Melim-Meloso - João Guimarães Rosa

© Adélio Sarro

Melim-Meloso
(sua apresentação)

Nos tempos que não sei, pode ser até que ele venha ainda a existir. Das Cantigas de Serão, de João Barandão, tão apócrifas, surge, com efeito, uma vez:

Encontrei Melim-Meloso
fazendo ideia dos bois:
o que ele imagina em antes
vira a certeza depois.

Conto-me, muito, quando não seja, a simpática história de Melim-Meloso, filho das serras, intransitivo, deslizado, evadido do azar. Daria diversidade de estória a primeira-mão de suas governanças; e aventura. Eis, assim:

Melim-Meloso
amontado no seu baio:
foi comprar um chapéu novo,
só não gosta de trabalho.

Sombra de verdade, apenas. Ele trabalhava, em termos. E, o que sobre isso afirma, tira-se no bíblico e raia no evangélico: — Trabalho não é vergonha, é só uma maldição... Bismarques, o vendeirão, quis impingir-lhe chapéu antiquíssimo, fora-de-moda, que ninguém comprava. Melim-Meloso renegou dele, só sorrindo; se o regateou, foi com supras de amabilidades. Bismarques veio baixando o preço, até a um quase-nada. Melim-Meloso fechou a compra, botou na cabeça o chapéu — dando-lhe um arranjo — e o objeto se transformou, uma beleza, no se ver. Despeitificado, o Bismarques então abusou de tornar a agravar o preço. Melim-Meloso o refutou, delicado. Por fim, para não desgostar o outro, falou: concorde. Pagou, com uma nota nova, se disse ainda agradecido. Mas, em célere seguida, riu, às claras risadas. O Bismarques, enfiado, remirou a nota: meditou que ela podia ser falsa. Mas já tinha assumido. Com o que, Melim-Meloso logo propôs a humildade de aceitar de volta a nota, desde que com um rebate: que orçava, por acaso, justo no tanto aumentado depois no preço do chapéu. Bismarques se coçou e aprovou. Mas, como o ar de lá se tinha amornado, meio sem-ensejo, Melim-Meloso fez que lembrou, só suave, o talvez: que um copázio de vinho, pelo seguro, era o que tudo bem espairecia. O Bismarques serviu o vinho. Somente no encerrar, foi que viu que o convidador se dava de ser ele mesmo, para a salda das custas. Restou desenxavido; não mal-alegrado de todo. Melim-Meloso ganhara, às vazas, aquele chapéu de príncipe.
Ou, pois:

Melim-Meloso

amontado no pedrês:
foi à missa, chegou tarde,
só desfez o que não fez.

Melim-Meloso

amontado no murzelo:
uma nôiva em Santa-Rita,
outra nôiva no Curvelo.

Melim-Meloso

amontado no alazão:
— Veio ver minha senhora,
disto é que eu não gosto, não.

Duvide-se, divirja-se, objete-se. Padre Lausdéo, da Conceição-de-Cima, louvou e premiou Melim-Meloso, naquela domingação. A nôiva de Santa-Rita, Quirulina, era só por uma amizade emprestada. Maria Roméia, a nôiva no Curvelo, a ele ensinava apenas certas formas de ingratidão. E a mulher do Nhô Tampado notava-se como a feia das feias. São estas, aliás, para mais tarde, estórias de encompridar. Melim-Meloso, ipso, de si pouco fornecia:

Diz assim: Melim-Meloso,
não repete o seu dizer.
Perguntei: — coisa com coisa,
não quis nada responder.

Reportava-se: — Sou homem de todas as palavras! Mas gostava de guardar segredos; e aproveitava qualquer silêncio. Do mal que dele se dizia, tenha-se por exagerada, senão de todo inautêntica, à propala, a parla dessa afamação. O herói nunca foi conquistador, vagabundo, impostor, nem cigano exibidor de animais. Corra tanta incertidão por conta dos que tentaram ser inimigos dele: o Cantanha, Reumundo Bode, o Sem-Caráter, Pedro Pubo, o Alcatruz; o Cagamal e José Me-Seja. Melim-Meloso, mesmo, é que nunca foi inimigo de ninguém. Escutem-se, pois, à outra face da lenda, os seus amigos principais: Cristomiro, o Dandrá, José Infância, João Vero, Padrinho Salomão, Seo Tau, o Santelmo, Montalvões e Sosiano:

Melim-Meloso
amontado no quartau:
viaja para as cabeceiras,
procura o rio no vau.

Melim-Meloso
amontado no corcel:
porque é Melim-Meloso,
bebe fel e sente o mel.

Melim-Meloso

amontado no castanho:
— O que ganho, nunca perco,
o que perco sempre é ganho...

Diz assim: Melim-Meloso

só quer amar sem sofrer.
Errando sempre, para diante,
um acerta, sem saber.

Diz assim: Melim-Meloso

ouve “não”, sabe que é “sim”:
o sofrer vigia o gozo,
mas o gozo não tem fim.

