Três relógios e uma lua cheia - Ondjaki

Ilustração: © Megan Duncanson

três relógios e uma lua cheia

Se a lua brilhasse um pouco mais a noite correria o risco de definhar, perderia a sua aparência noturna. Estava lua cheíssima.
O combinado era chegar de noite, como sempre. A impaciência tomou conta de Frida quando já tinha tomado o banho perfumado, posto a colônia masculina que usava há anos — desde que o pai falecera —, penteado o cabelo preto, espesso, belo. Escolheu uma toalha amarelo-torrada. Pôs pratos diferentes, dois apenas. Copos altos, mas não muito. Foi à varanda, olhou a lua. Alta, acordada, alva. Alcançou flores secas, cheirou-as, colocou-as desordenadamente sobre a mesa que era pequena. A sala encheu-se de imediato de um odor aveludado, daqueles a que usa chamar-se sugestivo.
A noite invadiu a sala.
Existiam três relógios na sala, pequenos, antigos, funcionais. Diz-se existiam porque Frida cria na existência deles. Quase os amava. Marcavam os três onze horas e catorze minutos. Ara estava simplesmente atrasada, mas Frida considerava-a já ausente. Abriu o congelador, a gaveta, a garrafa de vinho. Bebeu. Bebeu um pouco mais. Quase se acalmou. Foi ao quarto, pegou num caderno amarelo e leu: hoje descobri que mais do que amar-te, preciso de ti para ser feliz. Hoje descobri que o encontro que ansiava há anos já aconteceu... Hoje penso em ti e sorrio, não porque és mulher, não porque és bela, mas simplesmente porque te encontrei. Quando durmo já não penso em ti. Penso em ti quando acordo. As mãos cobriram o rosto úmido. Frida emocionava-se nas esperas mais do que na vivência dos momentos. Era assim.
Evitou estar quieta. Fechou o caderno; cheirou-o. Parecia uma gatinha com os seus dedos lânguidos acariciando um simples caderno que nas suas mãos ganhava vida, odor, presença. Procurou velas, foi buscá-las ao quarto. Entrou no antro do amor, onde os colchões — sobrepostos — repousavam desarrumados e vermelhos ao pé de mantas, cobertores, almofadas, panos, candeeiros minúsculos, velas e anéis espalhados por todo lado. Levou somente as velas para a sala, deixando a cueca no quarto. Embrulhou-se num pano longo, baço, e nele, nua, foi para a sala. Os relógios tinham todos mudado os minutos. A campainha não tocava.
Frida queria deixar-se adormecer, esquecer por via do sono e do sonho que o seu corpo pedia a presença de Ara. A janela estava aberta. A lua cheia e linda — porque se haviam passado vinte e oito dias desde a última lua cheia, e porque ela fora sempre linda. Sem Frida saber, Ara vinha a caminho.
Quando a campainha tocou, Frida sonhava que adormecera na sala com a mesa posta, com as velas acesas gastando-se tanto que a chama se aproximava da carpete, e que enquanto ela dormia profundamente a campainha tocava duas vezes, suaves e certeiras. Quando espreitou pelo buraco das visitas, Ara, ao sentir-se espreitada, sorriu. Na reduzida visão, via-se Ara num vestido negro, comprido mas leve. Tinha o corpo delgado, eroticamente insinuante, um sorriso fácil, uma boca pequena. E trazia os seios perfumados.
Frida nada disse. Abriu a porta rapidamente, abraçou-a, olhou-a de longe sem deixar de lhe tocar com os braços, o olhar, o pensamento já aveludado. Ara diminuía o sorriso mas não sabia cessá-lo. Estavam ambas emocionadas. Ara voltou a abrir o sorriso quando tirou do braço de Frida o caderno amarelo que fora dela. Sem dizer absolutamente nada, Frida fechou a porta, pegou na mão de Ara, beijou-a. Tocou a boca de Ara, beijou-a, descontrolando-a. Frida tinha o dom de transformar a ansiedade em manuseamento erótico. Ara deixou-se beijar, sacudiu os cabelos de Frida, tomou conta do beijo, do abraço, da força do momento, do odor das bocas, do tocar e reencontrar de mãos e sexos. Ara não se despiu. Só se despia para tomar banho ou dormir sozinha.
Ainda não tinham feito uso de palavras quando se sentaram à mesa. No olhar de Ara havia um resto de saudade e a quentura do sexo. Frida comia com pouco apetite, tocando o pé de Ara. Sem ser romântica, a lua continuava — branca e erótica — ao alto da noite e da janela.
Ara olhou os três relógios empurradores de tempo. Sorriu. Estavam os três parados na mesma hora, nos mesmos minutos: eram dez para a meia-noite quando os três relógios pararam de avançar.

- Ondjaki, no livro "E se amanhã o medo". Coleção Ponta de Lança. Rio de Janeiro : Língua Geral, 2010.
.
Mais sobre o autor:


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Gostou? Deixe seu comentário.