O gavião - Rubem Braga

O gavião

O gavião 

Gente olhando para o céu: não é mais disco voador. Disco voador perdeu o cartaz com tanto satélite beirando o sol e a lua. Olhamos todos para o céu em busca de algo mais sensacional e comovente — o gavião malvado, que mata pombas.
O centro da cidade do Rio de Janeiro retorna assim à contemplação de um drama bem antigo, e há o partido das pombas e o partido do gavião. Os pombistas ou pombeiros (qualquer palavra é melhor que “columbófilo”) querem matar o gavião. Os amigos deste dizem que ele não é malvado tal; na verdade come a sua pombinha com a mesma inocência com que a pomba come seu grão de milho.
Não tomarei partido; admiro a túrgida inocência das pombas e também o lance magnífico em que o gavião se despenca sobre uma delas. Comer pombas é, como diria Saint-Exupéry, “a verdade do gavião”, mas matar um gavião no ar com um belo tiro pode também ser a verdade do caçador.
A verdade é que não posso mais falar de aves: dei meus passarinhos. No fim eram apenas um casal de canários e um corrupião. Faço muitas viagens curtas e achei que a empregada não cuidava deles bastante bem na minha ausência; mesmo que os cuidasse não lhes fazia companhia, pois mora longe. E o prazer de minhas pequenas viagens era estragado com a lembrança do corrupião tristemente trancado em uma sala o dia inteiro, sem ter com quem conversar, ele que é tão animado e tagarela. Sinto saudade deles (da canarinha, na verdade, não: era sem graça, e andava doente) e sem eles me sinto mais solteiro. Mas se, por exemplo, desaba uma chuvarada súbita, ainda me assusto pensando em tirar os bichos da varanda em que ficam nas noites quentes; quando me lembro que não estão mais comigo, que não devo mais ter esse susto e essa aflição, então me vem um certo alívio. Sou mais só, mas também mais livre.
Que o gavião mate a pomba e o homem mate alegremente o gavião; ao homem, se não houver outro bicho que o mate, pode lhe suceder que ele encontre seu gavião em outro homem. A vida é rapina. Perdi os cantos do meu canário e os assovios de meu sofrê; meu coração está mais triste, mas mais leve também.


Rio, julho, 1958.

— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Rio de Janeiro: Record, 2010.

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