Lo - Luis Fernando Verissimo

Henri de Toulouse-Lautrec - 1888
Lo

1

Dolores, luz da minha vida, fogo das minhas entranhas. Meu pecado, minha alma. Do-lo-res: a ponta da língua viajando pelo palato em três etapas, terminado num esgar para acomodar o “res”. Do, Lo, (careta) Res.
Ela era Lola, apenas Lola, de manhã, fumando, com um pé de bailarina pousado no joelho da outra perna. Lores nos seus slacks cor de abóbora, aterrorizando as empregadas na nossa casa em Paris, onde as banheiras tinham a forma de cisnes. Dolores Fuertes y Obregon nas linhas pontilhadas, administrando sua fortuna. Mas para mim, na sua cama, nos seus braços, cochichado no seu ouvido (o que ela odiava), ela seria sempre Dolores Fuertes de Barriga. Minha senhora das dores. Minha Lo.
Quando nos conhecemos em Porto Seguro eu tinha 12 anos e ela tinha 36, ou dizia que tinha 36. Eu tinha o cabelo louro e encaracolado e os olhos verdes, mas fora essa intromissão, talvez holandesa, no meu sangue era um baiano de cartão-postal, um mulatinho reluzente, um amor. Pergunte a qualquer um que me conheceu então, se encontrar algum vivo, se eu não era de levar pra casa. E foi o que a Dolores fez. Eu me chamava Zé Maria e dançava na praia para os turistas com a minha irmã, Janaína. E a Dolores se encantou comigo. “Como te llamas?”, ela perguntou. “José”, eu disse, e com medo que ela não entendesse repeti: “José” e ela disse “Rosé Rosé, que raro!” O dinheiro dela venceu a burocracia do Brasil, os papéis da adoção saíram logo e em menos de um mês José José Fuertes y Obregon voava para Paris com uma nova fatiota e uma nova mãe, além de um passaporte e um novo nome. O Maria de Zé Maria ficou para trás. Sempre que penso no Brasil, para onde nunca voltei, penso numa Maria dançando sozinha na praia. A parte de mim que nunca cresceu. Que ficou no seu porto seguro, intocada pelos contágios da vida. Bonito isso, hein, leitor? Leitora? Confiem num assassino para ter um estilo floreado.
Minha mãe de carne não se opôs à minha ida. Era uma boca a menos em casa e ainda sobraram doze. Não sei se encontraram meu pai para contar que eu ia embora com uma espanhola ou se a informação chegou ao seu cérebro antes de ser diluída, no caminho, pela cachaça. Nunca soube mais nada deles, ou da Janaína e dos meus outros irmãos. No avião para São Paulo, onde faríamos a conexão para Paris, Dolores me perguntou se eu não estava emocionado. “Por quê?”, perguntei. Ela ficou chocada. Eu estava dentro de uma fatiota e de um avião pela primeira vez. Estava começando outra vida. Tudo seria diferente para mim dali para a frente. Eu não estava emocionado? “Estou!”, gritei. “Porra, estou emocionado, sim!” Comecei a chorar como chorava na praia quando um turista demorava a nos dar dinheiro. Sentei no seu colo. Gritei: “Obrigado! Obrigado, dona!” Ela ficou radiante. Era o que queria ouvir. Beijou meus cabelos encaracolados. Disse que eu não precisava agradecer. Que nós íamos ter uma bela vida juntos. E pediu que eu não a chamasse de “dona”.
— Posso chamar de mãe?
— Dolores.
— Dolores Fuertes.
— Si.
— Dolores Fuertes de Barriga.
— No. Fuertes y Obregon. Ahora es su nombre tambien, Rosé Rosé.
Me atirei de novo sobre ela, soluçando. Ficamos abraçados assim até a aeromoça vir oferecer o lanche. Comi o meu e o dela.
Leitor, leitora, isto não é um pedido de clemência. Só peço que me entendam. Não se precipitem. Ainda falta muita coisa para contar. Esperem para dizer quem mereceu o quê. Leiam toda a minha confissão antes de decidir quem é culpado, se alguém for culpado. Minha defesa: nunca na história do mundo o amor corrompeu alguém. Pode ter aleijado, pode ter matado, mas nunca sujou. E esta, embora pareça outras coisas, é uma história de amor.

