Quem conta um conto - Machado de Assis

Paul Cezanne - the card players - 1893.
Quem conta um conto...

Eu compreendo que um homem goste de ver brigar galos ou de tomar rapé. O rapé dizem os tomistas que alivia o cérebro. A briga de galos é o Jockey Club dos pobres. O que eu não compreendo é o gosto de dar notícias.

E todavia quantas pessoas não conhecerá o leitor com essa singular vocação? O noveleiro não é tipo muito vulgar, mas também não é muito raro. Há família numerosa deles. Alguns são mais peritos e originais que outros. Não é noveleiro quem quer. É ofício que exige certas qualidades de bom cunho, quero dizer as mesmas que se exigem do homem de Estado. O noveleiro deve saber quando lhe convém dar uma notícia abruptamente, ou quando o efeito lhe pede certos preparativos: deve esperar a ocasião e adaptar-lhe os meios.

Não compreendo, como disse, o ofício de noveleiro. É coisa muito natural que um homem diga o que sabe a respeito de algum objeto; mas que tire satisfação disso, lá me custa a entender. Mais de uma vez tenho querido fazer indagações a este respeito; mas a certeza de que nenhum noveleiro confessa que o é tem impedido a realização deste meu desejo. Não é só desejo, é também necessidade; ganha-se sempre em conhecer os caprichos do espírito humano.

O caso de que vou falar aos leitores tem por origem um noveleiro. Lê-se depressa, porque não é grande.



II

Há coisa de sete anos vivia nesta boa cidade um homem de seus trinta anos, bem apessoado e bem falante, amigo de conversar, extremamente polido, mas extremamente amigo de espalhar novas.

Era um modelo do gênero.

Sabia como ninguém escolher o auditório, a ocasião e a maneira de dar a notícia. Não sacava a notícia da algibeira como quem tira uma moeda de vintém para dar a um mendigo.

Não, senhor.

Atendia mais que tudo às circunstâncias. Por exemplo: ouvira dizer, ou sabia positivamente que o ministério pedira a demissão ou ia pedi-la. Qualquer noveleiro diria simplesmente a coisa sem rodeios. Luís da Costa, ou dizia a coisa simplesmente, ou adicionava-lhe certo molho para torná-la mais picante.

Às vezes entrava, cumprimentava as pessoas presentes, e se entre elas alguma havia metida em política, aproveitava o silêncio causado pela sua entrada, para fazer-lhe uma pergunta deste gênero:

— Então, parece que os homens...

Os circunstantes perguntavam logo:

— Que é? que há?

Luís da Costa, sem perder o seu ar sério, dizia singelamente:

— É o ministério que pediu demissão.

— Ah! sim? quando?

— Hoje.

— Sabe quem foi chamado?

— Foi chamado o Zózimo.

— Mas por que caiu o ministério?

— Ora, estava podre.

Etc., etc.

Ou então:

— Morreram como viveram.

— Quem? quem? quem?

Luís da Costa puxava os punhos e dizia negligentemente:

— Os ministros.

Suponhamos agora que se tratava de uma pessoa qualificada que devia vir no paquete: Adolfo Thiers ou o príncipe de Bismarck.

Luís da Costa entrava, cumprimentava silenciosamente a todos, e em vez de dizer com simplicidade:

— Veio no paquete de hoje o príncipe de Bismarck.

Ou então:

— O Thiers chegou no paquete.

Voltava-se para um dos circunstantes:

— Chegaria o paquete?

— Chegou, dizia o circunstante.

— O Thiers veio?

Aqui entrava a admiração dos ouvintes, com que se deliciava Luís da Costa, razão principalmente do seu ofício.



III

Não se pode negar que este prazer era inocente e quando muito singular.

Infelizmente não há bonito sem senão, nem prazer sem amargura. Que mel não deixa um travo de veneno? perguntava o poeta da Jovem Cativa, e eu creio que nenhum, nem sequer o de alvissareiro.

Luís da Costa experimentou um dia as asperezas do seu ofício.

