Onde andam os didangos? - José J. Veiga

© Almeida Júnior
Onde andam os didangos?

A noite era feia perigosa no rancho, muitos bichos lá fora, alguns conhecidos, outros inventados, deduzidos dos barulhos que vinham da mata; mas encostado no corpo sadio da mãe ele não tinha medo de nada, os bichos ficavam mansos, distantes, incapazes de fazer mal.
Mas não deixavam de existir. Com o aquele que ele inventou quando a candeia estava apagada, os pais dormindo roncando e ele de olhos fechados pensava na claridade do sol, porque na claridade não há bicho perigoso. Mas o medo puxa, e ele acabava compondo o autor dos ruídos de origem desconhecida que vinham do mato. Era um bicho sem pés nem cabeça, só um corpo comprido em forma de canudo, um canudo grosso e mole, às vezes liso, às vezes cabeludo (essa parte ainda não estava esclarecida), largo nas pontas, fino no meio. As pontas eram os pés e também as bocas, o bicho andava firmando uma ponta no chão, levantando a outra, esticando o corpo e jogando a ponta levantada para diante, no caminho apanhando as frutas e folhas que interessassem, depois buscava para a frente a ponta que tinha ficado para trás, isso depressa, sem parar nem perder tempo. Ele custou achar nome para esse bicho, acabou chamando de didango.
Sendo o bicho mais esquisito de toda a mata, e vai ver que de todo o mundo, o didango tinha que ser também o bicho mais perigoso. Ele nunca viu um didango de verdade, mas sabia que eles rondavam o rancho de noite; e de manhã quando ia com a mãe apanhar água na grota, ou com o pai tirar varas na beirada do mato para algum serviço no rancho, via rastos deles por toda parte, meio apagados porque a chapa dos pés deles é macia. Mas em sonho eles apareciam bem visíveis, às vezes perto, às vezes longe, jogando o canudo do corpo por cima do rancho, estremecendo as panelas no jirau, ou subindo morros, saltando grotas, medindo o mundo a compasso.
Engraçados eram os filhotes, umas miuçalhas que faziam tudo o que os grandes faziam mas às vezes Ficavam retidos na beira de uma grota, correndo para lá e para cá, guinchando como leitõezinhos, com medo de pular, até que um dos grandes voltava e do outro lado mesmo os suspendia com um pé, como quem carrega cobra enganchada num pau. Uma vez ele viu um didango matar uma onça jogando um pé por cima do lombo dela, mergulhando por baixo, saindo por cima novamente, dando nó, e puxando dos dois lados. A cintura da onça foi afinando, afinando, a língua derramou para fora da boca, as tripas estufaram pelo buraco que todo animal tem debaixo do rabo, e quando o didango afrouxou o nó ela caiu molenga no chão. Imagine se eles fizessem isso com uma pessoa. Árvores eles derrubavam com a maior facilidade, enlaçavam a árvore com o canudo do corpo, puxavam e arrancavam com raiz e tudo.
Com esses e outros bichos, e mais outras coisas que aconteciam, a vida no rancho era cheia de sustos. Um dos grandes foi quando o Venâncio apareceu. O pai estava na roça limpando o feijão e o milho, a mãe tinha ido na grota lavar roupa, o menino ficou sozinho brincando com um besouro, queria fazer o besouro arrastar uma caixa de fósforos cheia de pedrinhas, estava entretido nisso quando a porta do rancho escureceu. Ele levantou os olhos e não viu ninguém mas teve a impressão de que um vulto tinha acabado de passar. Didango não era porque eles são muito altos e fazem um barulho fofo quando chapam o pé no chão. Seria tapuio? O pai disse que naquela mata viveram tapuios antigamente; estariam voltando? Ele esperou com o coração batendo alto, sem coragem de se levantar do chão para olhar, capaz de ser mesmo um tapuio, ou pior. Gritar era perigoso, eles podiam vir correndo bolçando as bordunas; e se a mãe ouvisse o grito e viesse correndo, na certa morria também. O jeito era ficar quieto, mesmo tremendo e suando, e pensar numa reza que puxasse o pai para o rancho, às vezes ele vinha fora de hora buscar um pedaço de fumo, tomar um gole de café; e sendo homem valente corajoso, e andando sempre com a espingarda, nem tapuio podia com ele.
Sem querer ele levantou os olhos para o lugar onde a parede tinha um buraco, viu dois olhos olhando para dentro do rancho. Não vendo nenhuma saída ele começou a chorar baixinho, tomou gosto e acabou chorando alto. O choro espantou os dois olhos mas ele continuou chorando, sabia que os índios não tinham ido embora, deviam estar combinando o ataque.
Quando a porta escureceu de novo ele não levantou os olhos para não ver a cara do índio - mas quem entrou foi a mãe com a gamela de roupa enxaguada e torcida.
— Que vergonha! Tamanho homem chorando. Será que não pode ficar sozinho um instante? Ou está sentindo alguma coisa? Ele ficou tão contente de vê-la que chorou mais alto ainda.
