Sobre o vento noroeste - Rubem Braga

A Ventania, de Anita Malfatti (1915-1917)

Sobre o vento noroeste

Dormis; mas em vosso sono há um ranger de folhas secas; e sentis também a boca seca e na garganta uma fina, indefinível areia. Ora pois, saiamos, é o Noroeste que se ergueu. Em Santos é o vento da neurastenia; aqui não é tanto. Mas vinde comigo e vos mostrarei não somente mar de desorientadas correntes, e as árvores assanhadas e as esquinas tidas de lufadas de poeira, depois de vagarosos bafos de calor, como se visíveis bolas de ar quente rolassem pela calçada. Mostrarei mais coisas, inclusive esta janela que sempre é tão sossegada, tão acostumada a se rir e fechar pela mão humana, e agora bate desesperada, com uma espécie raiva. Notai esta moça loura de pele fina e rosada. Perdeu a fragrância, á avermelhada e um pouco áspera; nesta senhora morena de pele seca surgem finíssimas rugas que nunca houve. E todas cerram um pouco os olhos e têm os lábios secos; e se inquietam não apenas pela poeira como porque o vento lhes bate nos cabelos. Adeus, calor sereno, adeus, frio excitante, e bom ar um pouco úmido e macio; vivemos em temperaturas desiguais e a saliva seca em nossa boca. Perdemos o ritmo, porque a força do vento varia de zero a rajada, e se quebrando pelas esquinas, assim desigual, ora se detém, ora se choca consigo mesmo, numa sarabanda de folhas. Acaso rodopiaremos subitamente alegres, ou andaremos nervosos cara ao vento ou aflitos nos deteremos de mãos nos olhos? Sim, poderes tomar um banho e fechar tudo. Mas dentro do quarto fechado sentiremos um calor desigual e uma pressão oscilante, como se invisíveis correntes atravessassem as paredes.
Ah, bem sei, estamos vivendo tempos inquietos e não faz mal que soprem ventos inquietantes sobre a terra desde que já sopram na alma dos homens.
E se na verdade não somos pescadores nem aviadores, que temos a ver com o vento? Ele não para o ônibus, não piora nem melhora o bife restaurante, não ofende nossos horários civis. Sim, mas podíamos alegar perante as autoridades que esse vento desgosta as flores; e é preciso protegê-las. Ao menos, com os estudantes, peçamos um abatimento de 50 por cento no número de folhas secas que rangem dentro de nós. Se o governo não tomar providências, esse vento invadirá as casas de luxo, inclusive as lojas de antiguidade, e quebrará vasos de porcelana da dinastia Ming. Como viver sem esses vasos de porcelana da dinastia Ming? leitor, não creiais que eu tenha algum em casa; suponho que eles ficam melhor nas próprias lojas onde são vendidos e colocados nas vitrines. Alguém os compra? Sempre há muitos; parece que a dinastia Ming muito trabalhadora e passava o tempo todo a fazer vasos. Mas devemos evitar prejuízos ao comércio honrado, que paga impostos; mesmo porque em caso contrário virá a Polícia e então será impossível manter a ordem. Precisamos de ordem! Não aquela com grande, que é revista católica ou delegacia de Polícia ou legenda de bandeira. Precisamos da ordem vulgar, a mansa ordem da vida, eis aqui: torneiras com água, açougues com carne, padarias com pão, pão com manteiga, açucareiros com açúcar, veículos com espaço, mulheres com sorri e até mesmo, por que não, claras risadas matinais e por que não também vespertinas, e mesmo digamos noturnas. Risadas de mulheres... Mas hoje em dia as senhoras e senhorinhas andam cheiasde problemas não sentimentais; pleiteiam coisas; falam coisas; até mesmo fazem coisas; e acabam parecidas com coisas, ou com falta de coisas, quando no fundo sabemos que são seres especiais, delicadíssimos e cheios de um doce mistério.
Que fazer? Sim, naturalmente precisamos mudar de chefe de Polícia; mas logo em seguida, ou concomitantemente, cessar esse vento Noroeste. Estão falando em "clima de confiança". Sei; com Noroeste!
Ah, sopra, vento, atiça as fagulhas; anda; vá; torce-te, vento; nas esquinas; dá lufadas contra o prédio de apartamento, tira o zinco da favela, joga cisco no olho da jovem datilografa, irrita os nervos do dentista que extrai um nervo, dá um tapa de folha seca na cara daquele senhor. Venham lufadas e poeira: fique perigoso o mar e inquietante a vida sobre a terra, e tenhamos sol amarelo e lua fosca, e garganta seca. Todos os telefones em comunicação; mas todos, todos, fazendo quem-quem-quem até enjoar. Os sonâmbulos acordam cansadíssimos; pois é o vento Noroeste; a empregada perde o cartão de racionamento, o funcionário o ponto, o rapaz o dinheiro, o homem do escritório o documento, o estrangeiro o passaporte, o professor a caneta-tinteiro, o autotransporte a direção o atropelado as pernas, a mocinha a vergonha, o amante a chave, a mulher o dinheiro que gastou no penteado, o mundo a graça, e a mãe a paciência com esses meninos que estão impossíveis, impossíveis, açoitados pelo vento Noroeste, carregado de germes de espírito de porco em pó. Que voe o pó; não adianta defesa; ao pó voltaremos, que somos pó, não mais.
Todas as flores terão as pétalas logo murchas, ressecadas; seque também o úmido beijo de amor; é o Noroeste, é o Noroeste, não há como lutar contra o Noroeste, embora eu lute bravamente com esta crônica seca na mão, ainda que os tipos da máquina estalem sobre folhas secas. Estou cansado.

Dezembro, 1946

— Rubem Braga, no livro “200 crônicas escolhidas”. Rio de Janeiro: Record, 1986.
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