Eram duas horas da tarde. Havia pouca gente na loja do Paula Brito, cinco pessoas apenas. Luís da Costa entrou com o rosto fechado como homem que vem pejado de alguma notícia.

Apertou a mão a quatro das pessoas presentes; a quinta apenas recebeu um cumprimento, porque não se conheciam. Houve um rápido instante de silêncio, que Luís da Costa aproveitou para tirar o lenço da algibeira e enxugar o rosto. Depois olhou para todos, e soltou secamente estas palavras:

— Então fugiu a sobrinha do Gouveia? disse ele rindo.

— Que Gouveia? disse um dos presentes.

— O major Gouveia, explicou Luís da Costa.

Os circunstantes ficaram muito calados e olharam de esguelha para o quinto personagem, que por sua parte olhava para Luís da Costa.

— O major Gouveia da Cidade Nova? perguntou o desconhecido ao noveleiro.

— Sim, senhor.

Novo e mais profundo silêncio.

Luís da Costa, imaginando que o silêncio era efeito da bomba que acabava de queimar, entrou a referir os pormenores da fuga da moça em questão. Falou de um namoro com um alferes, da oposição do major ao casamento, do desespero dos pobres namorados, cujo coração, mais eloqüente que a honra, adotara o alvitre de saltar por cima dos moinhos.

O silêncio era sepulcral.

O desconhecido ouvia atentamente a narrativa de Luís da Costa, meneando com muita placidez uma grossa bengala que tinha na mão.

Quando o alvissareiro acabou, perguntou-lhe o desconhecido:

— E quando foi esse rapto?

— Hoje de manhã.

— Oh!

— Das 8 para as 9 horas.

— Conhece o major Gouveia?

— De nome.

— Que idéia forma dele?

— Não formo idéia nenhuma. Menciono o fato por duas circunstâncias. A primeira é que a rapariga é muito bonita...

— Conhece-a?

— Ainda ontem a vi.

— Ah! A segunda circunstância...

— A segunda circunstância é a crueldade de certos homens em tolher os movimentos do coração da mocidade. O alferes de que se trata dizem-me que é um moço honesto, e o casamento seria, creio eu, excelente. Por que razão queria o major impedi-lo?

— O major tinha razões fortes, observou o desconhecido.

— Ah! conhece-o?

— Sou eu.

Luís da Costa ficou petrificado. A cara não se distinguia da de um defunto, tão imóvel e pálida ficou. As outras pessoas olhavam para os dois sem saber o que ira sair dali. Deste modo correram cinco minutos.



IV

No fim de cinco minutos, o major Gouveia continuou:

— Ouvi toda a sua narração e diverti-me com ela. Minha sobrinha não podia fugir hoje de minha casa, visto que há quinze dias se acha em Juiz de Fora.

Luís da Costa ficou amarelo.

— Por essa razão ouvi tranqüilamente a história que o senhor acaba de contar com todas as suas peripécias. O fato, se fosse verdadeiro, devia causar naturalmente espanto, porque, além do mais, Lúcia é muito bonita, e o senhor o sabe porque a viu ontem...

Luís da Costa tornou-se verde.

— A notícia, entretanto, pode ter-se espalhado, continuou o major Gouveia, e eu desejo liquidar o negócio pedindo-lhe que me diga de quem a ouviu...

Luís da Costa ostentou todas as cores do íris.

— Então? disse o major passados alguns instantes de silêncio.

— Sr. major, disse com voz trêmula Luís da Costa, eu não podia inventar semelhante notícia. Nenhum interesse tenho nela. Evidentemente alguém ma contou.

— É justamente o que eu desejo saber.

— Não me lembro...

— Veja se se lembra, disse o major com doçura.

Luís da Costa consultou sua memória; mas tantas coisas ouvia e tantas repetia, que já não podia atinar com a pessoa que lhe contara a história do rapto.

As outras pessoas presentes, vendo o caminho desagradável que as coisas podiam ter, trataram de meter o caso à bulha; mas o major, que não era homem de graças, insistiu com o alvissareiro para que o esclarecesse a respeito do inventor da balela.

