas as coisas: a beleza do momento, e a eterna juventude. O horror da diferença física está tão disseminado que não é incomum, indagando sobre alguma pessoa, ouvirmos a resposta no mínimo peculiar (acompanhada de um gesto significativo): "Como vai sua filha?" "Está goooooooooorda!" "E como está Fulano?" "Bom, este está imenso!" Não lhes ocorre que posso querer saber se a pessoa está viajando, se teve mais um filho, concluiu os estudos, está doente, ou alegre, que se aposentou, que voltou a se casar. Nossa obsessão atual é, antes mesmo de dinheiro e posição social, a aparência física. Então viver não é avançar, mas consumir-se e definhar. No entanto, faz parte de crescer que na infância meus ossos se alonguem, que meu sapato não seja mais tamanho 25. Faz parte de crescer que na maturidade o corpo mude e siga se transformando mais. 96 Faz parte do processo da vida, não da morte, que aos 60,70, 80 anos meu andar seja menos ágil, minha pele enrugada, meu corpo menos ereto, meus olhos menos brilhantes. Mas não faz parte que eu me considere descartável e me oculte na sombra sem direito a me movimentar, agir, participar ativamente - dentro de minhas naturais limitações. "Eu não vou à piscina há muitos anos, imagina se vou deixar alguém ver o meu corpo do jeito que está!" Procurando-se tal como era vinte ou quarenta anos atrás, quem assim fala terá a sensação de que não existe mais. De que a pessoa do espelho é não uma continuação daquela anterior, mas uma traição da natureza.
Independentemente de genética, possibilidades reais, idade, estamos sempre frustrados porque não somos mais louros, mais morenos, mais magros, mais altos, mais atléticos, não temos pele mais lisa, olhos mais sedutores. Por que razão aceitamos e cultivamos a ideia patética de que só a juventude é boa e bela, com direito de ousar, de renovar, de amar?
Direito de ser, de ter espaço? Boa parte dos nossos sofrimentos (falo dos dispensáveis) vem do fato de sermos tão infantis. Além da dor pelo que não somos fisicamente, sofremos pelo que ainda temos de fazer: Comprar todos os produtos. Frequentar todos os lugares da moda.
Sobretudo: nunca sossegar, nunca se contentar, nunca se aceitar. Parar para pensar, nem pensar: seria doloroso demais.
Isso não é sinal de uma mente inquieta, mas de uma alma precária. Isso não é viver a vida, muito menos aproveitá-la. Da mesma forma não se para de repente no meio dessa corrida para só então, subitamente, ter a consciência de que se existe como um ser humano complexo, com trajetória e destino. Não convocamos de repente, segundo nosso capricho, a hora de amar, hora de ser decente, generoso, de refletir, de olhar para dentro de mim e dos que vivem comigo. Hora de me questionar. Hora de mostrar aos filhos algo do que penso, hora de ser, com meu amor, um companheiro e cúmplice leal. Não funcionamos assim. Nossas fases não se compartimentam em diques e represas: são fluxo, água corrente. Portanto a hora é sempre. Mas tem de ser natural, tem de fazer parte do convívio, não ser um instante inserido no cotidiano como um corpo estranho quando estamos inquietos ou culpados. O amor que dialoga é um hábito. Se nunca exercido, não produzirá inesperadamente uma fruta madura e boa. Mesmo na sexualidade, apesar do alarde, da liberação e da incrível multiplicação de informações (a maioria bastante questionáveis), continuamos muito primários. Acabamos nos submetendo à obrigação de sermos sexualmente fantásticos (quase sempre mentira e empulhação por insegurança), mas como seres humanos possivelmente seremos precários. Se a mídia me oferece como ser feliz na cama - ou fora dela - em dez lições a preço módico, talvez fosse bom analisar e concluir que isso é engodo, que a felicidade amorosa não vem do desempenho, mas da ternura que aprimora e intensifica o desempenho.
Precisaríamos aprender a lutar contra os modelos absurdos; a descobrir quem sou, do que gosto, como gosto de ser - como fico mais feliz. Isso não está nas revistas, na televisão, nos palpites dos amigos: é íntimo, pessoal, intransferível. Cada um o precisa entender e construir. A felicidade é assim: cada um, a cada dia, aceita a que o mercado lhe oferece… ou determina a sua.

— Lya Luft, no livro "Perdas e ganhos". Rio de Janeiro: Record, 2006
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Desenhando no fundo do espelho - Lya Luft

© Leonid Afremov

Desenhando no fundo do espelho

Fruto de enganos ou de amor, nasço de minha própria contradição. O contorno da boca, a forma da mão, o jeito de andar (sonhos e temores incluídos) virão desses que me formaram. Mas o que eu traçar no espelho há de se armar também segundo o meu desejo.
Terei meu par de asas cujo voo se levanta desses que me dão a sombra onde eu cresço - como, debaixo da árvore, um caule e sua flor.

— Lya Luft, no livro "Perdas e ganhos". Rio de Janeiro: Record, 2006.
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Uma viagem musical no tempo e no espaço

radiooooo.com - uma viagem musical no tempo e no espaço
Novo site proporciona uma viagem musical no tempo e no espaço
Basta escolher um país e uma década, e deixar a música rolar através de uma plataforma parecida com uma máquina do tempo. Na plataforma radiooooo.com, usuários podem cavar tesouros musicais de hoje e de ontem.
O site radiooooo tem uma concepção bem simples, apresentando um mapa-múndi com uma linha cronológica logo abaixo. Após escolher um país e uma década entre 1900 e "agora", o usuário está pronto a embarcar numa viagem musical no tempo – da bossa nova brasileira da década de 1960 à música o Congo na época em que era colônia da Bélgica; de canções populares russas de 1920 a sucessos atuais do Canadá.
A plataforma é uma verdadeira ilha encantada para os caçadores de tesouros musicais, já que o universo da world music é aparentemente inesgotável. Mesmo para os fãs ardorosos do violonista brasileiro João Pernambuco (1883-1947), o combo E. T. Mensah & The Tempos, de Gana, é possivelmente inédito. E quem já ouviu falar da banda Yalla, do Uzbesquistão, ou da sul-africana Die Antwoord?


radiooooo.com - uma viagem musical no tempo e no espaço
Mil possibilidades de escolha – para quem quiser
O DJ francês Benjamin Moreau teve a ideia inicial para o ambicioso projeto ao entrar no carro oldtimer de seu pai: ele se deixou escorregar nos assentos de couro vermelho, acariciou amorosamente o volante. Mas, ao ligar o antigo aparelho de rádio, as batidas de música tecno o arrancaram violentamente de sua nostalgia. Assim nasceu o impulso para criar uma máquina do tempo musical.
Moreau realizou o projeto junto com amigos, todos DJs e amantes da música. Alguns anos antes, à procura de uma identidade musical própria para o frequentado clube parisiense Le Baron, eles haviam acumulado uma grande discoteca de "música do mundo", incluindo os mais diversos gêneros e países.
Para reunir o capital inicial, recorreram ao sistema de crowdfunding Indiegogo – uma plataforma de financiamento coletivo onde startups, artistas, pequenos empresários e comunidades criativas apresentam seus projetos, convidando os visitantes a contribuírem. Alguns realizadores retribuem cada doação com um brinde, seja o CD da produção musical ou um ingresso para o preview do filme financiado.