— Mas o que é isso, menino! Algum bicho te mordeu? — Os índios, mãe! Um índio! — Que índio? Está sonhando com índio.
— Tem um aí fora. Eu vi.
— Eu quero ver esse índio.
— Vai não, mãe! É perigoso! Ela descansou a gamela no chão e saiu enxugando as mãos na saia. Ele ouviu os passos dela em volta do rancho, teve vontade de ir atrás para fazer companhia, as pernas não ajudaram. Quando os passos pararam ele sentiu um frio na espinha, esperou os gritos dela, o barulho das pancadas. Felizmente os passos recomeçaram, e logo ela apareceu na porta do rancho. Estava cansada, devia ser do trabalho com a roupa, de subir a ladeira com a gamela.
— Eu não disse? Vi índio nenhum.
Mas em vez de ir estender a roupa ela andou pelo rancho como procurando alguma coisa, fez um pelo-sinal disfarçado, atiçou o fogo, de vez em quando olhando para fora desconfiada.
— Sabe o quê? Vamos chamar seu pai para tomar um café. Pegou a buzina que ficava pendurada atrás da porta, apontou- a para fora e tocou.
Quando o pai chegou, assustado e irritado, a mãe foi dizendo antes que ele perguntasse o motivo do chamado: — Ele está dizendo que viu um índio. Diz a ele que é cisma.
— É inzona. Falta do que fazer. Aqui não tem mais índio. Foi para isso que me chamou?
— Foi o que eu disse. Até olhei em volta pra tirar a cisma. Vem ver comigo.
Ela puxou o marido para fora e mostrou os rastros que tinha visto na primeira inspeção. O marido mandou-a voltar e foi seguindo os rastros. Ela abraçou o menino, chamou-o de bobinho medroso e ficou rezando mentalmente, até que ouviram o grito do pai: — Venham ver o índio! A mãe correu para a porta, o menino atrás agarrado nela. Ao lado do pai estava um rapazinho de seus catorze, quinze anos, magro e esmolambado, com cara de medo e doença; tinha um pé machucado que não pisava completo no chão. Com muito custo disse que se chamava Venâncio, vinha de longe, passara mais de um mês no mato curtindo fome e frio, comendo passarinho assado, marmelada-de-cachorro, semente de jatobá, o que achasse. Falava baixo e tremia muito.
— Você fica aqui com a gente — disse o pai. — Preciso mesmo de um ajudante. Mas primeiro você vai descansar, matar a fome, tratar desse pé.
Foi a primeira vez que o menino viu uma pessoa com fome ter medo de comer. Quando a mãe deu o prato, umas coisas arranjadas às pressas (não era hora de comida), ele entortou o corpo para um lado, não querendo.
— Come, bobo. Tem veneno não — disse a mãe, e pôs o prato no colo dele.
Ele olhou para ela desconfiado, parece que não acreditando, pegou o prato com as duas mãos e chorou só com os olhos. A mãe fez sinal ao menino para sair de perto, mas de vez em quando olhavam. Venâncio enxugou os olhos com uma manga, com a outra começou comendo com a colher, depois largou e comeu com as mãos, comeu tudo sem tomar fôlego. Limpou o prato completamente e ainda mandou umas três bananas e um pedação de rapadura. Depois bebeu um coité de água, arrotou e dormiu sentado.
Venâncio passou uns dias tratando do pé com banho de erva-moura e gordura de capivara, de noite dormia numa esteira num canto do rancho, falava muito no sono e acordava assustado. Toda vez que ouvia barulho perto do rancho corria para se esconder nas bananeiras do quintal.
Quando a inchação do pé já estava murchando e secando, o pai passou o primeiro trabalho: tirar varas e embira para fazer um puxado no rancho. Venâncio saiu alegre com o facão, logo voltou com um feixe de varas na cabeça e dois arrastados por um cipó; encostou esses no oitão do rancho e voltou para buscar mais. Depois do almoço o pai explicou como é que se faz uma parede de varas, e quando voltou de tarde duas paredes estavam prontas, faltava a da porta, que é mais complicada. De noite mesmo o pai ensinou o segredo e no dia seguinte o puxado ficou pronto, com o chão socado, a cobertura assentada.
— Você é caprichoso — o pai disse satisfeito. — Agora vamos ver na enxada.
Além de ajudar na roça Venâncio estava sempre inventando novidades para fazer, principalmente brinquedos para o menino. Fez uma tropa de cavalinhos de pau lavrados a canivete, com fiapos de pena de galinha para imitar rabo e crina, escolhendo madeiras diferentes para não saírem todos de uma cor só; fez uma gangorra para ele e o menino brincarem aos domingos, com uma pedra grande encaixada numa ponta para compensar a diferença de peso; fez máscaras de cabaça com pavio dentro para pendurar nas árvores e acender de noite, muito boas para espantar bichos; fazia corda de embira, fortes e muito bem trançadas.