2

Dolores nasceu em Madri. O pai, duque de alguma coisa. A mãe, parente longe, mas não longe o bastante, dos Bourbons, parceira de jogo da rainha Victória Eugenie de Battenberg, mulher de Alfonso XIII, a quem teve que acompanhar para o exílio, com toda a família, em 1931. Ela e a rainha jogavam gamão. Um dia, alisando o meu braço cor de acarajé, Dolores contou que devia a brancura da sua pele a gerações e gerações de casamentos mais ou menos incestuosos que tinham filtrado toda a influência moura do sangue da aristocracia espanhola, e sua educação europeia ao gamão. Passara a infância pulando de lugar em lugar junto com a corte banida. Primeiras letras em Baden-Baden, balé e piano num internato em Genebra, equitação em Roma... As convulsões do século tinham sido apenas pano de fundo para a formação de uma jovem de bom sangue e espírito rarefeito, a minha branquíssima Lo. A Segunda Guerra Mundial passara longe da mansão da família em Monteverde. Apenas alguns tiros pontilhando a noite, distantes, como estrelas sonoras, e nada mais. A única má lembrança que Dolores guardava das privações de guerra, em Roma, era do dia em que, na sua aula de equitação, lhe informaram que seu cavalo preferido tinha sido comido na noite anterior. No fim da guerra ela casara-se com Enrico, um nobre italiano com muita influência no Vaticano, suspeito de ter desviado dinheiro da cúria e conhecido como o último homem na Europa a ainda usar o rapé e que, segundo Dolores, renunciara ao sexo, preferindo o espirro ao orgasmo. Depois de sua morte em circunstâncias trágicas no parque da Villa Pamphili (piquenique, mordida de aranha, inflamação, atendimento italiano), Dolores mudara-se para Paris, decidida a gastar sua herança numa vida artística. Dizia que não se pode ficar esperando que a vida nos tire para dançar, nós é que temos que persegui-la, enlaçá-la e sair rodopiando. Ela chegara rodopiando a Paris, onde não conhecera nem Hemingway, nem Sartre nem Picasso mas fora cantada no café Les Deux Magots por Gertrude Stein, que apertara seu joelho com a força de um estivador e a convidara para um fim de semana em Fontainebleu. Recusara-se a voltar à Espanha mesmo depois da permissão dada por Franco à família real e sua corte no exílio para retornar. Sua casa em Paris ficava perto do Bois de Boulogne, onde ela cavalgava todas as manhãs. Ela me instalou num quarto forrado de seda. Os meus travesseiros eram maiores do que a cama em que eu dormia com mais seis. A banheira em que ela me dava banho tinha a forma de um cisne e era quase maior do que a nossa casa de madeira em Porto Seguro. Mas não ficamos muito tempo neste paraíso sedoso. Um dia ela me avisou que iríamos viajar. Tínhamos pouco tempo para arrumar as malas. Não, eu não podia levar os travesseiros. Haveria travesseiros iguais àqueles no lugar para onde iríamos. Jamais me faltariam travesseiros. Ela deu uma ordem para as empregadas que eu não entendi. Depois me contou que as proibira de revelar nosso destino. Revelar para quem? Para quem perguntar, respondeu ela, rispidamente. E quando eu quis saber mais só disse “Shush” e “bamo-nos, bamo-nos”. E foi assim que começou nossa longa fuga pela Europa, fugindo eu não sabia do quê. O pequeno Rosé Rosé deglutido por um continente viciado. Ou o velho continente, recém se recuperando de uma guerra, lentamente envenenado pela ingestão de um baianinho tóxico. Além de uma história de amor, esta também é uma história de degeneração e redenção, se me perdoam a imodéstia.

3

Sim leitor, leitora, ela me dava banho. Não a condenem ainda. A expressão no seu rosto foi de surpresa na primeira vez que meu pau de 12 anos duplicou de tamanho na sua mão ensaboada. Foi disfarce, ou ela não esperava mesmo um pau duro no anjo moreno que comprara em Porto Seguro? Daí em diante, toda vez que ensaboava meu pau ela cantava um lied de Schubert. Talvez sua intenção fosse me iniciar na alta cultura europeia e guiar minha descoberta do meu próprio corpo, em sincronia. Ou então simular indiferença maternal à minha ereção juvenil. Ou me introduzir na doce variedade da vida, Schubert em cima e um pau ensaboado embaixo, polos opostos mas compatíveis de prazer, uma educação completa e simultânea do corpo e do espírito. O fato é que, até há pouco tempo, ouvir Schubert me dava tesão. Ela me tirava do banho, me enrolava num roupão e me levava para seu quarto, cantando canções espanholas. Me secava com o próprio roupão que depois atirava longe, e me vestia, sempre com dificuldade para acomodar minha rija gratidão na cueca de linho. E declinando uma lista de poetas que fariam parte da minha formação, quando eu aprendesse o francês. Um dia, citando Verlaine e Rimbaud, ela beijou a ponta do meu pau. Um mordisco, leitor, leitora. Quase uma vírgula da declamação. Dias depois foi a vez de Apollinaire ser interrompido por um beijo mais profundo — Apolinhamnhamnham — que por pouco não me sugou a alma. Finalmente ela um dia me fez deitar de costas na sua cama, antes de me vestir a cueca, e disse que eu me preparasse para Baudelaire, que Baudelaire mudaria a minha vida, e deitou-se em cima de mim, dizendo “É assim, é assim” e guiando meu pau para dentro dela. Dolores nunca ficou sabendo que uma turista argentina chamada Anabela já tinha me mostrado o mesmo caminho muitas vezes, sem recurso a Baudelaire, em Porto Seguro.