Mil possibilidades de escolha – para quem quiser
Normalmente, o rádio é o contrário de um meio interativo. A emissora decide a programação, e o ouvinte tem a opção de ficar sintonizado, mudar de estação ou desligar o aparelho, sem possibilidade de escolher ou de realizar buscas por gêneros musicais ou artistas preferidos.
Para Moreau e seus amigos, é justamente essa relação relaxada que constitui o encanto especial do rádio: em seu "laboratório" – como define o site – os ouvintes deles podem se recostar e simplesmente se deixar levar pelos mundos musicais de 11 décadas.
Na prática, porém, radiooooo.com implica um certo grau de interatividade: além de definir a época e o país, o usuário pode escolher um ou mais estilos, entre slow (lento), fast (rápido) e weird (esquisito). A partir daí, a plataforma se encarrega de gerar a playlist.
No modo "táxi", o usuário seleciona um grupo de países e décadas por queira ser livremente transportado. Além disso, o mapa possui ilhas secretas, como a "Neverland", para crianças pequenas e grandes; a "Lazyland", para que têm preguiça de fazer descobertas. As "Discovery Islands" incluem todas as canções recém-adicionadas à plataforma. E a "Fornication Island" se propõe como apoio certeiros para os encontros românticos.
As músicas podem ser compartilhadas, curtidas, postadas ou compradas. Além disso a audioteca está em expansão, pois qualquer usuário pode contribuir, também carregando novas músicas. Moreau explica: "É mais fácil um cazaque de 65 anos apontar o melhor da música da década de 50 no seu país, do que para um francês na casa dos 30."
A quem interessar possa: enquanto escrevia este artigo, o autor empreendeu uma viagem musical pela Guiné Equatorial, Brasil, México, Jamaica, Cuba, Espanha, Uzbequistão, Congo, Gana, Índia, Rússia, Canadá e Coreia do Norte. Não de avião ou navio, claro, mas com a máquina do tempo digital da radiooooo.com.
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Fonte: DW. Novo site proporciona viagem musical no tempo e no espaço. por Julius Schmitt. 6.5.2016.

Tanta mansidão - Clarice Lispector

© Catrin Welz-Stein
Tanta mansidão

Pois a hora escura, talvez a mais escura, em pleno dia, precedeu essa coisa que não quero sequer tentar definir. Em pleno dia era noite, e essa coisa que não quero ainda definir é uma luz tranquila dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável do que era antes um órgão banhado da escuridão da dor. Não estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e mais silencioso de existir.
Mas estou também inquieta. Eu estava organizada para me consolar da angústia e da dor. Mas como é que me arrumo com essa simples e tranquila alegria. É que não estou habituada a não precisar de meu próprio consolo. A palavra consolo aconteceu sem eu sentir, e eu não notei, e quando fui procurá-la, ela já se havia transformado em carne e espírito, já não existia mais como pensamento.
Vou então à janela, está chovendo muito. Por hábito estou procurando na chuva o que em outro momento me serviria de consolo. Mas não tenho dor a consolar.
Ah, eu sei. Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça a agudez da dor. Mas é inútil a procura. Estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir. Quanto durará esse meu estado? Percebo que, com esta pergunta, estou apalpando meu pulso para sentir onde estará o latejar dolorido de antes. E vejo que não há o latejar da dor.
Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva. E eu não estou agradecendo nada. Não tivesse eu, logo depois de nascer, tomado involuntária e forçadamente o caminho que tomei – e teria sido sempre o que realmente estou sendo: uma camponesa que está num campo onde chove. Nem sequer agradecendo ao Deus ou à natureza. A chuva também não agradece nada. Não sou uma coisa que agradece ter se transformado em outra. Sou uma mulher, sou uma pessoa, sou uma atenção, sou um corpo olhando pela janela. Assim como a chuva não é grata por não ser uma pedra. Ela é uma chuva. Talvez seja isso ao que se poderia chamar de estar vivo. Não mais que isto, mas isto: vivo. E apenas vivo de uma alegria mansa.

— Clarice Lispector, no livro “Onde estivestes de noite”. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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Minha amante Esperança - Lya Luft