— Ah! agora me lembra, disse de repente Luís da Costa, foi o Pires.

— Que Pires?

— Um Pires que eu conheço muito superficialmente.

— Bem, vamos ter com o Pires.

— Mas, Sr. major...

O major já estava de pé, apoiado na grossa bengala, e com ar de quem estava pouco disposto a discussões. Esperou que Luís da Costa se levantasse também. O alvissareiro não teve remédio senão imitar o gesto do major, não sem tentar ainda um:

— Mas, Sr. major...

— Não há mas, nem meio mas. Venha comigo; porque é necessário deslindar o negócio hoje mesmo. Sabe onde mora esse tal Pires?

— Mora na Praia Grande, mas tem escritório na Rua dos Pescadores.

— Vamos ao escritório.

Luís da Costa cortejou os outros e saiu ao lado do major Gouveia, a quem deu respeitosamente a calçada e ofereceu um charuto. O major recusou o charuto, dobrou o passo e os dois seguiram na direção da Rua dos Pescadores.



V

— O Sr. Pires?

— Foi à secretaria da Justiça.

— Demora-se?

— Não sei.

Luís da Costa olhou para o major ao ouvir estas palavras do criado do Sr. Pires. O major disse fleugmaticamente:

— Vamos à secretaria da Justiça.

E ambos foram a trote largo na direção da Rua do Passeio. Iam-se aproximando as três horas, e Luís da Costa, que jantava cedo, começava a ouvir do estômago uma lastimosa petição. Era-lhe, porém, impossível fugir às garras do major. Se o Pires tivesse embarcado para Santos, é provável que o major o levasse até lá antes de jantar.

Tudo estava perdido.

Chegaram enfim à secretaria, bufando como dois touros.

Os empregados vinham saindo, e um deles deu notícia certa do esquivo Pires; disse-lhes que saíra dali, dez minutos antes, num tílburi.

— Voltemos à Rua dos Pescadores, disse pacificamente o major.

— Mas, senhor...

A única resposta do major foi dar-lhe o braço e arrastá-lo na direção da Rua dos Pescadores.

Luís da Costa ia furioso. Começava a compreender a plausibilidade e até a legitimidade de um crime. O desejo de estrangular o major pareceu-lhe um sentimento natural. Lembrou-se de ter condenado, oito dias antes, como jurado, um criminoso de morte, e teve horror de si mesmo.

O major, porém, continuava a andar com aquele passo rápido dos majores que andam depressa. Luís da Costa ia rebocado. Era-lhe literalmente impossível apostar carreira com ele.

Eram três e cinco minutos quando chegaram defronte do escritório do Sr. Pires. Tiveram o gosto de dar com o nariz na porta.

O major Gouveia mostrou-se aborrecido com o fato; como era homem resoluto, depressa se consolou do incidente.

— Não há dúvida, disse ele, iremos à Praia Grande.

— Isso é impossível! clamou Luís da Costa.

— Não é tal, respondeu tranqüilamente o major, temos barca e custa-nos um cruzado a cada um: eu pago a sua passagem.

— Mas, senhor, a esta hora...

— Que tem?

— São horas de jantar, suspirou o estômago de Luís da Costa.

— Pois jantaremos antes.

Foram dali a um hotel e jantaram. A companhia do major era extremamente aborrecida para o desastrado alvissareiro. Era impossível livrar-se dela; Luís da Costa portou-se o melhor que pôde. Demais, a sopa e o primeiro prato foi o começo da reconciliação. Quando veio o café e um bom charuto, Luís da Costa estava resolvido a satisfazer o seu anfitrião em tudo o que lhe aprouvesse.

O major pagou a conta e saíram ambos do hotel. Foram direitos à estação das barcas de Niterói; meteram-se na primeira que saiu e transportaram-se à imperial cidade.

No trajeto, o major Gouveia conservou-se tão taciturno como até então. Luís da Costa, que já estava mais alegre, cinco ou seis vezes tentou atar conversa com o major; mas foram esforços inúteis. Ardia entretanto por levá-lo até a casa do Sr. Pires, que explicaria as coisas como as soubesse.