Resumo. Serra do Sõe, verde em sua neblina, nesse frio fiel, que inclina os pássaros. Serra do Sõe e Serra da Maria-Pinta, que a redobra; serras e pessoas. O fazendeiro Pedro Matias, rico. Tio Lirino, com as sensatas barbas. Elesbão — o estrito boiadeiro. Lá, ressoam distâncias; e a alegria é pouca: é devagarinho, feito um gole. A serra faz saudade de outros lugares. Melim-Meloso possuía somente seus sete cavalos, comprados, um a um, com seus economizados. Seria para ir-se embora, com luxo, com eles. Melim-Meloso tinha pena de não ser órfão também do padrasto, com quem descombinava; porque o padrasto era prático de bronco, na desalegria, não avistava o sutil de viver, principalmente. Vai, um dia, Melim-Meloso não aguentou mais: — Faço de conta que este padrasto não existe, de jeito nenhum... — ele entendeu de obrar, com doçuras. Isto é: não via mais, nem em frente nem em mente, a pessoa existente do padrasto, para bem ou para mal. Procedeu. Aí, o padrasto teve a graça de morrer, subitamente, em paz; mas, deixando dívidas. Melim-Meloso se disse: — A vida são dívidas. A vida são coisas muito compridas. Para pagar esses deveres, teve de negociar seus cavalos, foi dispondo de um por um. Vendia um — chorava (o que seja: no figuradamente), mas com mágoas medidas. Queria mais ir-se embora, lá ele corria o risco de ficar mofino; salvava-o sua incompetência de tristeza. Mas o Elesbão desceu, para o Quipú, com boiada completada. Pedro Matias desceu, num lençol, na vara, carregado, para o cemitério-mor, no Adiante. Tio Lirino desceu com a tropa, tantos lotes de burros: rumo de sertões e ranchos. Melim-Meloso sentiu-se pronto: — Quando vi — adeus! — minha gente, vou de arrieiro — no formal...
Episódios. Mas Melim-Meloso fazia-se muito causador de invejas. Sofrer, até, ele sofria tão garboso, que lho invejavam. Sofria só sorrisos. Vai, pois, por qual-o-quê, quiseram vingar-se dele, disso. Os sujeitos que lhe tinham comprado os cavalos, compareceram na saída, para o afligir, cada qual montado no agora seu. Mas Melim-Meloso se riu, de pôr a cabeça para trás. Conforme pensou, tãoforme lhes falou: — O que vejo, na verdade, é que estes cavalos formosos continuam sendo meus. Por prova, é que vocês tiveram de trazer todos eles, para os meus olhos!
No que se diga, os invejantes não podiam naquilo achar razoável espécie. Mas, orabolas deles. Melim-Meloso pediu: — Me esperem amigos, só um pouquinho... Foi, veio, trouxe uma égua, luzente, quente. Os sete cavalos sendo todos pastores. Relinchou-se! Aí — que Melim-Meloso soltou de embora a égua: aqueles pulavam e escoiceavam, rasgalhando rinchos, mordendo o ar, e assim desembestaram os cavalos equivocados. Jogaram seus cavaleiros no chão. Só ficou em sela o João Vero, no preto. Os outros se estragaram um bocado, até um, o pior, o Cantanha, se machucou o bastante. Melim-Meloso somente sorriu, atencioso. Virou-se para o João Vero, lhe disse: — Você, se vê: que parece mestre cavaleiro! Prazido, com essas, o Vero conseguiu então admirar Melim-Meloso; perguntou: Se ele se ia era por querer uma nôiva, coberta de ouro-e-prata, feito Dona Sancha? Melim-Meloso respondeu: — Não. É para, algum dia, tornar a adquirir, um a um estes cavalos... Com essas, o Vero começou a respeitar a decisão do outro. De repente, se determinou: ofereceu que cedia desde já o preto a Melim-Meloso, para ele pagar indenizado, quando possível... Melim-Meloso, aceitando, gentil, disse: — Você, se vê: que sabe dar, direito, sem prazo de cobrar. Deus dá é assim... Com essas, o Vero também se riu, por fora e por dentro. E Melim-Meloso disse um mais: — Para, em futura ocasião, eu pagar a você a quantia redonda, você me empresta agora o quebrado que falta, para poder logo arredondar... O Vero concedeu.
Melim-Meloso muito se despediu, da terra da Serra, à sua satisfação. Soltou as rédeas para a Vila, ia levar o caminho até lá. Saiu com os pés na aurora, à fanfa, seu nariz bem alumiado. Era sujeito a morrer; por isso, queria antes dar uma vista no mundo, achar a fôrma do seu pé. Sobre o que, o Vero ainda veio com ele, e com a tropa, por um trecho, conversavam prezadamente — o Vero conseguira começar a querer-bem a ele.
E chegou-se, de caminho, na fazenda Atravessada, antes de chegar-se ao próprio fim, que era na Conceição-de-Baixo. Nessa fazenda, reinava, na noite, a furupa de uma grande festa — de casamento ou batizado. Melim-Meloso apeou lá sem espera de agrados, não conhecendo ninguém. Ora vez, ali se deram várias coisas, ele com elas. Porém, são para outra narração; convém que sejam. A vida de Melim-Meloso nunca se acaba. Ao que, na voz das violas, segundo o seguinte:

Conte-se a estória de Melim-Meloso
sempre sem sossego, sempre com repouso,
vivo por inteiro, possuindo amor:
Melim-Meloso, ao vosso dispor...



 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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Veja aqui Biobibliografia do autor:

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