Professor Pulquério - José J. Veiga

Paul Gauguin - 1890.
Professor Pulquério

Quando eu era menino e morava numa vila do interior, assisti a um episódio bastante estranho, envolvendo um professor e sua família. Embora sejam passados muitos anos, tenho ainda vivos na memória os detalhes do acontecimento, ou pelo menos aqueles que mais me impressionaram; e como ninguém mais que viveu ali naquele período parece se lembrar, muitos chegando mesmo a duvidar que tais coisas tenham acontecido — a própria filha do professor, que eu vi aflita correndo de um lado para o outro chorando e pedindo socorro, quando eu lhe falei no assunto há uns dois ou três anos olhou-me espantada e jurou que não se lembrava de nada — resolvi pôr por escrito tudo o que ainda me lembro, antes que a minha memória também comece a falhar. Se o meu testemunho cair um dia nas mãos de algum investigador pachorrento, é possível que aquela ocorrência já tão antiga e, pelo que vejo, também completamente esquecida, exceto por mim, seja afinal desenterrada, debatida e esclarecida.
Naturalmente minhas esperanças são muito precárias; conto apenas com a colaboração do acaso e, como sabemos, se a história é rica de triunfos devidos unicamente ao acaso, também está cheia de derrotas só explicáveis pela interferência desse fator imprevisível. Assim, vou fazer como o viajante que encontra um pássaro ferido na estrada, coloca-o em cima de um toco e segue o seu caminho. Se o pássaro aprumar e voar de novo, estará salvo — embora o viajante não esteja ali para ver: se morrer, já estava de qualquer forma condenado.
Esse professor de quem falo era um homem magro e triste, morava em uma casa de arrabalde de chão batido. Fora professor em outros tempos, antes da criação do grupo escolar servido por normalistas. Para sustentar a mulher e os vários filhos ele não apalpava serviços: vendia frangos e ovos, trançava rédeas de sedenho, cobrava contas encruadas, procurava animais desaparecidos, e vez por outra matava um porco ou retalhava uma vaca. Vendo-o desdobrar-se em tantas e tão variadas atividades, era difícil compreender como ele ainda conseguia tempo para escrever artigos históricos para o jornalzinho de Pouso de Serra Acima, localidade a doze léguas de nossa vila para o sul. A bem da verdade devo dizer que seus artigos nunca davam o que falar. Sabia-se vagamente que ele escrevia, mas pouca gente se dava ao trabalho de ver o que era. Também nunca se incomodou com a indiferença do público, nem nunca deixou de mandar a sua colaboração -sempre que um assunto o entusiasmava. Pulquério se chamava esse homem esforçado.
De vez em quando eu encontrava um número do jornalzinho de Serra Acima rolando lá por casa, mas confesso que nunca li um artigo do professor Pulquério até o fim; achava-os maçantes, cheios de datas e nomes de padres, parece que a fonte principal de sua erudição eram as monografias de um frei Santiago de Alarcón, dominicano que estudara a história de nosso Estado e publicara seus trabalhos numa tipografia de Toledo. Meu pai guardava alguns desses folhetos, que me lembro de ter manuseado sem grande interesse.
Não obstante a falta de interesse por seus artigos, professor Pulquério ficou sendo o consultor histórico da vila. Sempre que alguém queria saber a origem de um prédio, de uma estrada velha, de uma família, era só consultá-lo que dificilmente ficaria na ignorância. Eu mesmo, que nunca me interessei por esses assuntos, sentia-me descansado ao pensar que sempre o teria ali à mão caso houvesse necessidade. E sem lhe dar muita atenção, por causa de sua prolixidade e de sua lentidão no falar, eu o tratava com deferência para não correr o risco de ser repelido quando precisasse dele. Quando o encontrava na rua, ou no armazém do meu tio Lucílio, eu perguntava pela família, ou pelos negócios, e evitava falar em história, porque se cometesse a imprudência de falar em seu assunto favorito teria que perder muito tempo ouvindo uma longa explicação naquela voz preguiçosa.
Um dia ele estragou o meu truque perguntando-me de chofre, logo após os cumprimentos habituais, se eu conhecia a história do tesouro do austríaco. Era preciso muita tática para responder. Se eu dissesse que conhecia, pensando abreviar a conversa, o tiro poderia sair pela culatra; ele haveria de querer comparar os meus dados com os dele, e a minha ignorância denunciaria a minha intenção; se dissesse que não conhecia, teria que ouvi-la do princípio ao fim, com todos os afluentes.