© Ada Breedveld

Minha amante Esperança

Em plena juventude ela tentou se matar.
Despertando no hospital deparou com uma enfermeira que a interpelou: - Mas por quê, por quê? Ela respondeu, sucinta, lúcida, plena de sua própria dor: - Sem esperança. Todos conhecemos esses dias sem horizonte à vista. A experiência nos ensina que eles passam, a não ser que estejamos doentes ou sejamos ferrenhos pessimistas por natureza ou formação. Ser mais ou menos otimista depende de criação, ambiente familiar, disposição genética (ah, a genética da alma… ), situações do momento. Claro que ter confiança quando se está contente é fácil. Mas não somos só nossa circunstância, somos também nossa essência.
O grande pessimista colhe todas as notícias ruins do jornal e manda aos amigos cada manhã; acha que o ser humano não presta mesmo, o mundo é mero palco de guerras e corrupção. O excessivamente otimista acha que a realidade é a das telenovelas e dos sonhos adolescentes, das modas, das revistas, da praia, do clube. O sensato (não o sem graça, não o chato) sabe que o ser humano não é grande coisa, mas gosta dele; que a vida é luta, mas quer vivê-la bem; que existem - além de injustiça, traição e sofrimento - beleza e afetos e momentos de esplendor. Que se pode confiar sem ser a toda hora traído por quem se ama. Posso ser um pessimista essencial, por natureza ou formação ou circunstâncias. Posso porém estar apenas deprimido. Para sair de uma fase depressiva há mil recursos à disposição de qualquer pessoa. Terapia, uma bela caminhada, um novo amor, pintar o cabelo, jantar num lugar delicioso, mudar de lugar os vasos do jardim, ver o que acontece nas artes. Ler, refletir, observar o dentro e o fora. Comprar um cachorro, ir ao futebol, planejar uma viagem (pode ser só até ali). Tentar aproximar-se da arte, qualquer que ela seja. Renovar interesses e afetos, cultivá-los. Mas se eu curto a minha depressão ou minha visão negra de tudo, se com isso pretendo chamar a atenção dos outros ou puni-los (ou a mim mesmo), posso optar pelo eterno descontentamento. Aos poucos ficarei segregado do círculo dos que são os vitais amantes da esperança.
Mesmo depois que os anos devastaram muita coisa (talvez a família, o trabalho, o meu corpo, meus amores), o que foi bom pode permanecer - não sombra ou vazio, mas motivo de voltar a florescer. Arrastar a cadeira para fora da zona de sombra e sentar-me um pouco ao sol. Passado o primeiro horror de alguma perda grave, na treva da impotência e inconformidade, começam a abrir-se frestas por onde a antiga claridade se derrama no agora. Essa mesa nessa sala, esse filho e aquele amigo, esse som no piano, o ramo de árvore que a gente pretendia cortar, a calçada onde caminhava há muitos anos - tudo nos convoca: não mais para chorar o passado, mas para projetar no presente aquilo que tendo sido belo não se perdeu. E a gente vai tomando consciência de que deve também aos amores que teve, aos amigos que quase esqueceu, à casa vendida junto com parte da infância, à pessoa que se foi em todos esses anos, poder viver melhor outra vez. Com outra pessoa ou sozinha, em outra casa, com outros amigos, com novos objetos ou entre os antigos. Das coisas belas que acabaram nos vêm sempre uma luz e uma capacidade de ver o mais banal com algum encantamento. Essa é a secreta mirada que todos podem exercer mas que se turva pela pressa, pelo excesso de deveres e a exigência de sermos o que não podemos ser. Para viver qualquer fase com alegria, viver com elegância e vitalidade, é preciso acreditar que vale a pena.
Que existem modos de ser feliz, mais feliz, e podemos perseguí-los. Mas essa não é uma caça aos tesouros comprados com dinheiro: é uma perseguição interna, a dos nossos valores, do nosso valor, das nossas crenças e do nosso real desejo.
Quero, preciso, ter esse corpo, essa sexualidade, esses objetos de consumo que os outros exigem de mim - ou fico mais contente sendo como sou, saboreando o que posso adquirir e programando o que posso transformar? Para decidir isso devíamos abrir em nosso cotidiano um espaço de recolhimento, observação, auto-observação. É preciso o silêncio ativo de quem pensa. Mas é difícil fugir da convenção social que, se por um lado nos traz uma vasta coleção de livros e cursos que falam de meditação, reflexão, espiritualidade (que também anda se tornando moda… ), por outro lado comanda por todos os meios que a gente se agite: é preciso sair, viajar, tem de fazer, frequentar, aparecer.
Tem de ser alegre e atualizado, tem de aparecer, conhecer os lugares da moda, ser chique, viajar, claro - nem tanto para abrir os horizontes, mas para depois poder participar das conversas com os amigos ou conhecidos. O mais novo restaurante, a mais moderna galeria, a loja mais fantástica. Tem de ser feliz com hora marcada, nos fins de semana, assim como alguns casais precisam se amar (somente) nas tardes de sábado.
Na juventude somos aprendizes, somos amadores na vida. Na maturidade devíamos ser bons profissionais do viver: lúcidos e ainda otimistas, mais serenos, de uma beleza diferente, produtivos e competentes. Mas me disseram que passada certa fase não posso mais mudar de rumo, de casa, de roupa, de lugar. Mesmo na pior relação, nem pensar em me separar, em me apaixonar (ainda que eu seja livre), em ter uma boa vida sexual (ainda que eu seja saudável). Não teremos escolha, se passamos de "certa idade"? Com o passar do tempo efetivamente passa o "nosso tempo"? A escolha é nossa, de cada um de nós. Temos escolha, mas somos inseguros. Podemos mudar, mas não acreditamos nisso. Boa parte dessa hesitação vem de fora, de palpites alheios, de propósitos superficiais, de modelos tolos. Viver e ser feliz não deveria ser assim tão complicado, reclamou alguém. E por que a gente não simplifica ao menos o que pode descomplicar? Amadurecer deveria ser requintar-se na busca da simplicidade. Escrevo em meus romances sobre nosso lado obscuro, sobre conflito e drama. Tento desvelar a face trevosa, de perversidade, de autodestruição, de acúmulo de raivas e ressentimento que há no ser humano. Mas não acredito que ele seja principalmente isso. Gosto de gente. Sou solidária com os personagens de ficção que criei com minha imaginação. Quem não me conhece e me julga, pelos meus livros, um ser distante ou sombrio, engana-se: vive em mim uma incorrigível otimista que acredita em ser feliz. Em renovação, em superação, em sobrevivência = não como resto e destroço, mas como um ser a cada fase inteiro. Acredito que viver é elaborar e criar: são inevitáveis as fatalidades, doença e morte. O resto - que é todo o vasto interior e exterior - eu mesma construo. Sou dona do meu destino. É mais cômodo queixar-me da sorte em lugar de rever minhas escolhas e melhorar meus projetos.
