Antiperipléia - João Guimarães Rosa

© Isabelle Cochereau

Antiperipléia

-E o senhor quer me levar, distante, às cidades? Delongo. Tudo, para mim, é viagem de volta. Em qualquer ofício, não; o que eu até hoje tive, de que meio entendo e gosto, é ser guia de cego: esforço destino que me praz.
E vão me deixar ir? Em dês que o meu cego seô Tomé se passou, me vexam, por mim puxam, desconfiam discorrendo. Terra de injustiças.
Aqui paramos, os meses, por causa da mulher, por conta do falecido. Então, prendam a mulher, apertem com ela, o marido rufião, aí esses expliquem decerto o que nem se deu. A mulher, terrível. Delegado segure a alma do meu seô Tomé cego, se for capaz! Ele amasiava oculto com a mulher, Sa Justa, disso alguém teve ar? Eu provia e governava.
Mas não cismo como foi que ele no barranco se derrubou, que rendeu a alma. Decido? Divulgo: que as coisas começam deveras é por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas. Suspiros. Declaro, agora, defino. O senhor não me perguntou nada. Só dou resposta é ao que ninguém me perguntou.
Mulheres dôidas por ele, feito Jesus, por ter barba. Mas ele me perguntava, antes. — “É bonita?” Eu informava que sendo. Para mim, cada mulher vive formosa: as roxas, pardas e brancas, nas estradas. Dele gostavam — de um cego completo — por delas nem não poder devassar as formas nem feições? Seô Tomé se soberbava, lavava com sabão o corpo, pedia roupas de esmola. Eu, bebia.
Deandávamos, lugar a lugar, sem prevenir que já se estava no vir para aqui. Tenho culpas retapadas. A gente na rua, puxando cego, concerne que nem se avançar navegando — ao contrário de todos.
Patrão meu, não. Eu regia — ele acompanhava: pegando cada um em ponta do bordão, ocado com recheios de chumbo. Bebo, para impor em mim amores dos outros? Ralhavam, que, passado já de idade de guiar cego, à mão cuspida, mesmo eu assim, calungado, corcundado, cabeçudão. Povo sabe as ignorâncias. Então, eu, para também não ver, hei-de recordar o alheio? Bebo. Tomo, até me apagar, vejo outras coisas. Ele carecia de esperar, quando eu me perfazia bêbedo deitado. Me dava conselhos. Cego suplica de ver mais do que quem vê.
Tinha inveja de mim: não via que eu era defeituoso feioso. Tinha ódio, porque só eu podia ver essas inteiras mulheres, que dele gostavam! Puxar cego é feito tirar um condenado, o de nenhum poder, mas que adivinha mais do que a gente? Amigos. O roto só pode mesmo rir é do esfarrapado. Me dava vontade de leve nele montar, sem freio, sem espora...
A gente cá chegou, pois é. A mulher viu o cego, com modos de não-digas, com toda a força guardada. Essa era a diversa, muito fulana: feia, feia apesar dos poderes de Deus. Mas queria, fatal. Ajoelhou para me pedir, para eu ao meu Seô Cego mentir. Procedi. — “Esta é bonita, a mais!” — a ele afirmei, meus créditos. O cego amaciou a barba. Ele passeou mão nos braços dela, arrojo de usos. Soprou, quente como o olho da brasa. Tive nenhum remorso. Mas os dois respiravam, choraram, méis, airosos.
Se encontravam, cada noite, eu arrumando para eles antes o redor, o amodo e o acômodo, e estava de longe, tomando conta. O marido desgostava dela, druxo homem, de estrambolias, nem vinha em casa. Alguém maldou? Cego esconde mais que qualquer um, qualquer logro. E quem vigia como eu? Ela me dava cachaças, comida. Ele me fiava a féria. Me tratavam. O que podia durar, assim, às estimas fartas?
A vida não fica quieta. Até ele se despenhar no escuro, do barranco, mortal. Vinha de em-delícias. A mulher aqui persiste — para miar aos cães e latir aos gatos. Que é que eu tenho com o caso... Todos fazem questão de me chamar de ladrão. Cego não é quem morre?
Todos tendo precisão de mim, nos intervalos. A mulher, maluca, instando que eu a ele reproduzisse suas porvindas belezas. Seô Tomé dessas sozinhas nossas não contrárias conversas tirando ciúme, com porfias e más zangas. Mas eu reportava falseado leal: que os olhos dela permitiam brilhos, um quilate dos dentes, aquelas chispas, a suma cor das faces. Seô Tomé, às barbas de truz, sorvia também o deleite de me descrever o que o amor, ele não desapaixonava. Só sendo cego quem não deve ver? Mas o marido, imoral, esse comigo bebia, queria mediante meus conluios pegar o dinheiro da sacola... Eu, bêbedo e franzino, ananho, tenho de emendar a doideira e cegueira de todos?
Deixassem — e eu deduzia e concertava. Mas ninguém espera a esperança. Vão ao estopim no fim, às tantas e loucas. Por mais, urjo; me entenda. Aqui, que ele se desastrou, os outros agravam de especular e me afrontar, que me deparo, de fecho para princípio, sem rio nem ponte.
Dia que deu má noite. Ele se errou, beira o precipício, caindo e breu que falecendo. Não pode ter sido só azares, cafifa? De ir solitário bravear, ciumado, boi em bufo, resvalou... e, daí, quebrado ensanguentado, terrível, da terra.
Ou o marido, ardido por matar e roubar — empuxou o outro abaixo no buracão — seu propósito? Cego corre perigo maior é em noites de luares...
E seô Tomé, no derradeiro, variava: falando que começava a tornar a enxergar! Delírios, de paixão, cobiçação, por querer, demais, avistar a mulher — os traços — aquela formosura que, nós três, no desafeio, a gente tinha tanto inventado. Entrevendo que ela era real de má-figura, ele não pode, desiludido em dor, ter mesmo suicidado, em despenho? O pior cego é o que quer ver... Deu a ossada.
Ou, ela, visse que ele ia ver, havia de mais primeiro querer destruir o assombroso, empurrar o qual, de pirambeira — o visionável! Caráter de mulher é caroços e cascas. Ela, no ultimamente, já se estremecia, de pavôres de amor, às vezes em que ele, apalpador, com fortes ânsias, manuseava a cara dela, oitivo, dedudo. Ar que acontece...
Se na hora eu estava embriagado, bêbedo, quando ele se despencou, que é que sei? Não me entendam! Deus vê. Deus atonta e mata. A gente espera é o resto da vida.
A mulher diz que me acusa do crime, sem avermelhação, se com ela eu não for ousado... O marido, terrível, supliquento, diz que eu é que fui o barregão... Terríveis, os outros, me ameaçam, às injúrias... O senhor não diz nada. Tenho e não tenho cão, sabe? Me prendam! Me larguem! A mulher esteja quase grávida. Me chamo Prudencinhano. Agora o cego não enxerga mais... A culpa cai sempre é no guiador?
Só se inda hei outras coisas, por ter, continuadas de recomeçar; então Deus não é mundial? Temo que eu é que seja terrível.
E o senhor ainda quer me levar, às suas cidades, amistoso?
Decido. Pergunto por onde ando. Aceito, bem-procedidamente, no devagar de ir longe. Voltar, para fim de ida. Repenso, não penso. Dou de xingar o meu falecido, quando as saudades me dão. Cidade grande, o povo lá é infinito.
Vou, para guia de cegos, servo de dono cego, vagavaz, habitual no diferente, com o senhor, Seô Desconhecido.

 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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