4

Nossa fuga (De quê? De quem?) começou por um dos chateaux menores do Loire, propriedade de uma prima francesa arruinada que alugava quartos para turistas e concordara em nos alojar num sótão infestado de ratos. Para o meu banho, tínhamos que descer dois andares até o térreo, Dolores me carregando no colo, muitas vezes esbarrando nos corredores escuros com ingleses desorientados. Eu senti falta da minha banheira em forma de cisne de Paris e deixei clara minha revolta, recusando as carícias da Lo por noites seguidas, até ela prometer que não ficaríamos ali por muito tempo e em breve estaríamos num chateau de verdade, longe de ratos e ingleses. O segundo chateau era de um primo, também arruinado mas não tanto, que ocupava só quatro das suas oitenta e nove peças e nos deixou escolher o quarto que quiséssemos, desde que nos contentássemos com colchões no chão em vez de camas e água marrom nas torneiras. Lo e eu corríamos pelas peças vazias do chateau, e nossas corridas sempre acabavam sobre um colchão, entre risadas, as da minha pobre Lo, gorjeios agudos que faziam balançar as teias de aranha, e se transformavam em ganidos quando eu a penetrava.
Certo dia ouvi o seguinte diálogo entre o segundo primo e Lo:
— Ela está vindo.
— O quê? Para cá?
— Recebi um telegrama. Ela chega no domingo.
— Mas vem fazer o quê?
— Não sei. Talvez saiba que vocês estão aqui.
— Mas como ela soube?
Não ouvi a resposta do primo. Deduzi que ele apenas dera de ombros.
Naquela noite, na mesa tosca da cozinha onde comíamos (o primo cozinhava, mal, o que Dolores comprava no mercado), perguntei:
— Quem está vindo aí?
— Ninguém — disse Lo. — Tome a sua sopa.
— Eu ouvi vocês conversando.
— Pois ouviu errado. Seu francês é péssimo.
— Foi você que me ensinou.
Ela não disse nada. Me revoltei. Empurrei o prato de sopa da minha frente.
— Você também me ensinou a gostar de ostras, aspargos e foie gras, e olha o que eu estou comendo!
— Pois não coma. Vá para o quarto.
Saí da mesa derrubando a cadeira.
Mais tarde, ela me acordou. Queria pedir desculpas. Me beijou o corpo todo, dizendo “Rosé, Rosé”. Perguntei:
— Quem está vindo aí?
— Você não entenderia.
— Quem é?
— É a minha consciência.
— O quê?
— É a minha morte.
— O quê?
— É uma parente.

5

Seu nome era Quitéria. Uma condessa, também aparentada com os Bourbons. E eu a conhecera. Na tarde antes da nossa fuga de Paris, apesar das instruções para não aparecer na sala, interrompera uma conversa dela com Dolores. As duas tomavam chá. Ela fizera um bico de espanto ao me ver, antes de perguntar:
— E este anjo, quem é?
Lo contara que tinha me adotado. Que eu era um brasileirinho que ela estava civilizando. Que eu estava aprendendo espanhol e francês e já conhecia os poetas.
— Venha dar um beijo na sua tia Quitéria — comandara a visitante, cujo rosto parecia coberto com cal, o que realçava os olhos contornados com tinta preta. Ela era mais velha do que a minha Lo. Seu perfume era doce.
Depois de um beijo em cada face ela mexera nos meus cabelos encaracolados.
— Mas ele é uma preciosidade! — exclamara.
Eu pensara em subir no seu colo e cheirá-la mais de perto, mas Lo me mandara sair da sala e voltar aos meus estudos. As declinações do espanhol me aguardavam.
— E é dela que nós estamos fugindo?
— Não estamos fugindo. Eu só não quero que ela nos encontre.
— Por quê?
— Você não entenderia.
— Por quê? — insisti.
Mas a Lo, mesmo que quisesse, não poderia responder. Tinha o meu pau na sua boca. Enquanto ela me chupava, pensei na Quitéria. Então a morte tinha um perfume doce...
No dia seguinte, partimos para Veneza. Outro primo arruinado, dono de um palacete em pior estado do que ele. Mais remendado do que o roupão com que nos recebeu na porta. Ele não reconheceu Dolores. Só enxergava com um olho, o outro era de um azul leitoso e morto. Ele e Dolores tiveram que refazer a árvore genealógica da família por várias gerações até encontrar um elo, enquanto o gondoleiro esperava para descarregar as malas e eu saltitava, tentando resistir à tentação de mijar no canal. Finalmente, a luz:
— Você é bisneta do conde Roblado!
— Isso!
— Mas eu não tenho onde hospedar vocês. Minha casa está caindo aos pedaços. Talvez desmorone esta noite.
— Nós podemos dormir em qualquer canto. É só até encontrarmos outro lugar para ficar.
O primo hesitou. Seu olho bom piscou várias vezes. O outro nunca fechava. Finalmente, concordou.
— Está bien...
— Viva! — gritou o gondoleiro.
— Viva! — gritei eu.