VI

O Sr. Pires morava na Rua da Praia. Foram direitinhos à casa dele. Mas se os viajantes haviam jantado, também o Sr. Pires fizera o mesmo; e como tinha por costume ir jogar o voltarete em casa do Dr. Oliveira, em S. Domingos, para lá seguira vinte minutos antes.

O major ouviu esta notícia com a resignação filosófica de que estava dando provas desde as duas horas da tarde. Inclinou o chapéu mais à banda e olhando de esguelha para Luís da Costa, disse:

— Vamos a S. Domingos.

— Vamos a S. Domingos, suspirou Luís da Costa.

A viagem foi de carro, o que de algum modo consolou o noveleiro.

Na casa do Dr. Oliveira passaram pelo dissabor de bater cinco vezes, antes que viessem abrir.

Enfim vieram.

— Está cá o Sr. Pires?

— Está, sim, senhor, disse o moleque.

Os dois respiraram.

O moleque abriu-lhes a porta da sala, onde não tardou que aparecesse o famoso Pires, l’introuvable.

Era um sujeitinho baixinho e alegrinho. Entrou na ponta dos pés, apertou a mão a Luís da Costa e cumprimentou cerimoniosamente ao major Gouveia.

— Queiram sentar-se.

— Perdão, disse o major, não é preciso que nos sentemos; desejamos pouca coisa.

O Sr. Pires curvou a cabeça e esperou.

O major voltou-se então para Luís da Costa e disse:

— Fale.

Luís da Costa fez das tripas coração e exprimiu-se nestes termos:

— Estando eu hoje na loja do Paula Brito contei a história do rapto de uma sobrinha do Sr. major Gouveia, que o senhor me referiu pouco antes do meio-dia. O major Gouveia é este cavalheiro que me acompanha, e declarou que o fato era uma calúnia, visto sua sobrinha estar em Juiz de Fora, há quinze dias. Intenta contudo chegar à fonte da notícia e perguntou-me quem me havia contado a história; não hesitei em dizer que fora o senhor. Resolveu então procurá-lo, e não temos feito outra coisa desde as duas horas e meia. Enfim, encontramo-lo.

Durante este discurso, o rosto do Sr. Pires apresentou todas as modificações do espanto e do medo. Um ator, um pintor, ou um estatuário teria ali um livro inteiro para folhear e estudar. Acabado o discurso, era necessário responder-lhe, e o Sr. Pires o faria de boa vontade, se se lembrasse do uso da língua. Mas não; ou não se lembrava, ou não sabia que uso faria dela. Assim correram uns três a quatro minutos.

— Espero as suas ordens, disse o major, vendo que o homem não falava.

— Mas, que quer o senhor? balbuciou o Sr. Pires.

— Quero que me diga de quem ouviu a notícia transmitida a este senhor. Foi o senhor quem lhe disse que minha sobrinha era bonita?

— Não lhe disse tal, acudiu o Sr. Pires; o que eu disse foi que me constava ser bonita.

— Vê? disse o major voltando-se para Luís da Costa.

Luís da Costa começou a contar as tábuas do teto.

O major dirigiu-se depois ao Sr. Pires:

— Mas vamos lá, disse; de quem ouviu a notícia?

— Foi de um empregado do Tesouro.

— Onde mora?

— Em Catumbi.

O major voltou-se para Luís da Costa, cujos olhos, tendo já contado as tábuas do teto, que eram vinte e duas, começavam a examinar detidamente os botões do punho da camisa.

— Pode retirar-se, disse o major; não é mais preciso aqui.

Luís da Costa não esperou mais; apertou a mão do Sr. Pires, balbuciou um pedido de desculpa, e saiu. Já estava a trinta passos, e ainda lhe parecia estar colado ao terrível major. Ia justamente a sair uma barca; Luís da Costa deitou a correr, e ainda a alcançou, perdendo apenas o chapéu, cujo herdeiro foi um cocheiro necessitado.

Estava livre.



VII

Ficaram sós o major e o Sr. Pires.