"Como posso ser otimista se minha mãe sofre de Alzheimer e meu marido se aposentou com pouco dinheiro e está em casa deprimido, meu filho não encontra seu caminho.., se minhas mãos estão manchadas, o pescoço enrugado, o seio mais caído?" A gente consegue. Não necessariamente com novas técnicas sexuais não com objetos de grife, não no clube da moda ou na praia mais sofisticada: é aqui que aprendo isso. No silêncio de minha casa, de meu corpo, de meu pensamento. Na força de minha decisão, talvez no salto de minha transgressão. Se aceito a ideia de que tudo se encerra quando acaba a juventude, minha possibilidade de ser alguém válido diminui a cada ano. Essa perspectiva produz inércia e desperdício de talentos que poderiam ser cultivados até o fim, sem importar a idade.
Quando, separada do pai de meus filhos, refiz minha vida com outra pessoa, a frase que mais ouvi de amigos foi: "Mas na sua idade a gente ainda pode tentar ser feliz mais uma vez?" Eu me espantava: "Gente, tenho só 46 anos, não 146!" Isso foi aguçando meu interesse pela questão: somos modernos e tão antigos; somos liberados e tão limitados; somos do novo milênio e nem ao menos aceitamos com inteligência a passagem do tempo, e a nossa passagem no tempo. Lançadas as nossas bases - a juventude - começamos enfim a crescer. Aprendemos a relaxar, a ter mais humor, a driblar melhor as coisas negativas, a prestar mais atenção ao que se desenrola à nossa volta. A felicidade exige paciência: é soma, acréscimo, conquista e aperfeiçoamento.
Numa palestra sobre novos interesses na maturidade e na velhice notei que 90% dos frequentadores eram mulheres. Perguntei a um colega meu da mesa de palestrantes, médico: "Onde estão os homens que deveriam estar nesta plateia… Ele, brincando, devolveu a pergunta: "Você já ouviu falar em excursão para viúvos ou palestras para homens?" Eu nunca tinha pensado nisso. Por que não existem? Porque há menos homens viúvos, uma vez que morrem antes das mulheres, e os que ficam sozinhos raramente permanecem sozinhos, buscam logo outra companheira? É possível. Porque boa parte deles, ficando sozinhos, se resignam, se deprimem mais tempo, apoiam-se mais nos filhos? Também. Porque se ocupam mais com seu trabalho quando não se aposentam precoce e desnecessariamente? Idem.
Serão mais inibidos pela ideia que lhes é imposta de que não se pode mudar, é preciso conquistar e aferrar-se a uma posição, voltar atrás é fraqueza. Além disso mulheres têm maior capacidade de formar laços, de curtir afetos, de se reunir em grupo. São mais solidárias e mais cúmplices entre si. Talvez com mais capacidade de alegria. Vejo mulheres viajando sozinhas, em pares ou grupos, divertindo-se, conhecendo coisas e lugares, cultivando interesses, travando novas relações, voltando a estudar. Interagindo, progredindo. Não vejo tantas vezes homens fazendo o mesmo. Viajando em dois ou em grupos, desconheço.
Voltando a estudar, raramente. Por que aos 70 anos não se pode fazer uma pós-graduação, por exemplo? Ou entrar pela primeira vez em uma biblioteca pública para ver o que há nos livros? O que se vê de novo nos cinemas? Seja como for, todos precisamos encontrar uma solução para o inibidor medo da passagem do tempo, que é afinal medo de viver.
Preferíamos nem viver para não gastarmos a alma, encolhidos na concha da alienação. Mas como é que se pode ter vontade, se parece que cada dia a gente perde alguma coisa? Algo se perde? Muito se perde. Tenho hoje uma pequena lista de pessoas que amei que se afastaram ou morreram; se eu chegar aos 80 anos, ela certamente terá crescido. Mas tenho uma doce lista de pessoas que chegaram: não só netos, mas novos amigos de todas as idades. Sem falar nas inovações de técnica que quero conhecer ou utilizar, nas descobertas que tentarei acompanhar, nos livros por ler, nas coisas a fazer. Outro dia perguntei à minha filha médica se eu não estaria desidratada, porque minha pele estava diferente. Ela olhou, sorriu com esse jeito de mãe com que as filhas nos tratam às vezes, e disse com uma graça afetuosa: - Mãe, você tem 60 anos, né? É só isso.
Rimos juntas, nessa cumplicidade típica de mães e filhas. Nem por um segundo tive saudade da pele dos meus 20 anos, pois ela era acompanhada de todas as aflições (e delícias) daquela fase, das quais hoje estou poupada. Olhei bem no espelho, com os óculos de que desde sempre preciso para ler. Verdade: muita coisa mudou. Não estou acabada, estou diferente do que era. Fisicamente estou diversa da menina e da jovem mulher.
O que vou fazer? Me desesperar, me envergonhar, querer voltar atrás?
Prefiro me divertir, encarar com senso de realismo que mudei, e saber que os que me amam continuam me amando apesar de tudo - ou por causa de tudo. "Mas como é possível que algo melhore com a idade?", me perguntaram com vaga indignação. Comecei a calcular, meio na brincadeira: eu me divirto muito mais, a começar no trabalho. Escrever, publicar, aguardar críticas e vendas do meu primeiro romance aos 40 anos foi um êxtase e um susto. Hoje, com tantos livros publicados e tantos leitores fiéis, sinceramente não dou mais a mínima. Não preciso mais mostrar serviço; preciso apenas fazer o que faço com mais leveza (nunca menos seriedade), mais alegria. Mais exigências, isso sim, mas sem demasiada tensão. Nunca me ocorreu ser agressiva em relação aos meus colegas, pois cedo aprendi que em nosso campo de trabalho há lugar para muitos, para todos. Posso me alegrar com o sucesso dos outros sem temer que ele afete o meu pequeno êxito. Porque sou generosa? Não: é porque embora muitas vezes me atrapalhe, erre, cometa todas as futilidades imagináveis, não tenho a afobação nem a insegurança dos 20 anos. Nem aquela simpática pontinha de arrogância que faz com que, jovens, pensemos que o mundo é nosso - e nos deve homenagens. Meu corpo está mudando como está desde que nasci. Meu coração se transforma a cada experiência. Mas ainda palpita, se sobressalta e se assusta. Ainda sou vulnerável ao belo e bom, ao ruim e ao decepcionante, como quando eu tinha 10 anos. Somos isso: somos essa mistura, essa contradição, essa indagação permanente. Estamos vivos.