6

As paredes internas do palacete eram cobertas de afrescos desbotados, cenas da mitologia grega. O novo primo, que se chamava, apropriadamente, Moffo, nos mostrou onde poderíamos ficar. Pelo menos tinha uma cama com dossel. Mas mãe e filho teriam que dormir juntos. O chão de ladrilhos era ondulado e toda a casa tremia quando passava um barco a motor no canal em frente. O palacete talvez não resistisse mesmo a mais uma noite. Na biblioteca em que Moffo passava os dias e as noites, os livros tinham transbordado das estantes e cobriam o chão. Moffo lia com dificuldade, porque tinha só um olho bom e porque a umidade colara as páginas de todos os livros. “Ainda bem que sei o meu Virgílio de cor”, nos disse, e depois, abrindo os braços no meio da biblioteca, com livros pelo joelho, seu roupão desfazendo-se para mostrar ceroulas manchadas de urina, declarou, rindo sem dentes: “Isto é uma metáfora do fim da Europa.” Moffo tinha uma empregada de idade indefinida chamada Gabina e dias mais tarde, quando entrei na cozinha e o flagrei apalpando as nádegas da Gabina enquanto ela cozinhava sem lhe dar atenção, ele disse “Isto também é uma metáfora. Aristocracia decadente abusando da criadagem” e me piscou o olho bom, sem largar as nádegas da Gabina. Nas duas semanas em que ficamos com Moffo, Dolores se controlou e não me tocou nem uma vez, nem para me dar banho, temendo que um dos seus orgasmos ruidosos fizesse finalmente ruir o palacete, talvez Veneza inteira. Moffo dormia numa poltrona de couro rachado, na biblioteca, bebendo conhaque até vir o sono. Dizia que quando a casa ruísse pretendia naufragar junto com seus livros. Uma noite o conhaque o impeliu, não para o sono mas para a nossa cama, onde passou a apalpar minhas nádegas, sendo improvável que me confundisse com a Gabina. Dolores acordou, viu o que estava acontecendo e gritou “Por Dios!” Moffo fez “sshh” com um dedo na frente da boca e um gesto circular com a outra mão que mostrava sua preocupação com o efeito de um escândalo na estrutura da casa, disse uma frase em latim e saiu do quarto arrastando os chinelos. No dia seguinte, Lo decidiu que iríamos embora.

7

Para Roma. Onde as civilizações arruinadas se empilham, uma metáfora em cima da outra. Lo descobrira que a condessa Nicoletta Fanfani, mãe do seu desafortunado marido Enrico, ainda vivia. Não sabia como a condessa a receberia. Lo ficara com todo o dinheiro que Enrico roubara do Vaticano e a condessa ficara com suas propriedades, que fora obrigada a vender uma a uma para se sustentar depois da guerra. Morava num pequeno apartamento no Trastevere cercada de gatos. Tinha, certamente, mais de 90 anos e mais de trinta gatos. Pediu que não espantássemos os gatos de cima dos sofás da sala. Os gatos estavam muito irritados, contou. Desconfiava que tramavam a sua morte e em breve a atacariam e comeriam. Também desconfiava que os gatos fossem comunistas. Ficamos de pé enquanto Lo e a condessa conversaram, lembrando Roma do tempo da guerra. “Tenho uma memória prodigiosa”, dissera a condessa. “Me lembro de tudo. Me lembro até do tempo dos césares.” Mas as duas já estavam conversando por mais de uma hora quando ela perguntou a Lo:
— Quem é você, mesmo?
— Dolores. Viúva do Enrico.
— Aaaah... — disse a condessa. E depois: — Quem é Enrico?
— Seu filho. O que morreu há 15 anos.
— Na guerra? Pela pátria? Pelo Duce?
— Mordida de aranha.
— Aaaah...
E de repente a condessa se lembrou. Seu rosto se fechou como um punho. Perguntou:
— E o que você quer?
— Eu e meu filho estamos procurando um lugar para ficar em Roma.
A condessa me examinou de cima a baixo.
— Esse negro é meu neto?
— Não. É adotado.
Eu estava sorrindo angelicalmente, mas a velha não sorriu. O punho não se desfez.
— Aqui vocês não podem ficar. Os gatos não aceitariam.
Mas Nicoletta Fanfani vendera uma das suas propriedades a um primo, Ludovico, que a transformara num hotel. O hotel não era luxuoso, mas Ludovico, que ainda não pagara tudo o que devia a Nicoletta, nos hospedaria e nos daria um desconto. Um telefonema rápido de Nicoletta acertou tudo. O hotel ficava ali perto. Não precisaríamos caminhar muito com nossas malas.
Lo agradeceu a sua ex-sogra mas esta se recusou a apertar sua mão na despedida. Fez apenas um gesto que nos enxotava da sua vida para sempre. Quando saímos, os gatos a rodeavam, como se sitiassem um forte na iminência do ataque final.