— Vejo que não sabe — disse ele. — Aliás não é de admirar, porque a mocidade de hoje não perde tempo com o passado. Mas não pense que eu estou censurando. É um fenômeno facilmente constatável, aqui e em toda parte. As causas são inúmeras. Em primeiro lugar...
Nesse ponto ele deve ter notado algum sinal de impaciência em mim, porque deteve-se e desculpou-se: — Desculpe a minha divagação. Eu queria falar do tesouro do austríaco e já ia me enfiando- por outro caminho. Se você quiser ouvir a história vamos ali ao armazém de seu tio. É assunto fascinante para um jovem. Quem sabe você não se anima a ir buscar o tesouro? Ficaria rico para o resto da vida! Sentado num saco de feijão no fundo do armazém, o professor Pulquério falou-me de um tesouro incalculável que estaria enterrado na crista de um dos nossos morros. Eram sacos e mais sacos de ouro enterrados na própria mina por um engenheiro austríaco que a explorava secretamente. O filão era tão rico que ele mandara chamar um filho na Áustria para ajudá-lo. Quando o rapaz chegou, anos depois devido às dificuldades de comunicação, e surgiu de repente em cima do barranco, o pai matou-o com um tiro julgando tratar-se de algum assaltante. Verificado o engano, o engenheiro resolveu dar ao filho o túmulo mais rico do mundo: enterrou-o na mina com todo o ouro já extraído e deixou um roteiro propositalmente complicado. O professor conseguira o roteiro e agora procurava localizar a mina. Impressionava-o a frase final do roteiro, depois de muitos circunlóquios e pistas falsas: “Chegando nessas alturas, procure da cinta para a cabeça que encontrará ouro grosso e riqueza nunca vista”.
Mas ninguém deve supor que o professor Pulquério fosse um homem ambicioso». Ele não queria ficar com todo o tesouro, estava pronto a dividi-lo com quantos quisessem participar da busca, e até achava que quanto mais gente melhor.
Existiria mesmo o tal tesouro? Parece que o povo não estava acreditando muito. A nossa febre de ouro havia passado, deixando todos com a sensação de logro. Quase não havia na vila e imediações um curral velho, um pedaço de alicerce, um moirão de aroeira no meio de um pátio, que não tivesse sido tomado como apelo mudo de um tesouro. Cavoucado o lugar e revolvida a terra, o único resultado positivo eram os calos nas mãos do cavouqueiro. O povo andava muito desinteressado de tesouros quando o professor apareceu com o seu roteiro.
A mania do tesouro poderia ter passado com o tempo, sem gerar transtorno, se a linguagem enigmática do roteiro não tivesse fascinado o professor. Ele passava tardes ou manhãs inteiras no armazém de meu tio, atrapalhando o serviço e os fregueses, revolvendo mentalmente o roteiro, procurando penetrar no sentido oculto das frases, descuidando de suas obrigações. Muitas vezes a mulher precisava mandar um dos meninos buscá-lo para atender a algum negócio que não podia esperar, ou pedir dinheiro para alguma despesa urgente. Mas devo dizer que o professor era muito delicado com os filhos, nunca se irritava quando era interrompido em suas meditações, e até pedia a meu tio que fornecesse umas balas ao garoto para pagar depois.
Enquanto ele se limitou a falar no roteiro e nas investigações que estava fazendo para localizar a mina, não tínhamos motivo de queixa. Era uma nova mania inofensiva, até servia para desviar-lhe a cabeça de seus problemas domésticos. Gostávamos de vê-lo fazer cálculos sobre o número de sacos de ouro que devia haver na mina, tomando por base o tempo que o austríaco trabalhou sozinho, a quantidade de cascalho que um homem pode balear em um dia, e o teor de ouro que devia haver em cada baleada. Depois vinham os cálculos do número de pessoas que seria necessária para desenterrar o tesouro no menor prazo possível, a quantidade e o tipo de ferramenta, por fim o número de burros para transportar a carga morro abaixo. O professor tinha tudo muito bem calculado.
Ele queria que todos os habitantes da vila, ou o maior número possível, contribuíssem para as despesas, e o tesouro seria repartido proporcionalmente às contribuições, depois de deduzida uma porcentagem para ele como organizador dos trabalhos. Embora todos achassem o esquema razoável, as contribuições nunca se materializavam. Uns diziam que esperasse mais para diante, outros que estavam aguardando um pagamento, outros que iam pensar. Seria por descrença no êxito da expedição, ou dúvida quanto à honestidade do professor? Parece que ele optou pela segunda hipótese, e naturalmente sentiu-se muito ofendido. E como já estávamos cansados de ouvi-lo, sempre arranjávamos uma desculpa para fugir dele, muitos nem iam mais ao armazém para não encontrá-lo.