— Agora, disse o primeiro, há de ter a bondade de me acompanhar à casa desse empregado do Tesouro... Como se chama?

— O bacharel Plácido.

— Estou às suas ordens; tem passagem e carro pago.

O Sr. Pires fez um gesto de aborrecimento, e murmurou:

— Mas eu não sei... se...

— Se?

— Não sei se me é possível nesta ocasião...

— Há de ser. Penso que é um homem honrado. Não tem idade para ter filhas moças, mas pode vir a tê-las, e saberá se é agradável que tais invenções andem na rua.

— Confesso que as circunstâncias são melindrosas; mas não poderíamos...

— O quê?

— Adiar?

— Impossível.

O Sr. Pires mordeu o lábio inferior; meditou alguns instantes, e afinal declarou que estava disposto a acompanhá-lo.

— Acredite, Sr. major, disse ele concluindo, que só as circunstâncias especiais deste caso me obrigariam a ir à cidade.

O major inclinou-se.

O Sr. Pires foi despedir-se do dono da casa, e voltou para acompanhar o implacável major, em cujo rosto se lia a mais franca resolução.

A viagem foi tão silenciosa como a primeira. O major parecia uma estátua; não falava e raras vezes olhava para o seu companheiro.

A razão foi compreendida pelo Sr. Pires, que matou as saudades do voltarete, fumando sete cigarros por hora.

Enfim chegaram a Catumbi.

Desta vez foi o major Gouveia mais feliz que da outra: achou o bacharel Plácido em casa.

O bacharel Plácido era o seu próprio nome feito homem. Nunca a pachorra tivera mais fervoroso culto. Era gordo, corado, lento e frio. Recebeu os dois visitantes com a benevolência de um Plácido verdadeiramente plácido.

O Sr. Pires explicou o objeto da visita.

— É verdade que eu lhe falei de um rapto, disse o bacharel, mas não foi nos termos em que o senhor o repetiu. O que eu disse foi que o namoro da sobrinha do major Gouveia com um alferes era tal que até já se sabia do projeto de rapto.

— E quem lhe disse isso, Sr. bacharel? perguntou o major.

— Foi o capitão de artilharia Soares.

— Onde mora?

— Ali em Mata-porcos.

— Bem, disse o major.

E voltando-se para o Sr. Pires:

— Agradeço-lhe o incômodo, disse; não lhe agradeço, porém, o acréscimo. Pode ir embora; o carro tem ordem de o acompanhar até à estação das barcas.

O Sr. Pires não esperou novo discurso; despediu-se e saiu. Apenas entrou no carro deu dois ou três socos em si mesmo e fez um solilóquio extremamente desfavorável à sua pessoa.

— É bem feito, dizia o Sr. Pires; quem me manda ser abelhudo? Se só me ocupasse com o que me diz respeito, estaria a esta hora muito descansado e não passaria por semelhante dissabor. É bem feito!



VIII

O bacharel Plácido encarou o major, sem compreender a razão por que ficara ali, quando o outro fora embora. Não tardou que o major o esclarecesse. Logo que o Sr. Pires saiu da sala, disse ele:

— Queira agora acompanhar-me à casa do capitão Soares.

— Acompanhá-lo! exclamou o bacharel mais surpreendido do que se lhe caísse o nariz no lenço de tabaco.

— Sim, senhor.

— Que pretende fazer?

— Oh! nada que o deva assustar. Compreende que se trata de uma sobrinha, e que um tio tem necessidade de chegar à origem de semelhante boato. Não crimino os que o repetiram, mas quero haver-me com o que o inventou.

O bacharel recalcitrou: a sua pachorra dava mil razões para demonstrar que sair de casa às ave-marias para ir a Mata-porcos era um absurdo. A nada atendia o major Gouveia, e com o tom intimador que lhe era peculiar, antes intimava do que persuadia o gordo bacharel.

— Mas há de confessar que é longe, observou este.

— Não seja essa a dúvida, acudiu o outro; mande chamar um carro que eu pago.

O bacharel Plácido coçou a orelha, deu três passos na sala, suspendeu a barriga e sentou-se.