8

O hotel não era luxuoso, mas era simpático. Ludovico ficara surdo na guerra. Tinha dentes amarelos e um grande bigode com as pontas viradas para cima, e beijou a mão de Dolores com uma mesura exagerada. Sim, poderíamos ficar o tempo que quiséssemos, desde que lhe pagássemos por semana. Nosso quarto era pequeno e compartilhávamos um banheiro com os outros hóspedes do andar, mas havia glicínias florescendo na nossa janela, e eu acordava todos os dias com o sol na cara, e com alguém cantando na calçada. A cama era estreita e dormíamos abraçados. Fomos felizes em Roma, eu e Dolores. Nós nos amávamos. É preciso repetir isto, leitor, leitora. Esta é uma história de amor. Sei que o amor de uma mulher de quase 40 por um menino de 12 afronta todas as convenções. Sei que eu desafiava as leis naturais e os parâmetros de gosto e libido da minha idade, enquanto ela desafiava vários códigos penais. Mas nenhum epíteto que ouvíssemos — vergonha! perversão grotesca! — diminuiria aquela verdade: a nossa era uma história de amor. Eu a traí, sim, mas o que se pode esperar de uma criança? Naqueles dias em Roma, entre as glicínias, vivemos a nossa paixão ao extremo, mesmo numa cama estreita que guinchava, a poucos passos de um encardido banheiro coletivo. Não era uma paixão sem culpa. Sua consciência perseguia a minha Lo na figura, que eu ainda mal compreendia, da bruxa Quitéria. Que poder teria aquela mulher com a cara caiada sobre Dolores Fuertes y Obregon, a ponto de fazê-la abandonar as alamedas do Bois de Boulogne por onde cavalgava como uma infanta, e suas banheiras em forma de cisne, para fugir com um filho falso por uma Europa convalescente? Mas Lo esquecia Quitéria, os ruídos da cama, o cheiro do banheiro e o mundo lá fora nos meus braços, todas as noites. Devido à sua surdez, só Ludovico, no hotel, não ouvia os sons orgiásticos e os guinchos da cama que emanavam do nosso quarto e da nossa paixão, por isso insistia em convidar Dolores para sair com ele. Podiam deixar o “bambino” com as camareiras e ir jantar, ou a um cinema. Dolores sorria, e se desculpava. Não era possível. O “bambino” não dormia sem a presença da mãe.

9

Nosso idílio romano não durou muito. Um dia, quando voltávamos para o hotel de uma feira de rua, Ludovico nos disse que uma “signora” andara nos procurando. Uma senhora? Dolores pediu que Ludovico a descrevesse. Ludovico não ouviu o pedido. Dolores teve que gritar. Mas eu não precisava ouvir a descrição do Ludovico. Ao entrar no hotel sentira um cheiro conhecido de perfume. Um perfume doce. O perfume da morte.
Como Quitéria nos encontrara? Foi a pergunta que Lo se fez várias vezes, enquanto enchia as malas. Ignorando as perguntas insistentes que eu fazia: o que Quitéria queria de nós? Por que estávamos fugindo dela? Lo me deixou no quarto de hotel com ordens para não sair de lá e não receber ninguém e foi tratar da etapa seguinte da nossa fuga. Ludovico acompanhou nossa saída do hotel com um agitado balé de consternação. Por que estávamos indo embora? Ele fizera alguma coisa? Era culpa dele? Algum problema com o encanamento? O que deveria dizer à “signora” que nos procurara, quando ela voltasse? Lo gritou no seu ouvido: “Diga que nos afogamos no Tevere!” “O quê?” “Não diga nada!” “O quê?” Lo continuou ignorando minhas perguntas no trem para Milão, depois no trem que atravessou a Suíça, até nossa chegada ao sombrio quarto de um hotel com um comprido nome alemão que seria nosso esconderijo em Viena — enquanto Quitéria não nos encontrasse.

10

Nos nossos primeiros dias em Viena, Lo me proibiu de sair do quarto. Ela mesma só saía do hotel atrás de um banco que a ajudasse a acessar sua conta em Paris. Não tinha parentes ou conhecidos em Viena e o dinheiro que trouxera na fuga — o nosso dinheiro — começava a rarear. Não teríamos o suficiente para pagar o hotel, se a penúria continuasse. Nos enchíamos de comida no café da manhã, que estava incluído na diária, e passávamos o resto do dia sem comer. Um martírio especialmente cruel em Viena, uma cidade feita de pão de ló e chantili. Finalmente Lo encontrou um banco disposto a lhe abrir uma linha de crédito até que chegasse dinheiro de Paris e comemoramos com um jantar no Hotel Sacher, onde comi três grandes fatias do sacher-torte. Lo se encantou com a minha boca lambuzada de chocolate e disse que mal podia esperar para voltarmos à nossa cama no hotel. Passamos dias, semanas, nos lambuzando mutuamente em Viena enquanto o medo de que Quitéria nos encontrasse outra vez amainava. Depois de um mês fui liberado para sair sozinho do hotel. Com dinheiro no bolso — o que Dolores me dava, complementado pelo que eu roubava da sua bolsa — conheci todas as confeitarias num raio de um quilômetro do hotel. Foi quando comecei a engordar.