Também não pretendo afirmar que maturidade é "melhor" do que juventude, velhice "melhor" do que maturidade: digo que cada momento é meu momento, e devo tentar vivê-lo da melhor forma possível, com realismo, com sensatez, com um grão de audácia, e com toda a possível alegria. Por dentro ainda sou a menina que se assusta ou diverte com qualquer bobagem que outros nem percebem, entretidos que estão com assuntos mais importantes. Me divido entre devaneio e vida prática, sem saber direito a qual pertenço. Com o tempo entendi que essa indefinição é só aparente, que a ambiguidade me torna sólida. Muita coisa esconjurei em meus romances, aprendi que o bom humor pode ajudar o amor. Tem algumas vantagens, esse tempo da madureza de que fala o poeta. Que liberdade não ter mais que decidir caminhos profissionais e afirmar-me neles; parir e criar filhos, comprar casa, apertar orçamentos; temer a vastidão do futuro - e haveria lugar para mim dentro dele? Muita coisa que em seu tempo foi dramática, hoje é lembrança que me faz sorrir compadecida com aquela que se enrolava em tantas trapalhadas. Se alguém me amar agora, não será por um belo corpo que fatalmente vai mudar, mas por isto que hoje sou sem disfarces. Nenhuma esplendorosa jovem de 20 anos me ameaça: meu território é outro. Tive perdas, e se multiplicam com o passar do tempo. Tive ganhos, num saldo que não me faz sentir injustiçada.
Especialmente, não perdi essa obstinada confiança que me impele a prosseguir quando o próximo passo parece difícil demais.
Estarmos abertos à renovação e mudança é estarmos vivos. Independe da fase em que estamos. E se aparecer um novo amor podemos renascer para isso, a qualquer momento. Não precisamos mais criar filhos, estabelecer família (o que eu quis muito, e me deu imensas alegrias). Cumprimos muitos deveres. Erramos, porque também isso é preciso. Sofremos, porque faz parte. As crianças que se agarravam à nossa saia hoje são adultos, perto ou longe de nós, mas ainda nossos filhos. A relação materna se enriqueceu e mudou. Podemos até partilhar um pouco com eles quando estivermos vivendo alguma história. "Mas que história?" "Sei (á, um novo projeto, uma viagem, um curso, uma amizade, um amor. "Amor? A essa altura?" Mães e avós são atuantes, viajando, amando, estudando, sendo simplesmente seres humanos pensantes e capazes até uma idade bastante avançada. Mas em algumas famílias, ai delas se, divorciadas ou viúvas, pensam em ter uma nova relação amorosa. São as incoerências de uma cultura que evoluiu precariamente: parece moderna, mas continua antiquada e infantil. "Não posso namorar, meus filhos iam me matar! Nem pensar, apresentar meu namorado em casa, meus filhos iam me achar ridícula!" Vai depender de cada um de nós que sua vida seja território seu ou apenas emprestado, com má vontade, de outros - mesmo filhos. Que seja campo para correr perseguindo projetos e colhendo vivências, ou cova estreita onde a gente se esconde e aguarda o golpe final.
"O tempo que rói e corrói precisa ser reinstaurado", diz um personagem meu, e acrescento: - a nosso favor. Perdemos muito tempo tentando iludir o tempo. Fatalmente amadurecemos mas não nos sentimos mais serenos, nem estamos mais contentes. "Como é que posso me sentir contente a esta altura, com 50 anos? Aos 60, pior, aos 70, a catástrofe?"
Muitas boas coisas podemos fazer na maturidade, que ria juventude não conseguíamos. Faltava-nos disponibilidade, faltavam-nos experiência e liberdade, faltava-nos visão. Estávamos ocupados demais, tensos demais, divididos demais. Se não houver nada imediato para "fazer", pois geralmente tomamos isso como agir, agitar, correr, inventaremos algo.
Pode ser apenas contemplação. Pensar. Ler. Olhar. Caminhar. Quando menos esperamos, salta à nossa frente algo para "fazer" concretamente. Até mesmo em lugar de curtir a síndrome do ninho vazio podemos preencher esse vácuo (pois filhos são sempre nossos filhos ainda que não morem conosco) com mil coisas a fazer. Vamos descobrir, quem sabe, que podemos nos expandir e crescer mais livremente sem tantas solicitações dentro de casa. Foram boas, foram alegres, foram estimulantes mesmo e difíceis, mas agora o tempo é outro. Porém não é tempo nenhum: e isso faz uma grande diferença.
Repensar e reformular-se pessoalmente fez muitas mulheres na maturidade saírem da sombra para se afirmarem em trabalho, ciência e arte. Quando os filhos cresceram, quando a monotonia se insinuava, notamos que ainda sobrava energia e vitalidade: à frente estendiam-se caminhos inexplorados. Saímos a desvendá-los. Muitas não se animaram. Muitas ficaram pelo caminho. Muitas perderam o rumo. Uma ou outra sentiu que era preferível ousar a desistir. Mas boa parte alçou voo e produziu, e participou - e floresceu ainda. No meu caso a insegurança ou a acomodação tinham decretado que eu não escreveria senão crônicas e poemas. O jogo que desde criança me atraía tanto, fazer ficção, parecia vedado: faltava confiança em mim mesma. Faltava a audácia que para algumas pessoas só vem na maturidade ou até depois. Eu adotara a posição confortável do "Eu? Imagina!" que nos exime de muito risco. Intuía que ao escrever romances iria extrair das entranhas personagens dramáticos, evocar medos e dúvidas bem além da minha experiência pessoal - pois falamos por outros, por muitos, por todos. Que estranhas criaturas iriam escancarar os armários onde estavam trancadas - e o que fariam comigo?
Que espaço exigiriam em meu organizado cotidiano? Por que tirar do sossego inquietações que estavam tão bem arquivadas? A fatídica "opinião alheia" ainda me constrangia um pouco: escrever e publicar foi um dos últimos exorcismos desse demônio que em mim nunca fora particularmente ativo, mas espreitava lá do seu recanto.
"O tempo que rói e corrói precisa ser reinstaurado" diz um personagem meu, e acrescento: - a nosso favor. Perdemos muito tempo tentando iludir o tempo. Fatalmente amadurecemos mas não nos sentimos mais serenos, nem estamos mais contentes. "Como é que posso me sentir contente a esta altura, com 50 anos? Aos 60, pior, aos 70, a catástrofe?"
Muitas boas coisas podemos fazer na maturidade, que na juventude não conseguíamos. Faltava-nos disponibilidade, faltavam-nos experiência e liberdade, faltava-nos visão. Estávamos ocupados demais, tensos demais, divididos demais. Se não houver nada imediato para "fazer", pois geralmente tomamos isso como agir, agitar, correr, inventaremos algo.