Depois de inúmeras tentativas de explicar a um e outro a lisura de seu projeto, o professor resolveu fazê-lo por escrito com um memorial em quatro folhas abertas de papel almaço — “Aos Cidadãos Honestos desta Vila” — pregadas na porta da Cadeia.
Não creio que muitas pessoas tenham lido o memorial. Tentei lê-lo por mera curiosidade, e também por uma espécie de reparação ao professor; mas quando cheguei ao fim da primeira banda, e vi que faltavam sete, numa letra fina e sem parágrafos, resolvi fazer uma cruz a lápis no ponto onde havia parado e deixar o resto para ler depois. Mas esse dia nunca chegou, porque a meninada estragou o memorial, fazendo garatujas a carvão por cima do escrito e mesmo rasgando o papel em vários pontos. Foi outro golpe para o professor, que cismou que o vandalismo infantil tinha sido dirigido pelos pais.
Não obtendo atenção entre os particulares, o professor tentou interessar a Intendência — mas também aí não foi feliz. Parece que uma praga muito forte condenava o tesouro a jamais sair da crista do morro. Sendo homem sem delicadeza, mais afeito a lidar com animais do que com gente — uma vez entortou com um murro o pescoço de uma égua que o mordera na hora de apertar a barrigueira — o intendente nem quis ouvir a proposta, e riu na cara do professor na frente de outras pessoas. Dizem que o professor saiu da Intendência com lágrimas nos olhos, o que não seria de estranhar em um homem do seu temperamento.
Dava pena vê-lo nas ruas, cada vez mais magro, trancado em si mesmo, sem ter com quem conversar. Eu achei que estávamos sendo maldosos demais com ele, e pensei em fazer alguma coisa senão para ajudá-lo ao menos para distraí-lo. Foi então que eu vi o quanto a nossa indiferença o havia afetado. Quando tentei falar com ele na rua ele lançou-me um olhar ressentido e continuou o seu caminho. Não me sentindo isento de culpa, resolvi engolir o orgulho e procurá-lo em sua casa à noite.
Atendeu-me a mulher, D. Venira, com as mãos sujas de massa do bolo de arroz que estava fazendo para ser vendido em tabuleiro de manhã bem cedo, a tempo de alcançar o café da vila. Pelo embaraço de D. Venira eu percebi que o meu nome fora referido naquela casa, e não favoravelmente.
— Pupu está escrevendo — disse ela por fim. — Não sei se ele...
Ouvi o professor chamá-la da varanda, de onde o lampião lançava sombras desproporcionadas no corredor. Teria ele ouvido a minha voz, ou fora coincidência? Da porta eu via, a sombra de D. Venira argumentando, agitando os braços, e até mexendo o queixo: mas falavam baixo, e eu nada pude ouvir.
D. Venira voltou encabulada e pediu mil desculpas em nome do marido, disse que ele não podia ver-me aquela noite. Estava escrevendo uma exposição ao presidente do Estado. (Quando ela mencionou a exposição ao presidente eu notei uma entonação diferente em sua voz, mas fiquei sem saber se ela estava zombando da ingenuidade do marido ou querendo impressionar-me, como se dissesse “agora espere o resultado”.) Após esse tratamento eu podia abrir a boca contra o professor sem ser acusado de injusto, mas preferi não contar a ninguém a novidade da exposição ao presidente; eu ainda tinha uma certa simpatia pelo pobre homem e não queria vê-lo em ridículo.
Para despachar a exposição o professor teve a cautela de pretextar uma viagem à vila vizinha, com certeza receando alguma molecagem do nosso agente postal. Foi por isso que ninguém soube explicar o motivo do nervosismo que tomou conta dele naquela época. Ele não se demorava mais em parte alguma, nem no armazém. Entrava, cheirava a ponta do rolo de fumo em cima do balcão, esfregava na mão um punhado de cereal de algum saco que estivesse perto, jogava uns grãos na boca, sem notar o que estava fazendo, pedia para ver uma coisa ou outra, e antes que meu tio o atendesse ele cancelava o pedido e saía apressado. No mercado era a mesma coisa, e em casa deu para descarregar a impaciência nos meninos. Onde ele se demorava era na agência do correio, com certeza para vigiar a abertura das malas.
Evidentemente o professor nada sabia dos caminhos da burocracia. Com certeza ele imaginava que a sua exposição seria recebida pessoalmente pelo presidente, lida no mesmo dia, ou o mais tardar no dia seguinte, e uma resposta redigida imediatamente em papel oficial, intimando-o a tocar para a frente com a expedição, com poderes para entrar na Coletoria e requisitar a verba necessária, enquanto nós, os descrentes, ficaríamos olhando admirados e envergonhados, doidos para ser incluídos na expedição, nem que fosse como cargueireiros.