11

Lo finalmente me contou quem era Quitéria e por que ela estava nos perseguindo. Eram primas e tinham dormido no mesmo quarto durante dois anos no internato em Genebra. Quitéria era religiosa. Forçava Dolores a rezar com ela todas as noites e a pedir a Deus que as salvasse dos pecados da carne. Mas dizia que ter um corpo já era um pecado irremissível. Contara a Dolores que Jesus Cristo estava sempre com ela. Uma noite, com as luzes já apagadas, Lo perguntara a Quitéria se Jesus Cristo estava com ela na cama, naquele momento. Quitéria respondera “Sim, ele está aqui. Posso senti-lo ao meu lado. Sinto seu hálito morno no meu rosto. Poderia abraçá-lo, se quisesse. Ele está aqui. Ele está aqui!”. Lo perguntara se também poderia ter Jesus Cristo na sua cama e Quitéria respondera que não. Ela era muito bonita, já tinha seios e seus seios eram muito brancos, Jesus Cristo não se deitaria sozinho com ela. Mas ela poderia ir para a cama da Quitéria, onde as duas aqueceriam Jesus e se aqueceriam. Quitéria jurara que salvaria Dolores da danação de ter um corpo, que nunca a deixaria a sós nem com Deus nem com o Demônio para tentá-los, e que guiaria seus passos por entre os alçapões do mundo. E tinham passado a dormir juntas todas as noites. Depois do internato viera a separação. A família de Dolores a levara para Roma, a de Quitéria emigrara para a Venezuela. De onde Quitéria mandava cartas quase diárias para a prima, alternando advertências sobre as tentações da carne e a importância de seguir todos os mandamentos da Igreja e declarações de amor. Uma vez mandara uma carta apenas com um coração trespassado por uma cruz, pintado com o que Lo julgara ser seu sangue menstrual. Quitéria voltara da Venezuela para a Espanha com a família e entrara numa organização religiosa ultraconservadora, o que não impedia que andasse sempre bem maquiada, com os olhos cercados de preto, e perfumada. Lo me contou que, depois que eu saíra da sala, quando Quitéria nos visitara em Paris, ela repetira:
— Ele é um anjo, um anjo.
E acrescentara:
— Do Demônio. Preciso livrá-la dele.
Minha Lo tentara convencer Quitéria que eu era apenas seu filho adotivo mas Quitéria insistira que teria que me tirar das suas mãos, que eu era a sua perdição. Que, com seu nome e sua tradição, Lo tinha a obrigação de defender a Europa cristã, mesmo que fosse apenas com o gesto simbólico de fechar as pernas.

12

Um dia, comendo um sorvete multicolor, sozinho numa das confeitarias mais ornamentadas de Viena, vi refletida num dos espelhos emoldurados em ouro... Não. Não podia ser. Mas era. A prima Quitéria! Antes que eu pudesse me esconder embaixo da mesa com tampo de mármore e pé de bronze contorcido ela estava do meu lado, e gritou:
— Rosé Rosé! Como você engordou!
Os beijos estalaram nas minhas bochechas indefesas. Não, ela não estava nos perseguindo. Que ideia. Aquilo era uma coincidência incrível. Ela estava em Viena para uma convenção da organização católica internacional a que pertencia, nunca sonhara encontrar-nos daquele jeito, por acaso. E por sinal, onde estava Dolores?
Dei o nome do nosso hotel errado. Quitéria sentou-se à minha frente, joelho a joelho, e pegou uma das minhas mãos entre as suas.
— Você é um anjo, um anjo.
E então me convidou para ir até o seu hotel, que ficava ali perto. Imediatamente pensei: ela não vai querer sexo com um anjo do Demônio. Portanto, vai me matar. Vai me sufocar com um travesseiro e depois irá atrás da Lo. Fui mais rápido. Quando chegamos ao seu quarto de hotel atirei-a em cima da cama e tapei seu rosto com um travesseiro. Deitei-me em cima do travesseiro e assim fiquei até que ela parasse de espernear. É preciso entender, leitor, leitora, que se eu não estivesse tão gordo não teria conseguido matá-la. As confeitarias de Viena tinham me preparado para aquele momento. Quitéria devia seu destino à sacher-torte. Quando levantei o travesseiro vi que o rosto dela era um borrão só, contorcido, rímel, batom e cal misturados. E o perfume doce aumentara com sua morte. O perfume impregnava o quarto todo. O perfume me seguiu quando saí do hotel e me envolveu como um halo quando voltei à confeitaria e pedi um apfelstrudel com creme.

