Tresaventura - João Guimarães Rosa

Colheita de Arroz, de Portinari (1957)

... no não perdido,
no além-passado...

Mnemônicum.

Tresaventura

Terra de arroz. Tendo ali vestígios de pré-idade? A menina, mão na boca, manhosos olhos de tinta clara, as pupilas bem pingadas. Só a tratavam de Dja ou Iaí, menininha, de babar em travesseiro. Sua presença não dominava 1/1.000 do ambiente. De ser, se inventava: — “Maria Euzinha...” — voz menor que uma trova, os cabelos cacho, cacho.
Ficava no intato mundo das ideiazinhas ainda. Esquivava o movimento em torno, gente e perturbação, o bramido do lar. — “Eu não sei o quê.” Suspirinhos. Sabia rezar entusiasmada e recordar o que valia. A abelha é que é filha do mel; os segredos a guardavam.
Via-se e vivia de desusado modo, inquieta como um nariz de coelhinho, feliz feito narina que hábil dedo esgravata. — “Dó de mim, meu sono?” — gostava, destriste, de recuar do acordado.
Antes e antes, queria o arrozal, o grande verde com luz, depois amarelo ondeante, o ar que lá. Um arrozal é sempre belo. Sonhava-o lembrado, de trazer admiração, de admirar amor.
Lá não a levavam: longe de casa, terra baixa e molhada, do mato onde árvores se assombram — ralhavam-lhe; e perigos, o brejo em brenha — vento e nada, no ir a ver...
Não dava fé; não o coração. Segredava-se, da caixeta de uma sabedoria: o arrozal lindo, por cima do mundo, no miolo da luz — o relembramento.
Tapava os olhos com três dedos — unhas pintadas de mentirinhas brancas — as faces de furta-flor. Precisava de ir, sem limites. Não cedia desse desejo, de quem me dera. Opunha o de-cor de si, fervor sem miudeio, contra tintim de tintim.
— “O ror...” — falava o irmão, da parte do mundo trabalhoso. Tinha de ali agitar os pássaros, mixordiosos, que tudo espevitam, a tremeter-se, faziam o demônio. Pior, o vira-bosta. Nem se davam do espantalho...
Dia fechava-se sob o instante: careta por laranja azeda. Negava ver. Todo negava o espantalho — de amordaçar os passarinhos, que eram só do céu, seus alicercinhos. Rezava aquilo. O passarinho que vem, que vem, para se pousar no ninho, parece que abrevia até o tamanho das asas... Devia fazer o ninho no bolso velho do espantalho!
— “A água é feia, quente, choca, dá febre, com lodo de meio palmo...”
Mas: — “Não-me, não!” — ela repetia, no descer dos cílios, ao narizinho de rebeldias. Renegava. Reza-e-rezava. A água fria, clara, dada da luz, viva igual à sede da gente... Até o sol nela se refrescava.
— “Tem o jararacuçu, a urutu-boi...” — que picavam. O sapo, mansinho de morte, a cobra chupava-o com os olhos, enfeitiço: e bote e nhaque...
Iaí psiquepiscava. Arrenegava. Apagava aquilo: avesso, antojo. Sapos, cobras, rãs, eram para ser de enfeite, de paz, sem amalucamentos, do modo são, figuradio. E ria que rezava.
Sempre a ver, rever em ideia o arrozal, inquietinha, dada à doença de crescer. — “Hei-de, hei-de, que vou!” — agora mesmo e logo, enquanto o gato se lambia. Saíra o dia, a lápis vermelho — pipocas de liberdade. Soltou-se Iaí, Dia, de rompida, à manhã belfazeja, quando o gato se englobava.
Sus, passou a grande abóbora amarela, os sisudos porcos, os cajus, nus, o pato do bico chato, o pato com a peninha no bico, a flor que parecia flor, outras flores que para cima pulavam, as plantas idiotas, o cão, seus dislates. Virou para um lado, para o outro, para o outro — lépida, indecisa, decisa. Tomou direitidão. Vinha um vento vividinho, ela era mimo adejo de ir com intento.
Os pássaros? Na fina pressa, não os via, o passarinho cala-se por astúcia e arte. Trabalhavam catando o de comer, não tinham folga para festejo. Fingiam que não a abençoavam?
E eis que a água! A poça de água cor de doce-de-leite, grossa, suja, mas nela seu rosto limpo límpido se formava. A água era a mãe-d’água.
Aqui o caminho revira — no chão florinhas em frol — dali a estrada vê a montanha. Iaí pegou do ar um chamado: de ninguém, mais veloz que uma voz, ziguezagues de pensamento. Olhou para trás, não-sei-por-quê, à indominada surpresa, de pôr prontos olhos.
O mal-assombro! Uma cobra, grande, com um sapo na boca, estrebuchado... os dois, marrons, da cor da terra. O sapo quase já todo engolido, aos porpuxos: só se via dele a traseirinha com uma perna espichada para trás...
Dja tornou sobre si, de trabuz, por pau ou pedra, cuspiu na cobra. Atirou-lhe uma pedrada paleolítica, veloz como o amor. Aquilo desconcebeu-se. O círculo ab-rupto, o deslance: a cobra largara o sapo, e fugia-se assaz, às moitas folhuscas, lefe-lefe-lhepte, como mais as boas cobras fazem. De outro lado, o sapo, na relvagem, a rojo se safando, só até com pouquinho pontinho de sangue, sobrevivo. O sapo tinha pedido socorro? Sapos rezam também — por força, hão-de! O sapo rezara.
Djaiaí, sustou-se e palpou-se — só a violência do coração bater. A mãe, de lá gritando, brava ralhava. Volveu. Travestia o garbo tímido, já de perninhas para casa.
E o arrozal não chegara a ver, lugar tão vistoso: neblinuvens. — “A bela coisa!” — mais e mais, se disse, de devoção, maiormente instruída.
Disse ao irmão, que só zombava: — “Você não é você, e eu queria falar com você...” — Maria Euzinha.
Ia dali a pouco adormecer — “Devagar, meu sono...” — dona em mãozinha de chave dourada, entre os gradis de ouro da alegria.

 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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