À porta do céu - Carlos Drummond de Andrade

Rene Magritte - the-musings of the solitary walker - 1926
À porta do céu

Acompanhávamos o corpo de Jayme Ovalle, quando Dante Milano falou baixinho: “É um mundo de poesia irrealizada que se sepulta”. Com isso, aludia ao dom poético profundo, a que faltara expressão vocabular; mas esse dom se manifestara tanto na vida conversada, e mesmo na expressão musical, que era bem um poeta que sabíamos estar enterrando, e não sentíamos necessidade de confrontá-lo com a obra deixada, e sim consigo mesmo: o poeta sem versos Ovalle emergia serenamente do mito Ovalle, elaborado por duas gerações distintas — a de seus companheiros de mocidade, e outra mais recente, que o redescobrira aqui e no estrangeiro.
O mito Ovalle, por mais particular e adstrito a um pequeno grupo de seu convívio, não seria apenas criação de amigos, à luz da simpatia. Repousava por certo na originalidade do homem, que conseguira mover-se à sua maneira entre símbolos cristãos e amorosos, tornando-se um cristão e um amoroso sui generis. Uma frase de Ovalle não era rigorosamente “coisa engraçada” ou “bola”, mas uma iluminação lírica e humorística da qual se podiam extrair noções mais ou menos filosóficas sobre o mundo, a alma, os sentimentos e as coisas que acompanham o homem pela vida. Ele não saberia reduzir essas noções pressentidas a um corpo lógico, mas a verdade é que, a seu modo, penetrava no mundo das essências, e dele recolhia imagens sábias e loucas, que viriam infundir nos companheiros uma emoção de conhecimento fantástico e intuitivo.
Vamos admitir que o mito se comprouvesse com sua legenda; que o homem Ovalle se despedisse de bom grado da forma comum, para se instalar no personagem fabuloso e metafísico, que se criara com o tempo; às vezes, julguei vê-lo procurar laboriosamente alguma coisa que correspondesse a essa criação perturbadora. Um certo automatismo psicológico pode mesmo conservar aparentemente ativo aquilo que já secara raízes no ser. Mas pesquisando bem no fundo, Ovalle achava sempre o que quer que fosse de autêntico, de ovalliano; e a ingênua mistificação terminava em prova de que ele via de fato o mundo com olhos diferentes.
De sua visão ou percepção inconfundível das coisas, guardo uma lembrança, a propósito do falecimento de Jorge de Lima. Os dois eram vizinhos, e da varanda do apartamento de um se via o edifício onde morava o outro, ambos com vista larga sobre mar e céu. Ovalle recebeu pelo telefone a notícia da morte de Jorge; seu movimento natural foi chegar à varanda. “Olhei e vi que Jorge não estava mais”, contou-me ele. Nunca tive impressão mais nítida de fluido que se evola no espaço imenso, do que essa produzida pela palavra de Ovalle, a sentir no ar a morte do amigo marcando ausência e presença.
Na encomendação, o padre dizia com a maior naturalidade: “Coros de anjos te aguardam à porta do Paraíso, tendo à frente o arcanjo São Gabriel, e entrarás com eles”. Não sou homem de anjos, nem espero, por falta de merecimento pessoal, encontrá-los junto a nenhuma porta, mas no caso especial de Jayme Ovalle, acredito piamente que os anjos o esperaram sexta-feira, cantando talvez o “Azulão”, talvez coisas mais festivas ou celestiais; e acredito ainda que Ovalle se tenha comportado com eles sem nenhuma cerimônia, mesmo porque, como a Irene do seu parceiro Manuel Bandeira, ele era desses com direito a entrar no Céu sem pedir licença.


— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Fala, amendoeira". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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