— Então? disse o major ao cabo de algum tempo de silêncio.

— Refleti, disse o bacharel; é melhor irmos a pé; eu jantei há pouco e preciso digerir. Vamos a pé...

— Bem, estou às suas ordens.

O bacharel arrastou a sua pessoa até a alcova, enquanto o major, com as mãos nas costas, passeava na sala meditando e fazendo, a espaços, um gesto de impaciência.

Gastou o bacharel cerca de vinte e cinco minutos em preparar a sua pessoa, e saiu enfim à sala, quando o major ia já tocar a campainha para chamar alguém.

— Pronto?

— Pronto.

— Vamos!

— Deus vá conosco.

Saíram os dois na direção de Mata-porcos.

Se uma pipa andasse seria o bacharel Plácido; já porque a gordura não lho consentia, já porque desejara pregar uma peça ao importuno, o bacharel não ia sequer com passo de gente. Não andava... arrastava-se. De quando em quando parava, respirava e bufava; depois seguia vagarosamente o caminho.

Com este era impossível o major empregar o sistema de reboque que tão bom efeito teve com Luís da Costa. Ainda que o quisesse obrigar a andar era impossível, porque ninguém arrasta oito arrobas com a simples força do braço.

Tudo isto punha o major em apuros. Se visse passar um carro, tudo estava acabado, porque o bacharel não resistiria ao seu convite intimativo; mas os carros tinham-se apostado para não passar ali, ao menos vazios, e só de longe em longe um tílburi vago convidava, a passo lento, os fregueses.

O resultado de tudo isto foi que, só às oito horas, chegaram os dois à casa do capitão Soares. O bacharel respirou à larga, enquanto o major batia palmas na escada.

— Quem é? perguntou uma voz açucarada.

— O Sr. capitão? disse o major Gouveia.

— Eu não sei se já saiu, respondeu a voz; vou ver.

Foi ver, enquanto o major limpava a testa e se preparava para tudo o que pudesse sair de semelhante embrulhada. A voz não voltou senão dali a oito minutos, para perguntar com toda a singeleza:

— O senhor quem é?

— Diga que é o bacharel Plácido, acudiu o indivíduo deste nome, que ansiava por arrumar a católica pessoa em cima de algum sofá.

A voz foi dar a resposta e daí a dois minutos voltou a dizer que o bacharel Plácido podia subir.

Subiram os dois.

O capitão estava na sala e veio receber à porta o bacharel e o major. A este conhecia também, mas eram apenas cumprimentos de chapéu.

— Queiram sentar-se.

Sentaram-se.



IX

— Que mandam nesta sua casa? perguntou o capitão Soares.

Paul Cezanne - 1866
O bacharel usou da palavra:

— Capitão, eu tive a infelicidade de repetir aquilo que você me contou a respeito da sobrinha do Sr. major Gouveia.

— Não me lembra; que foi? disse o capitão com uma cara tão alegre como a de homem a quem estivessem torcendo um pé.

— Disse-me você, continuou o bacharel Plácido, que o namoro da sobrinha do Sr. major Gouveia era tão sabido que até já se falava de um projeto de rapto...

— Perdão! interrompeu o capitão. Agora me lembro que alguma coisa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de repetir.

— Não foi?

— Não.

— Então que foi?

— O que eu disse foi que havia notícia vaga de um namoro da sobrinha de V. S. com um alferes. Nada mais disse. Houve equívoco da parte do meu amigo Plácido.

— Sim, há alguma diferença, concordou o bacharel.

— Há, disse o major deitando-lhe os olhos por cima do ombro.

Seguiu-se um silêncio.

Foi o major Gouveia o primeiro que falou.

— Enfim, senhores, disse ele, ando desde as duas horas da tarde na indagação da fonte da notícia que me deram a respeito de minha sobrinha. A notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí um namoro de alferes que incomoda. Quer o Sr. capitão dizer-me a quem ouviu isso?

— Pois não, disse o capitão; ouvi-o ao desembargador Lucas.

— É meu amigo!

— Tanto melhor.