Em vez de enfraquecer-lhe a esperança, parece que a demora deu ao professor mais disposição para agir. Depois de alguns dias de espera ele passou um longo telegrama ao presidente, chamando-lhe respeitosamente a atenção para a exposição e pedindo uma resposta urgente.
Quando a resposta chegou o telegrafista foi levá-la pessoalmente, mas não encontrou o professor em casa. A mulher também tinha ido entregar costura em casa de uma freguesa. O telegrafista voltou à cidade, nessa altura acompanhado por um bando de curiosos. Passaram no mercado, no armazém, na farmácia, mas ninguém tinha visto o professor. Por fim um menino que passava puxando um cargueiro de lenha informou que ele estava na beira do rio pelando um porco. Corremos para lá, aquele bando de gente entupindo as ruas, pisando os pés uns dos outros, atraindo mulheres às janelas.
O professor estava de chapéu de palha de roceiro e roupa velha remendada, atiçando fogo debaixo de uma lata de água. Um dos meninos mais velhos saía de um matinho com uma braçada de gravetos. Ao ver o telegrafista o professor largou o fogo, saltou por cima do porco já morto no chão e avançou limpando as mãos na calça.
Mas a resposta estava longe de ser a que ele esperava (naturalmente já sabíamos, só queríamos ver como ele recebia o telegrama). A mensagem, assinada por um secretário, dizia apenas que Sua Excelência ainda não tinha estudado a exposição, mas prometia uma decisão logo que ela lhe chegasse às mãos acompanhada dos indispensáveis pareceres.
Deixando cair o papel no capim sujo de sangue, o professor sentou-se em cima do porco e começou a chorar, como se de repente tivesse percebido a realidade. Desconcertados com essa reação que não esperávamos, afastamo-nos em pequenos grupos e voltamos calados para a cidade, ninguém teve coragem de falar no choro do professor. Não sei se estávamos envergonhados por ele ou por nós mesmos.
A situação agora havia se invertido. Todos procuravam conversar com o professor, distraí-lo de sua mágoa, mas ele não queria falar com ninguém. Pelo hábito ainda frequentava o armazém, mas ficava sentado olhando para o chão e coçando os ouvidos com paviozinhos de papel que torcia meticulosamente, como se fosse um trabalho de muita importância.
Mas se nós o conhecêssemos de verdade, teríamos sabido que ele ainda esperava. Ele havia apenas dado um prazo às autoridades, e estava aguardando que o prazo se esgotasse para tomar nova providência. Tanto que, numa segunda-feira de manhã, ele entrou de cabeça erguida na agência do telégrafo e mandou nova mensagem ao presidente comunicando que às dez horas iniciaria um protesto público contra o descaso oficial. A notícia espalhou-se depressa, e toda a vila passou a vigiá-lo de longe. Do telégrafo ele foi ao armazém e comprou rapadura, farinha, carne-seca, fumo, palha, um maço de fósforos, um rolo de corda grossa. Se a corda sugeria desatino, os outros itens nos tranquilizavam. Vimos quando ele saiu do armazém, atravessou o largo, entrou no beco do sapateiro e tomou o rumo de casa. Nesse ponto praticamente toda a população o acompanhava à distância. Meninos iam e vinham correndo, em busca de informação para as mães que haviam ficado com panelas no fogo em casa.
O professor entrou em casa com o saco das compras e logo apareceu à janela, onde ficou debruçado fumando tranquilamente, enquanto na rua a multidão crescia de minuto a minuto. O povo já estava ficando impaciente, mas o professor parecia o homem mais calmo do mundo. Ele tinha o seu plano e não ia apressá-lo para agradar a assistência.
Quando o relógio da cadeia bateu as dez horas, ele veio à porta e convidou o povo a entrar para o quintal, haveria espaço para todos, só pedia que não estragassem as plantas de D. Venira. Com o o corredor era estreito, e todos queriam entrar ao mesmo tempo, houve empurrões, pés pisados palavrões, tumulto. Gente entrava pelas janelas, estragando a parede com o bico das botinas, outros pulavam o muro, cortando-se nos cacos de vidro. Num instante escangalharam a porta do corredor de tanto se espremerem contra ela.