Venâncio não tinha preguiça de fazer nenhum serviço, até cozinhar e lavar roupa ele cozinhava e lavava quando a mãe estava muito ocupada em outro serviço, ou amanhecia perrengue. O pai disse que Venâncio tinha caído do céu.
Quem não caiu do céu foi aquele homem feioso mal-encarado que chegou no rancho perguntando pelo dono. A mãe e o menino se assustaram, visita de fora ali não ia, só um caçador de ano em ano, esses chegavam pedindo muita licença, aceitavam um café ou um almoço, descansavam e iam embora deixando dinheiro para comprar alguma coisa para o menino, diziam. Mas aquele homem chegou com rompante, como se fosse dono da mata e dos bichos. A mãe explicou que o marido estava na roça.
— Eu espero. Manda chamar não — disse o homem, tirando a carabina do ombro, pegando um tamborete e sentando sem pedir licença.
Olhava tudo e não dizia nada, fiscalizando e guardando.
O menino grudou-se à mãe e não quis mais saber de nenhum brinquedo. Depois de muito hesitar a mãe disfarçou, pegou a buzina — mas o homem estava atento: deu um pulo do tamborete, tirou a buzina da mão dela.
— Toca não, dona. Não tenho pressa. Deixe ele vir sem aviso.
O menino teve vontade de ter uma faca pontuda para enfiar na barriga do homem; a da cozinha não servia, era pequena e sem ponta; pensou também em sair escondido para chamar o pai, mas desistiu porque achou arriscado deixar a mãe sozinha com aquele homem antipático.
O tempo não passava, e a nervosia da mãe andando pelo rancho querendo fazer muita coisa e não fazendo nada aumentava o medo do menino. Ele pediu a Deus que mandasse uma cobra venenosa morder o homem, chegou a ir para detrás de uma mamoneira esperar o resultado, não apareceu cobra nenhuma. Por que é que existe gente ruim no mundo? Por que não pode todo mundo ser como Venâncio? Ele pensava que a chegada do pai ia pôr tudo nos eixos, mas quando viu o pai chegando com Venâncio, cada um trazendo inocentemente uma bandeira de feijão na cabeça, sentiu um aperto no coração. Carabina dá tiro mais forte do que espingarda, o pai podia morrer na briga e o homem mal-encarado ficar morando no rancho, mandando nele e em Venâncio e dormindo no jirau com a mãe dele.
O pai chegou e jogou a bandeira de feijão no terreiro com um entortar de cabeça, o menino correu e abraçou-se nas pernas dele.
— Pai, um homem! Aí no oitão! Com uma carabina!
Venâncio também tinha jogado o feijão no chão, olhou assustado, quis correr, o homem já estava perto com a carabina na mão.
— É você mesmo que eu quero, maroto. Corre não que eu atiro.
O homem mandou o pai largar a espingarda no chão e puxou-a com o pé para perto dele.
— Agora amarre as mãos dele para trás com esta corda.
Tirou uma corda da patrona, jogou para o pai e ficou fiscalizando a amarragem, sempre com a carabina preparada. Quando o pai acabou de amarrar as mãos de Venâncio, o homem tirou um lacinho de laçar bezerro que levava pendurado na cintura, escondido debaixo do paletó, e mandou o pai passar a parte da argola por baixo dos braços de Venâncio, ficando a argola nas costas.
— Agora passe pela argola com duas voltas.
O pai obedeceu, não tinha outro jeito. O homem mudou a carabina para a mão esquerda, com a direita segurou o laço e deu um safanão para experimentar. Venâncio quase caiu para trás, não estava esperando aquela brutalidade.
— Vamos embora. Seu tio está esperando — disse o homem, e cutucou Venâncio com o cano da carabina.
Venâncio olhou para trás como que se despedindo das pessoas, do rancho, da gangorra, de tudo. O homem deu outro cutucão, Venâncio baixou a cabeça e foi andando, o homem atrás levando também a espingarda. Quando já iam entrando no mato o homem gritou: — vou levar sua espingardinha fubeca não. Vou deixar ela pendurada num pau. Depois você vem buscar.
O pai, a mãe, o menino ficaram olhando até que os dois sumiram no mato, mas desde antes já não viam direito por causa das lágrimas. Quando iam entrando no rancho, o pai tropeçou num pote de sebo que estavam juntando para fazer sabão, voltou e mandou o pote longe com um pontapé, espalhando sebo pelo terreiro. A mãe jogou-se de bruços no jirau, chorando como quem acaba de perder um filho. O pai passou o resto do dia e a noite sentado na porta do rancho enrolando e acendendo cigarro um atrás do outro. O menino também só pensava em Venâncio, não sabia como ia ser a vida sem ele.
Venâncio levado no laço, e os grilos cantando no mato, e a água correndo na grota, e os vaga-lumes trançando na noite, tudo como antes, e tão diferente... E os didangos, onde estavam que não tinham vindo?

— José J. Veiga, no livro "Os melhores contos de J. J. Veiga". seleção de J. Aderaldo Castelo. São Paulo: Global Editora, 2000.
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