— Acho impossível que ele dissesse isso, disse o major levantando-se.

— Senhor! exclamou o capitão.

— Perdoe-me, capitão, disse o major caindo em si. Há de concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltratado por culpa de um amigo...

— Nem ele disse por mal, observou o capitão Soares. Parecia até lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com outra pessoa...

— É verdade, concordou o major. O desembargador não era capaz de injuriar-me; naturalmente ouviu isso a alguém.

— É provável.

— Tenho interesse em saber a fonte de semelhante boato. Acompanhe-me à casa dele.

— Agora!

— É indispensável.

— Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?

— Sei; iremos de carro.

O bacharel Plácido aprovou esta resolução e despediu-se dos dois militares.

— Não podíamos adiar isso para depois? perguntou o capitão logo que o bacharel saiu.

— Não, senhor.

O capitão estava em sua casa; mas o major tinha tal império na voz ou no gesto quando exprimia a sua vontade, que era impossível resistir-lhe. O capitão não teve remédio senão ceder.

Preparou-se, meteram-se num carro e foram na direção do Rio Comprido, onde morava o desembargador.

O desembargador era um homem alto e magro, dotado de excelente coração, mas implacável contra quem quer que lhe interrompesse uma partida de gamão.

Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe bateram à porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, cujo dado era tão feliz que em menos de uma hora lhe dera já cinco gangas. O desembargador fumava... figuradamente falando, e o coadjutor sorria, quando o moleque foi dar parte de que duas pessoas estavam na sala e queriam falar com o desembargador.

O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de atirar o copo à cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor num discurso furibundo contra os importunos e maçantes.

— Há de ver que é algum procurador à procura de autos, ou à cata de autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo a todos eles.

— Vamos, tenha paciência, dizia-lhe o coadjutor. Vá, vá ver o que é, que eu o espero. Talvez que esta interrupção corrija a sorte dos dados.

— Tem razão, é possível, concordou o desembargador, levantando-se e dirigindo-se para a sala.



X

Na sala teve a surpresa de achar dois conhecidos.

O capitão levantou-se sorrindo e pediu-lhe desculpa do incômodo que lhe vinha dar. O major levantou-se também, mas não sorria.

Feitos os cumprimentos foi exposta a questão. O capitão Soares apelou para a memória do desembargador a quem dizia ter ouvido a notícia do namoro da sobrinha do major Gouveia.

— Recordo-me ter-lhe dito, respondeu o desembargador, que a sobrinha de meu amigo Gouveia piscara o olho a um alferes, o que lamentei do fundo d’alma, visto estar para casar. Não lhe disse, porém, que havia namoro...

O major não pôde disfarçar um sorriso, vendo que o boato ia a diminuir à proporção que se aproximava da fonte. Estava disposto a não dormir sem dar com ela.

— Muito bem, disse ele; a mim não basta esse dito; desejo saber a quem o ouviu, a fim de chegar ao primeiro culpado de semelhante boato.

— A quem o ouvi?

— Sim.

— Foi ao senhor.

— A mim!

— Sim, senhor; sábado passado.

— Não é possível!

— Não se lembra que me disse na Rua do Ouvidor, quando falávamos das proezas da...

— Ah! mas não foi isso! exclamou o major. O que eu lhe disse foi outra coisa. Disse-lhe que era capaz de castigar minha sobrinha se ela, estando agora para casar, deitasse os olhos a algum alferes que passasse.

— Nada mais? perguntou o capitão.

— Mais nada.

— Realmente é curioso.

O major despediu-se do desembargador, levou o capitão até Mata-porcos e foi direito para casa praguejando contra si e todo o mundo.

Ao entrar em casa estava já mais aplacado. O que o consolou foi a idéia de que o boato podia ser mais prejudicial do que fora. Na cama ainda pensou no acontecimento, mas já se ria da maçada que dera aos noveleiros. Suas últimas palavras antes de dormir foram:

— Quem conta um conto...


- Machado de Assis, 'Quem conta um conto...'/Contos Avulsos. Publicado originalmente em Jornal das Famílias, fevereiro, 1873.
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