13

Não tive tempo de contar a Lo que estávamos livres de Quitéria para sempre. Que matara a sua consciência e a sua morte. Que podíamos voltar para Paris, para Roma, para onde quiséssemos, sem medo. Lo não tinha paciência para ler os jornais em alemão e nunca ficaria sabendo que uma delegada espanhola ao Congresso da Regeneração em Cristo fora encontrada morta no seu quarto de hotel, aparentemente asfixiada. Continuaríamos em Viena. Mas, leitor, leitora, nosso amor não era mais o mesmo. Eu engordara demais. Não era mais um baianinho mimoso. O Zé Maria que dançava na praia de Porto Seguro desaparecera sob camadas de boa vida. Dolores não me chupava mais, não tinha mais seus orgasmos ruidosos, gritando “Rosé, Rosé!”. Mas a verdadeira causa da nossa separação, o meu pecado imperdoável, foi fazer 14 anos. Naquela noite, quando voltei para o nosso quarto, ela fingia que dormia. Cochichei no seu ouvido “Dolores Fuertes de Barriga, você não me ama mais?” Ela continuou de olhos fechados. Insisti: “Lo, Lola, Lora...” E então ela roncou. Roncou! Um ronco exagerado, como o de um animal acuado para intimidar um predador. Minha senhora das dores me castigava por ter engordado e envelhecido. Foi o ronco que me fez decidir ir embora. De manhã, enquanto ela dormia, fiz minha mala em silêncio e peguei todo o dinheiro que encontrei no apartamento. E fugi, chorando. Se senti remorso por ter matado Quitéria, a nossa predadora? Não. Era ela ou eu. Às vezes ainda me lembro do seu rosto contorcido e suas cores misturadas como numa paleta. Mas me perdoei.

14

Dez anos depois eu estava morando no pequeno quarto que me deram na área de serviço do Hotel Splendid, em Montreux, Suíça, onde trabalhava como garçom. Estava com 24 anos. Tinha emagrecido, e começara a escrever, ainda sem saber bem por quê, esta minha história. Escrevia à mão e em português. Reaprendera a minha língua materna convivendo com os outros brasileiros do grupo Candombleu, do qual participei como ritmista e bailarino durante quatro anos, depois que voltei a Paris. Sim, bailarino. Junto com o português também recuperara alguns passos que fazia com Janaína nas areias de Porto Seguro. Antes e depois do Candombleu, fizera de tudo. Durante dez anos perambulara pela Europa, lavando chão, me prostituindo, fazendo literalmente de tudo. Nunca deixei para trás meu aparelho de som, meus discos e meus volumes de poesia. Para alguma coisa tinha servido a educação que Lo me dera, entre orgasmos. Acabara no restaurante do Splendid, num emprego que consegui porque era limpo e poliglota, embora desconfie que o cabelo encaracolado e os olhos verdes tenham ajudado. Eu fazia muito sucesso com as mulheres e não foram poucas as camareiras do hotel que bateram na minha porta no meio da noite, e entraram já tirando a camisola. Fiz amizade com um poeta russo chamado V.Sirin que morava no hotel com a esposa. Frequentemente, depois do almoço, quando a mulher dele ia dormir a sesta, ficávamos os dois à mesa, conversando em francês e bebendo o que restara do vinho, e ele já me convidara a acompanhá-lo na sua caça a borboletas na vizinhança do hotel. Ele era apaixonado por borboletas e xadrez. Infelizmente, eu não compartilhava das suas duas paixões, mas encontramos uma coisa em comum, que passou a dominar nossas conversas. Quando contei que estava escrevendo um livro sobre minha experiência com Dolores, ele arregalou os olhos e contou que tinha publicado um livro, usando um pseudônimo, que tratava de um assunto parecido, no seu caso o amor de um homem maduro por uma menina de 12 anos. Era o sucesso comercial do livro que lhe permitia morar numa suíte do Splendid e tomar uma garrafa de Cheval Blanc por dia. Talvez o meu livro tivesse o mesmo sucesso, com as mesmas recompensas. Lamentei que estivesse escrevendo em português, senão lhe daria o manuscrito para comentar. Ele disse, simpaticamente, que iria esperar a tradução. E, enigmaticamente, que uma vez testara Camões com o pé e recuara, sem mergulhar.