Pode ser apenas contemplação. Pensar. Ler. Olhar. Caminhar. Quando menos esperamos, salta à nossa frente algo para "fazer" concretamente. Até mesmo em lugar de curtir a síndrome do ninho vazio podemos preencher esse vácuo (pois filhos são sempre nossos filhos ainda que não morem conosco) com mil coisas a fazer. Vamos descobrir, quem sabe, que podemos nos expandir e crescer mais livremente sem tantas solicitações dentro de casa. Foram boas, foram alegres, foram estimulantes mesmo e difíceis, mas agora o tempo é outro. Porém não é tempo nenhum: e isso faz uma grande diferença.
Escrevi aos 40 anos meu primeiro romance: até então não sabia bem para o que servia do ponto de vista profissional. Em casa repetia-se o diálogo: "Eu não consigo descobrir para o que sirvo do ponto de vista profissional." "Então por que não se dedica mais à sua literatura?" "Mas como eu faria isso?" "Você vai descobrir." Descobri. Com dor e dificuldade, acabei encontrando o caminho. E observei que naquele momento da nossa cultura muitas mulheres começavam a crescer como seres humanos e como profissionais mais ou menos naquela idade e com as mesmas vivências. Percebi que, nisso que provavelmente estava sendo a metade de minha vida, ainda havia muito por fazer. Como tantas mulheres, vi que não era hora de pensar em parar, em temer a menopausa, o futuro, a saída dos filhos de casa ou lamentar a juventude que passava.., mas de reestruturar, desenvolver, até iniciar muita coisa nova. Amadurecer começou ali. E foi uma sequência de descobertas, com muita dificuldade e muita alegria. Quem me amava me estimulou confiando em mim, e lhe serei sempre grata por isso: pelo amor que, em lugar de prender e controlar, me libertou e me ajudou a crescer.
Uma das questões, talvez a fundamental, é o que e quanto nos permitimos.
A tendência é de nos permitirem pouco, e de entrarmos nessa onda do: a esta altura? na sua situação? mas você acha mesmo que… ? Minha amiga divorciou-se, e ao ficar sozinha comprou um apartamento grande, iluminado, onde poderia morar confortavelmente uma família inteira. Em lugar de aplaudir, de a estimular, muitas pessoas se espantavam: "Mas pra que você, sozinha, num apartamento tão grande?"
E por que, estando só, ela deveria se acomodar num lugar pequeno - como se já não merecesse espaço? É como dizem às mulheres quando os filhos se foram e quem sabe o marido morreu: "Está doida, onde se viu, morar sozinha naquele casarão?" Mas por que (a não ser por questões reais de segurança, por exemplo) não se pode continuar morando numa casa grande para receber filhos, netos e amigos, e fazer festas - ou porque se aprecia? O espaço interior é necessário para a permanente recriação de si. São os aposentos que deveriam ser os mais generosos e iluminados.
Ali poderíamos analisar nosso trajeto feito, conferir nossos parâmetros, repensar os amores vividos e os projetos possíveis. Porém nesta nossa cultura do barulho e da agitação somos impelidos a fazer coisas, promover coisas, não a refletir sobre elas: precisamos de eventos, roteiros e programas, ou nos sentimos como quem fica de fora e para trás. Porém na verdade o que nos revigora é sossegar, entrar em nós, refletir. Nada se renova, inova, expande e se faz de verdade sem um momento de silêncio e observação. Depois disso podemos, devemos, querer e ousar.
Não nos salva o enquadramento medíocre e burocrático das almas documentais, mas o vasculhar corajoso dentro de si para encontrar o material essencial, e abraçado a ele saltar, às vezes até mesmo sem rede nem garantia. Não é necessário estar em todos os lugares para participar dos milagres e eventuais desconsertos de viver. Mesmo quieta em sua sala ou na mesa de trabalho, a gente pode existir, plenamente, conscientemente, validamente. Mais de uma vez, devido ao mito do escritor que ainda escreve a mão e detesta novidades, jornalistas me perguntaram o que eu acho da Internet, da Net, do computador, do celular, da tecnologia e dos avanços da ciência. Andar de avião é melhor do que ir de carroça; comunicar-me por e-mail com uma pessoa amada várias vezes ao dia - e tendo condições de fazer isso - é melhor do que escrever uma carta a cada duas semanas. Proteger uma criança com uma vacina é melhor do que deixá-la exposta à varíola, à caxumba, ao sarampo e à hepatite. Embora seja questão de gosto e hábito, e usar da caneta possa ter seu charme, eu há muitos anos não me imagino escrevendo e traduzindo a mão. O computador é o servo gentil e eficientíssimo que facilita meu trabalho. Não faz sentido optar por ficar mais isolada se tanta coisa se oferece na minha porta, na minha televisão, no meu computador… a não ser que eu prefira me encolher na pequenez do meu aposento interior sem janelas e talvez sem porta. Há quem goste de se fechar numa caverna. É uma escolha, e você a pode fazer. Mas, por favor, não esfrie o ambiente ao seu redor com os vapores de sua alma gélida.
Resumindo: primeiro, o progresso vem para ficar. Nadar contra a correnteza é no mínimo um desconforto inútil, pode parecer arrogante ou burro. Segundo, é melhor olhar as coisas do ângulo positivo. Nunca as pessoas se comunicaram tanto: amigos que jamais se escreveriam cartas (obsoletas as cartas, não?), se "falam" diariamente no e-mail. Pessoas que estariam na amarga solidão fazem novas amizades no chat. Amantes separados podem curtir um tipo novo de "presença". O universo está à nossa disposição: mais recentes descobertas genéticas, livros de que aqui nem ouvimos falar ainda. Posso visitar os grandes museus, ler sobre cada obra, aproximar de minha vista cada detalhe.
Posso conhecer cidades remotas, ouvir música, jogar xadrez. A escolha é quase infinita. O lixo e o luxo das culturas estão ali para mim. "E o que a senhora acha de namorar ou até fazer sexo na Internet?" Como somos infantis, como são infantis alguns de nossos questionamentos.
Simpáticos, por isso mesmo. Respondo que não há de ser mais original do que faziam ou fazem escondidos os rapazinhos de outros tempos ou destes de agora com revistas especializadas. Damos importância excessiva a todos esses preconceitos, detalhes, pudores, censuras, quando há tanto para se deslumbrar. No vasto mar do vasto mundo - no qual as tecnologias não são boas nem más: dependem do seu uso. O gregário usará o computador para contactar pessoas, pesquisar, abrir-se para todo um universo. O deprimido vai querer se isolar mais. O psicopata exercitará suas grandes ou pequenas manias.