No quintal havia uma cisterna seca tapada com uma porta velha, com um enorme bloco de pedra em cima. O professor pediu que o ajudassem a afastar a pedra, retirou a porta para um lado e amarrou uma ponta de corda na pedra. Até aí nenhuma suspeita do que ele pretendia fazer. Depois de verificar se o nó estava firme ele despediu-se da mulher e dos filhos, todos de roupa nova e cabelo penteado com brilhantina, e sem mais aquela escorregou pela corda até o fundo da cisterna. De lá ia gritando para a mulher: — Rapadura.
— Farinha.
— Palha e fumo.
— Carne.
D. Venira ainda lhe jogou a mais um cachecol e um guarda-chuva, recomendando-lhe que se agasalhasse bem à noite. O povo correu para a beira do poço, e o primeiro que chegou, com a pressa com que ia, teve que saltar por cima para não cair no buraco. Eu tive vontade de ver se o professor estava em pé, sentado ou agachado no fundo do poço, mas não consegui uma brecha para olhar.
Todas as manhãs D. Venira escrevia numa lousa escolar, pendurada numa estaca ao lado do poço, o número de dias que o marido havia cumprido lá dentro. O quintal ficava permanentemente cheio de gente, como se aquilo fosse um piquenique ou um pouso de folia. Até cestos de comida levavam, à noite acendiam fogueira, assavam batatas, duas meninas filhas do professor cantavam para distrair o povo, D. Venira aproveitou para armar uma barraquinha para vender refrescos e bolos.
Essa romaria já durava mais de uma semana quando o delegado achou que já chegava e intimou o professor a subir. O professor respondeu que estava exercendo o direito de protesto, e que continuaria protestando até alcançar o seu objetivo. O delegado respondeu que aquilo não era protesto, era uma palhaçada, e deu uma hora de prazo para ser atendido por bem. A única resposta do professor foi uma gargalhada confiante.
A curiosidade agora era saber de que maneira o delegado iria retirar o professor de dentro do poço caso ele teimasse em não sair. De todos os lados partiam sugestões, uns achavam que a melhor solução seria despejar baldes de água na cisterna — alguém falou em água quente —, outros que o mais indicado nesses casos seriam tochas embebidas em querosene; e um camarada baixinho, de olhinhos vivos de coelho, recomendou que se tapasse a cisterna com a porta e se metesse fumaça para dentro, como se faz para tirar tatu da toca. Ouvindo isso uma das filhas do professor, menina de seus doze a quatorze anos, começou a correr de um lado para outro, chorando e pedindo piedade, mas ninguém se comovia; todos estavam ali para ver alguma coisa fora do comum, e não haviam de querer estragar o desfecho com um gesto de piedade fora de hora.
Mas o delegado já tinha o seu plano e não precisava de sugestão de ninguém; ele apenas esperava que o prazo se esgotasse para tomar suas providências — e talvez até desejasse no íntimo que a ordem fosse desobedecida para ter uma ocasião de impor dramaticamente a sua autoridade. Quando ele consultou o relógio e disse que os sessenta minutos já haviam passado, a multidão automaticamente abriu um corredor entre ele e o poço, com certeza esperando que ele fosse descer pela corda e trazer o professor nas costas. Mas em vez de caminhar na direção do poço ele caminhou na direção da casa! Ninguém entendia mais nada. Então ele estava apenas brincando quando fez a intimação? É claro que o desapontamento do povo não vinha de nenhum desejo de preservar a autoridade, mas do receio de perder algum espetáculo, sensacional ou engraçado.
Quando o delegado voltou de sua caleche trazendo uma enorme casa de marimbondos na ponta de um galho de abacateiro, o povo criou alma nova. Era a prova de que uma autoridade experiente pensa melhor do que cem curiosos. Andando devagarinho para não balançar o galho, o delegado chegou à beira do poço e sem mais nenhum aviso soltou lá dentro o galho com os marimbondos.
Naturalmente todos esperavam que o professor subisse do poço como um foguete e saísse desatinado pelo quintal, pulando e dando tapas por todos os lados — mas nada aconteceu, nem um grito se ouviu. Olhávamos uns para os outros, espantados, como se na cara dos conhecidos pudéssemos encontrar a explicação. Por fim aqueles de mais iniciativa foram na ponta dos pés espiar dentro do poço — e quando contaram o que viram ninguém acreditou, foi preciso que a multidão inteira fizesse fila para ver com os próprios olhos.
Dentro do poço só se via o galho de abacateiro engarranchado numa pedra e umas cascas de queijo que os marimbondos atacavam.
Fomos todos para casa de cabeça baixa, sentindo-nos vilmente logrados.


— José J. Veiga, no livro "Os melhores contos de J. J. Veiga". [seleção de J. Aderaldo Castelo]. São Paulo: Global Editora, 2000.
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Biografia do autor

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