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Eu conhecia o livro dele, que escandalizara meio mundo, de ouvir falar, mas não o tinha lido. Sirin não parecia muito disposto a comentar a reação provocada pelo livro. Ele era um poeta sério, um esteta, um cavalheiro, não era um pornógrafo. As pessoas não tinham entendido o livro, que compravam aos milhões pelas cenas eróticas que quase não havia. Perguntei se ele não concordava que nossas histórias eram histórias de amor. Ele concordou, mas depois se corrigiu. Amor, não. Obsessão. Amour fou. O livro dele era uma ficção, o meu seria uma autobiografia, mas os dois eram sobre o que ele chamava de uma patologia romântica, uma obsessão que transbordava de convenções morais e literárias, incompreendida e finalmente trágica. A minha história terminaria tragicamente? Respondi que eu recém-começara a escrevê-la e não sabia o seu fim. Decidi ali mesmo que leria o seu livro e talvez tomasse alguma coisa emprestada para o meu. Sua história era sobre o enlevo de um intelectual europeu por uma presa ainda malformada, simbolizando uma América em que a cultura europeia só sobrevivia como afetação. A minha era sobre o quê? Um anjo perdido, respondi. Ou pelo menos uma perdição, não estava bem clara de quem.
Ele comparava a literatura à lepidopterologia. Dizia que existem trilhões de personagens reais ou imaginários borboleteando pelo mundo à espera de um escritor que capture um espécime e o fixe numa história, como num estojo, com uma agulha. A agulha atravessa o personagem e o expõe, para a admiração, a estranheza ou o horror do mundo, para sempre. Lá estão, cada um no seu estojo eterno, Hamlet, Madame Bovary, Rascolnikov, Swann... Sirin reclamava que as borboletas dos arredores do Splendid eram comuns e que ainda não pegara nenhuma que merecesse ir para a sua coleção. Mas também nunca soubera de um personagem suíço que merecesse ser trespassado para a posteridade. Sirin repetia muito que as borboletas do Brasil eram maravilhosas. Devia ser para me agradar. Ou talvez para me convencer sutilmente a desistir da literatura e me dedicar a elas. Não sei.

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E, como não poderia deixar de ser... Um dia Lo apareceu no restaurante do Splendid. A princípio não a reconheci. Os dez anos tinham feito estragos. Ela estava acompanhada de um europeuzinho com uma franja loura colada na testa. Ele não tinha mais do que 12 anos e já olhava ao redor com um nojo de gerações. Pedi informações na recepção do hotel, para ter certeza de que não me enganara. Era ela. E enteado. Estava em Montreux para um torneio de equitação. Aproximei-me da mesa deles como se fosse encher os copos com água. Simulei surpresa, com um certo exagero.
— Dolores Fuertes de Barriga!
— Y Obregon — corrigiu ela.
Não parecia estar surpresa. Ou talvez não me reconhecera.
— Soy Rosé Rosé.
— Eu sei. Sente-se.
Procurei o gerente do restaurante com o olhar. Ele já reclamara do meu hábito de sentar à mesa com Sirin depois do almoço. Garçons do Splendid não deveriam confraternizar com os clientes. O gerente só não insistira na reprimenda porque também visitava o meu quarto no meio da noite, e também entrava já tirando a camisola. Sentei-me.
— Este é Dieter — disse Lo, apontando para o garoto, que me ofereceu uma mão lânguida para apertar. Resisti à tentação de lhe dar um pontapé por baixo da mesa.
— Ele já conhece todos os poetas franceses?
— Todos.
— Vocês vivem em Paris?
— Sim. Num apartamento. Vendi a casa.
— E as banheiras em forma de cisnes?
— Estão num depósito.
— Que fim levou a Quitéria?
— Você é que deve saber. Você fugiu com ela.
— Eu?!
— Você pensou que eu não mandaria investigar o seu misterioso desaparecimento em Viena? Você foi visto pela última vez saindo de uma confeitaria com a Quitéria. Um garoto gordo com uma mulher de cara branca.
— Não era eu.
— Era. Sempre imaginei o que Quitéria faria com você. Castrá-lo, provavelmente. Ela ainda está viva?
— Não sei. Não fugi de Viena com ela. Nunca mais a vi, depois daquela vez em sua casa. Em nossa casa. Só senti o seu perfume...
— Não tem importância. Faz tanto tempo.
— Dez anos.
— Dieter, coma os seus aspargos.
Inclinei-me para falar no ouvido da Lo.
— Lo, lembra das glicínias?
— As quê?
— As glicínias. Na janela do nosso hotel. Em Roma.
— Não.
Pronto, pensei. Terminou.
Mentalmente, atravessei-a com uma agulha.

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E passaram-se anos. Continuo no Splendid, onde hoje sou gerente do restaurante e trato os garçons com rigor. Nada de muita conversa com os clientes. Sirin e sua mulher já morreram. Li o seu livro e copiei algumas coisas, mas ainda não consegui publicar minha história, que passo o tempo todo retocando. Decidi que será um conto, ou um depoimento, uma confissão, sem a plumagem e as garras de um romance, como diria Sirin. Nunca mais vi a Lo. Ela tinha quase trinta anos mais do que eu, deve ter morrido. Ou então definha em algum asilo, esperando que a morte venha tirá-la para dançar. Meus cabelos encaracolados esbranquiçaram, minha próstata aumentou e ninguém mais visita meu quarto no meio da noite. Conclusão, leitor, leitora: nós podemos nos perdoar, mas a vida não nos perdoa.


- Luis Fernando Verissimo, no livro "Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos".  1ª ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
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