Como ataca a sucuri - João Guimarães Rosa

Theodoro de Bona
Como ataca a sucuri

O homem queria ir pescar? Pajão então levava-o ao certo lugar, poço bom, fundo, pesqueiro. O resto, virava com Deus... Inda que penoso o caminhar, dava gosto guiar um excomungado, assim, hum, a mais distante, no fechado da brenha.
E aquele nem estranhava o sujo brejão, marimbu de obrar medo. Sozinho chegara, na véspera, a cavalo, puxado à-destra o burro cargueiro; tinha ror de canastras e caixas, disparate de trens, quilos de dinheiro, quem sabe, até ouro. Falava que seus camaradas também ainda vinham vir? Quê! Sem companheiro nenhum, parava era todo perdido, cá, nas santas lonjuras, fora de termo.
Aqui, Pajão agora o largava, ao pé do poço oculto, quieto, conforme ele mesmo influído pedira. Ife! pescasse. Entendia o mundo de mato, usos, estes ribeirões de águas cinzentas?
Drepes entendia, porém. Deixou passar tempo, não à beira, mas cauto encostado em árvore. Deu tiro, para o alto, ao acaso. E escutou resposta: o ronco, quase gemer, que nem surdo berro de gado. Ah, seu aleijado hospedeiro tivera manha e motivo, para o sorrisão com caretas! Sim — serpente gigante ali se estava, saída de sob a água, sob folhas. Drepes ia esperar, trepado à árvore, havia a ver.
À noitinha, um dos filhos de Pajão o veio buscar; taciturno, bronco, só matéria e eventual maldade. — “De que jeito é que sucuri pega capivara?” — Drepes indagou, curioso, irônico. O moço nem sacudiu cabeça, dado um hã, mastigado o nome do pai.
Na casa, que fedia a couros podres, à boca da floresta, Pajão caranguejava. — “Sucruiú? Aqui nunca divulguei...” — e em roda tornava a coxear, torto, estragando muito espaço. Armou o candeeiro, sem fitar Drepes; seu ódio se derramava pelos cantos.
— “Ela morde a presa, mas fica com o rabo enganchado num pau? Se aquela corre, larga-lhe trela, estirada, afinada, depois repuxa e mata, tomando-lhe o fôlego das ventas?” — Drepes insistia.
Pajão, de boca retorcida: — “O senhor está dizendo.”
O candeeiro era para Drepes, no apertado quarto, sua fortaleza. — “Você já viu sucuri?!” Acolá, no escuro, os do Pajão, a família não se movesse.
O terrível homem cidadão, azougado da cabeça, xê, pensando ferros e vermelhos. Não deixava mão da carabina e revólver, por entre o engenho de suas trenheiras malditas. A ele a gente tinha de responder, ver ensinar o que vige no desmando, nhão, as outras coisas da natureza. E não é que um repisa, e crê, é o que ouve contar, em vez do verdadeiro avistado?
— “De jeito nenhum. Não pode se esticar afinada, ela tem espinha, também... Adonde! Quebra osso nenhum, do bicho que come. Pega boi não, só pato, veado, paca...” — a gente emendava.
— “Pega homem?!” Desaforo. E o cujo, eh, botava para rodar os carretéis daquele cego relógio.
Saía, aventado, no outro dia, para o dormido poço do marimbu, hum, com receio nenhum, seguro de tudo. Sozinho, xê. Delatava a ele o caminho uma caixeta redonda, que tinha, boceta de herege. Zanzava, mexia, vai ver não voltava! “Sucruiú come homem?” Deus querendo, come. Mas o danado levara também o Pacamã, cachorro sério, decerto por trapaça cedia a ele parte da matula, farinha e carne...
Voltaram, cão e homem. Drepes pisava forte. No prato de comer, esparziu pitada de um pó branco: — “Instrui de qualquer veneno: formicida, feitiço, vidro moído. Tendo, o remédio fica azul...” — falou, aquilo ainda oferecendo.
Pajão recuou cara, a ira enchia-o de linhas retas. Os filhos meio que comiam, os olhos tão duros quanto os narizes e queixos. Drepes se palpava os joelhos, não ia relaxar sua cautela. A velha, de pé, quase de costas, suspirou alto.
Drepes disse: — “Deus dê a todos boa noite!” — tinha pinchado também do pó na cuia de água.
Aquele homem zureta, atentado! Agora dava corda no relógio sem números nem ponteiros, a gente escutava: a voz guardada, dele mesmo, Pajão, depondo relato:
— “Sucruiú agride de açoite, feito o relâmpago, pula inteira no outro bicho... Aquilo é um abalo! Um vê: ela já ferrou dente e enrolou no outro o laço de suas voltas, as duas ou três roscas, zasco-tasco, no soforçoso... O bicho nem grita, mal careteia, debate as pernas de trás, o aperto tirou dele o ar dos bofes. Sucruiú sabe o prazo, que é só para sufocar, tifetrije... Aí, solta as laçadas de em redor do bicho morto, que ela tateia todo, com a linguazinha. Começa a engolir...”
Drepes sabia, aprovava a desfábula. O ogro conhecia bem a cobra-grande! Aquele rude ente, incompleto, que sapejava, se arrimando às paredes do casebre, no andar defeituoso, de tamanduá, já pronto para pesadelo. Se de repente se apagasse o candeeiro, Drepes cerrava com todos, disparava a pistola — em rumo, ruído e bafejo.
De manhã, quis partir dali, mesmo só. Deram porém o cavalo e o burro como fugidos, disseram-lhe. O empulho. Pajão cravando-lhe os olhos como dentes, e os três filhos, à malfa, com as foices, zarrões homens, capazes de saltarem com ele, ruindadeiros, de dar de garrucha ou faca.
Drepes, descorado, sentou-se contudo a cômodo no jirau, pernas abertas. A carabina e, na outra mão, o barômetro, dele saindo fio, que se sumia numa caixa. Com força de tom, começou a falar — como se a um pé-de-exército — a inventados camaradas seus... — “...Aqui, no que é de um Pajão, brejos da Sumiquara!”
Pajão rodava com o pescoço, jurava que os animais iam já aparecer. Os filhos, simplesmente, saíam para cortar mato.
Eh, fosse embora! Pajão mesmo, ao entardecer, vinha ao poço, com o aviso, que cavalo e burro estavam já achados. Ouviu os tiros! Viu o demo do homem, revólver na mão, a cara de fera... O cachorro, salvo, tremia demais, deitado, babado, arrepiado. A sucuriju, cabeça espatifada, movia corpo, à beira do aguaçal.
Pajão fez pé atrás. — “Acho razão no senhor...” — soava a oco. Ladino, avançou, quase quadrumanamente, desembainhado o facão, feio, tão antigo, que parecia uma arma de bronze. Ele queria o couro, do bicho dragonho.
— “P’ra a sucruiú, a gente não tem piedade!” — ringiu. A cobra, esfolada, ainda se mexia.
Drepes saiu-se indo, dali a hora, pagara-lhes bem a hospedagem. Acenavam-lhe vivo adeus.

 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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