Finalmente, depois de tantas peripécias parece que ao menos do ponto de vista cronológico amadurecemos. Parece que chegamos a um patamar confortável. Superamos dores, cumprimos tarefas, já realizamos coisas que seriam impensáveis na juventude. Agora é recostar-se para trás e traçar projetos de liberdade: uma viagem, um novo curso, os livros para ler, as dores para esquecer, os amigos a encontrar. Mexer nas minhas plantas. Abrir as persianas e vibrar porque a manhã está deslumbrante e temos uma hora para caminhar nas ruas onde andamos há muitos anos: cada folha, cada muro é um conhecido íntimo - e também isso é bom. Mas a velha inquietação, duendezinho matreiro, espia e bota a língua de fora.
E agora, e agora? Vai ser só isso, essa calmaria? Tememos, quem sabe, que daqui em diante tudo se resuma a esse conforto interior no qual se aninham lembranças, tudo desenovelado e resolvido.., pensamos. A tarefa de viver nunca se conclui, a não ser que a gente determine. O sonho e o susto sopram em nosso ouvido quando tudo parece apaziguado. Logo a certeza de ter enfim chegado a um ponto imutável de acomodação começará a vacilar. Algo novo se posta junto da poltrona onde talvez estivéssemos inocentemente vendo televisão. Uma palavra ouvida, uma frase lida, um rosto novo, um velho conhecido, um quase-nada nos toca. Saímos do gostoso torpor, botamos a cabeça fora do casulo para ver melhor. Podemos optar: Vou ficar dormindo. Vou até a próxima esquina ver o que acontece.
Esse momento define a continuação de uma existência em movimento ou cristalizada, afinada ou fora de sintonia. Essa possibilidade de escolher assusta mas é apenas um sinal de que estamos embarcados, estamos em movimento e em transformação. Mesmo agora aquela nossa bagagem de tendências inatas, influência alheia e experiências vividas vai determinar como serão os próximos anos. E, atenção: isso acontece a qualquer instante - se ainda não estivermos empalhados. "O que há com você?" perguntam os amigos. "Você parece tão bem!", dizem os colegas.
"Ouvi você cantando no banheiro!", comentam os filhos. Aos poucos esse novo sopro de ar, que pode ser um projeto, um trabalho, uma viagem, uma amizade nova ou um amor, vai-se delineando melhor. Sua voz é clara e chama o nosso nome. Talvez a gente nem compreenda ainda, mas a sorte - que prepara as armadilhas boas e ruins onde fatalmente cairemos porque estamos vivos - sorri acenando com a nossa nova amante: a vida. O futuro pousa outra vez na nossa mão.
Carta a um amigo que não tem e-mail: Você vai me achar meio louca e intrometida com este bilhete que será longo. Terei de mandar por mensageiro (ainda bem que não tem de ser mensageiro a cavalo entre dois castelos distantes… ) em lugar de lhe passar imediatamente como anexo de e-mail. Pois você, embora podendo, ainda se recusa a ter um computador, detesta toda a sorte de modernismos, e acha que seu tempo passou. Sonhei esta noite com você sozinho e desolado numa enorme casa deserta num terreno ermo. Depois, na mesma casa, agora rodeada de árvores e flores, você organizava uma reforma: marteladas, gente preparando comidas deliciosas, amigos reunindo-se para uma festa.
Você tinha me dito que jamais permitira nenhuma reforma em sua casa, tudo devia ficar como fora trinta anos atrás. Onde se viu nunca reformar nada na casa, ou na gente mesmo? Achei o sonho tão simbólico que resolvi lhe contar. Você é um homem bom, culto, refinado, deprimido e resignado.
Alguns laivos de bom-humor mesmo na depressão mostram que vai sair dessa - se quiser. Vou lhe dar umas idéias que você vai considerar petulantes, mas peço que pense nelas. Não vêm de uma mocinha tola e sim de uma mulher que já andou pelo reino das sombras e voltou. Não tenha pena de si mesmo. Você não é vítima de nada. Você diz que ficou chocado ao perceber que tinha "perdido o bonde porque não estava preparado, não estava atento aos sinais". Então saia desse distanciamento, mergulhe de cara, entregue-se. Se for preciso, dê um salto mortal: pode ser uma última oportunidade. Mudar é difícil, ousar mais ainda. Eu sei. Houve momentos em que ao acordar pensei: "Posso viver ainda uns vinte, trinta anos na situação em que estou agora. Quero continuar assim como estou?"
No mínimo uma nova postura interior dependia inteiramente de mim: o resto viria por acréscimo. Nem sempre o realizei. Nem sempre acertei. Porém mexer-se é melhor do que continuar na areia movediça na qual quanto mais ficamos mais estamos presos. Em geral as coisas práticas que podemos fazer para inovar são simples. Dependem de uma atitude interior aliada a possibilidades concretas como dinheiro e gosto. Para uma mulher doméstica, arrumar armários, botando fora uma porção de velharias inúteis, ou alterar a posição dos móveis a seu gosto - ainda que os outros da casa reclamem - pode ser um começo. Pra você, eu diria, por exemplo (correndo intencionalmente o risco de lhe parecer incrivelmente fútil): compre um computador. Entre na Internet pra pesquisar, descobrir ou se divertir e informar. Fique ligado.
Escolha o que há de positivo na modernidade. Pra que ficar de fora com ar tristonho? Há coisas belíssimas a serem saboreadas. Novidades não ruins por serem novas, mas, filhas do progresso, são as maravilhas da nossa tecnologia, ferramentas interessantes, motivação de se tomar mais inteiro e mais participante. Procure conhecer alguns lugares que você diz abominar por serem "da moda". Não quero sugerir que vá a uma danceteria, mas a um desses locais simpáticos, novos, onde se come bem e se veem pessoas bonitas. Enclausurar-se não ajuda ninguém, muito menos a você mesmo. Não se boicote suportando calor apenas porque acha que "ar condicionado é ruim para a saúde". Se fosse assim, metade da população de Europa e Estados Unidos, onde a calefação é uma constante, estaria morta.
Conheço profissionais da sua área, velhos, velhos mesmo, que ainda atuam ou apenas se informam e atualizam por puro prazer. Quem sabe você poderia ter um retorno? Não é verdade que uma profissão "largue a gente".
É sempre a gente que ficou no ar, desatento. As vezes isso pode ser recuperado. Planeje uma bela viagem. Use seu tempo e dinheiro (já que você tem ao menos o suficiente) para sua alegria. A vida é uma mesa posta: tem venenos mortais e deliciosos pratos que dão prazer. Há os que escolhem veneno, e os que pegam as delícias. Espero que você não ache que prazer é impossível ou ruim. Eleja o positivo. Queira ser um pouco feliz, entusiasme-se por alguma coisa dentro de suas condições - mas fora de seu pessimismo. Ou, se nada disso for possível porque esse é seu jeito e sua opção, pelo menos não me queira mal por este bilhete que não foi senão um alô, talvez uma falta minha de… jeito.

— Lya Luft, no livro "Perdas e ganhos". Rio de Janeiro: Record, 2006.
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Mais sobre a autora:

A colcha de retalhos - Monteiro Lobato


A colcha de retalhos

1915

— Upa!
Cavalgo e parto.
Por estes dias de março a natureza acorda tarde.
Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblina e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho de sol.
A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.
Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante de alguns angiqueiros marginais.
Agora, uma porteira.
Ali, a encruzilhada do Labrego.
Tomo à destra, em direitura ao sítio de José Alvorada. Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão do Bilu, nata de terra que pelas bocas do caeté legítimo, da unha-de-vaca e da caquera[1] está a pedir foice e covas de milho.
Não é difícil a puxada: com cinquenta braças de carreador boto a roça no caminho.
Três alqueires, só no bom. Talvez quatro. A noventa por um — nove vezes quatro, trinta e seis; trezentos e sessenta alqueires de oito mãos. Descontadas as bandeiras[2] que o porco estraga e o que comem a paca e o rato...
Será a filha de Alvorada?
— Bom dia, menina! O pai está em casa?
É a filha única. Pelo jeito não vai além de catorze anos. Que frescura! Lembra os pés de avenca viçados nas grotas noruegas. Mas arredia e ité como a fruta do gravatá. Olhem como se acanhou! De olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar água a este córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás daquela moita de taquaris, ao ver-me.
— O pai está lá? — insisti.
Respondeu um “está” enleado, sem erguer os olhos da rodilha.
Como a vida no mato asselvaja estas veadinhas! Note-se que os Alvoradas não são caipiras. Quando comprou a situação dos Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até de que entrava em sua casa um jornal.
Mas a vida lhes correu áspera na luta contra as terras ensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que dê de si o homem. Foram rareando as idas à cidade e ao cabo de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina, rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo — uma tamina, três mil pés —, o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.
Se o marido deu assim em urumbeva, a mulher, essa enraizou de peão para o resto da vida. Costumava dizer: mulher na roça vai à vila três vezes — uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar.
Com tais casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo d’Água (tinha esse apelido Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo às gentes. Fora uma vez à vila com vinte dias, a batizar. E já lá ia nos catorze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.
Ler? Escrever? “Patacoadas, falta de serviço”, dizia a mãe. Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora, se desde que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.
Deixei a menina às voltas com a rodilha e embrenhei-me por um atalho conducente à morada.
Que descalabro!...
Da casa velha aluíra uma ala, e o restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.
O velho pomar, roído de formiga, morrera de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras macilentas, furadas de broca e sopesando o polvo retrançado da erva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios de compridos acúleos. Fora disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato invasor que só respeitava o terreirinho batido, fronteiro à casa. Tapera quase e, enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.
Bati palmas.
— Ó de casa!
Apareceu a mulher.
— Está seu Zé?
— Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar um mel na maçaranduva do pasto. Apeie e entre.
Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei.
Acabadinha, a Sinh’Ana. Toda rugas na cara — e uma cor... Estranhei-lhe aquilo.
— Doença! — gemeu. — Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda. Casa velha, é o que é.
— Metade é cisma — disse-lhe para consolo.
— Eu é que sei! — retrucou-me suspirando.
Entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada, no cerne, rija e tesa, que saudou e:
— Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora não presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo não me troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso, sim!...
— Mecê é gabola porque nunca padeceu doença — nem dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda estar fora da cova... Aí vem Zé.
Chegava Alvorada. Ao ver-me abriu a cara.
— Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão porque estou assim... É só melado. Bonito, hein? Estava difícil, num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não! É mel-de-pau.
Depôs num mocho a cuia dos favos e se foi à janela, lavar as mãos à caneca d’água que a mulher despejava. Pôs os olhos no meu cavalo.
— Hoje veio no picaço... Bom bicho! Eu sempre digo: animais aqui no redor, só este picaço e a ruana do Izé de Lima. O mais é eguada de moenda.
Neste momento entrou a menina de pote à cabeça. Ao vê-la o pai apontou para a cuia de mel.
— Está aí, filha, o doce da aposta. Perdi, paguei. Que aposta? Ah! ah! Brincadeira. A gente cá na roça, quando não tem serviço, com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse à toa: “São mais de dez!”. Pingo negou: “Não chega lá!”. Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só vendo; não é o que parece, não...
A loquacidade daquele homem não desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade.
Expus-lhe o negócio. Alvorada enrugou a testa; refletiu um bocado, de queixo preso. Depois:
— Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Desde que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois saí perdendo. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuízos, não livrei o jornal. Desde então fiz cruz em serviço alheio. Se ainda teimo neste sapezal amaldiçoado é por via da menina; senão, largava tudo e ia viver no mato, como bicho. É Pingo que inda me dá um pouco de coragem — concluiu com ternura.
A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixeta, pusera-se a coser, de óculos na ponta do nariz.
Aproximei-me, admirativo.
— Sim, senhora! Com setenta anos!
Sorriu, lisonjeada.
— É para ver. E isto aqui tem coisa. É uma colcha de retalhos que venho fazendo há catorze anos, desde que Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso. Veja que galantaria de serviço...
Estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padrão.
— Esta colcha é o meu presente de noivado. O último retalho há de ser do vestido de casamento, não é, Pingo?
Pingo d’Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta.
Mais dois dedos de prosa com Alvorada, um cafezinho ralo — escolha com rapadura — e:
— Está bem — rematei, levantando-me do mocho de três pernas. — Como não pode ser, paciência. Apesar disso acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os roçados a 80 mil-réis o alqueire. Dá para ganhar, não?
— Que dá, sei que dá — mas também sei para quem dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente, muitos peguei a 60 e não me arrependi. Mas hoje...
— Nesse caso...
Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Sinh’Ana faleceu. Era fatal a dor que respondia na cacunda. E não mais me aflorava à memória a imagem daqueles humildes urupês, quando me chegou aos ouvidos o zum-zum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo d’Água aos Periquitos.
— Como isso? Uma menina tão acanhada!...
— É para ver! Desconfiem das sonsas... Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade — não para casar, nem para enterrar. Foi ser “moça”, a pombinha...
O incidente ficou a azoinar-me o bestunto. À noite perdi o sono, revivendo cenas da minha última visita ao sítio, e nasceu-me a ideia de lá tornar. Para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne.
Fui.
Setembro entumecia gomos em cada arbusto. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até aos cabeços dos morros distantes.
Por amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesmo trilho.
No córrego vi, com os olhos da imaginação, o vulto da menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três árvores do pomar extinto eram já galhaça resseca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lúgubre. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalgara-se de moitas de guanxuma, cordão-de-frade e joás.
— Ó de casa! — gritei.
Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma sombra acurvada e trêmula.
— Bom dia, nhá Joaquina. Está seu Zé?
Não me reconheceu a velhinha. Zé fora à vila, vender a sitioca para mudar de terra.
Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má vista.
— Tem coragem de estar aqui sozinha?
— Eu? Sozinha estou em toda parte. Morreu-me tudo, a filha, a neta... Sente-se — murmurou apontando para o mocho de dois anos atrás.
Sentei-me, com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por fim:
— O que é a vida, nhá Joaquina! Parece que foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo felizes. Hoje...
A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.
— Viver setenta e dois anos para acabar assim... Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro.
Confrangia-me o coração aquele ermo onde tudo era passado — a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas —, salvo, trêmulo espectro sobrevivente como a alma da tapera, a triste velhinha encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.
— Que mais agora? — murmurou pausadamente em voz de quem já não é deste mundo. — Até a “desgraça”, eu não queria morrer. Velha e inútil, inda gostava do mundo. Morreu-me a filha, mas restava a neta — que era duas vezes filha e o meu consolo. Desencaminharam a pobrezinha... Agora, que mais? Só peço a Deus que me retire, logo e logo.
Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos pousaram ali, marasmados.
A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se, tomou-a nas mãos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremuras na voz:
— Dezesseis anos — e não pude acabar a colcha... Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d’Água. Aqui leio a vidinha dela desde que nasceu.
“Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu... Tão galantinha! Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os óculos com a mãozinha gorda...
“Este azul, de listas, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos três anos. Ela já andava pela casa inteira armando reinações, perseguindo o Romão — que um dia, por sinal, lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me ‘óó aquina’...
“Este vermelho de rosinhas foi quando completou os cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou?
“Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha!
“Pingo d’Água já sabia temperar um virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.
“Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias! Como gostava da Gata Borralheira!...”
A velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.
— E este? — perguntei para avivá-la, apontando um retalho amarelo.
Pausou um bocado a triste avó, em contemplação.
Depois:
— Este é novo. Já tinha quinze anos quando o vestiu pela primeira vez num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece que a “desgraça” começa aqui. Ficou um vestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.
— Este — disse-lhe eu, fingindo recordar-me — é o que ela vestia quando cá estive.
— Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.
— É verdade, é verdade! — menti. — Agora me lembro, isso mesmo. E este último?
Após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabeça e balbuciou:
— Este é o da “desgraça”. Foi o derradeiro que fiz. Com ele fugiu... e me matou.
Calou-se, a lacrimejar, trêmula.
Calei-me também, opresso dum infinito apertão de alma.
Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade louca!...
E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.
Ela por fim quebrou o silêncio.
— Ia ser o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem com ela.
E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do coração.
Um mês depois morria. Vim a saber que lhe não cumpriram a última vontade.
Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça?
Pieguices...

[1]. Padrões de terra boa. (N.E.)
[2]. Bandeira de milho: qualquer trecho do milharal. (N.E.)

— Monteiro Lobato, no livro "Contos completos". São Paulo : Biblioteca Azul, 2014.
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Biografia do autor: