Curtamão - João Guimarães Rosa

 © Winslow Homer


Curtamão

Convosco, componho.
Revenho ver: a casa, esta, em fama e ideia. Só por fora, com efeito; prédio que o Governo comprou, para escola de meninos, quefazer vitalício. Dizendo, formo é a estória dela, que fechei redonda e quadrada. Mas o mundo não é remexer de Deus? — com perdão, que comparo. Minha será, no que não se tasca nem aufere, sempre, em fachada e oitão, de cerces à cimalha. Olhem. O que conto, enquanto; ponto. Olhos põem as coisas no cabimento.
Oficial pedreiro, forro, eu era, nem ordinário nem superior; de chegar a mais, me impedia esse contra mim de todos, descrer, desprezo. Minha mulher mesma me não concedia razão, questionava o eu querer: o faltado, corçôos do vir a ser, o possível. Todos toleram na gente só os dissabores do diário e pouco sal no feijão. Armininho possuía o terreno — alto — espaço de capim, sol e arredor... Em três, reparto quina pontuda, no errado narrar, no engraçar trapos e ornatos? Sem custoso, um explica é as lérias ocas e comuns, e que não são nunca. Assim, tudo num dia, nada, não começa. Faço quando foi que fez que começou.
Saí, andei, não sei, fio que numa propositada, sem saber. Dei com o Armininho; eu estava muito repelido. Ele, desapossado, pior, por desdita. Voltado da cidade, a nôiva mais não achou em pé de flor: aquém a tinham casado, com um Requincão. Agora, de tão firme ele cambaleava, pelos ses e quases, tirado de qualquer resolver. Tratavam de o escorraçar do arraial, os do Requincão, o marido desnaturado. Armininho só ansiava. Igualei com ele — para restadas as confidências.
Me disse: tinha bastante dinheiro. E que lhe ganhava? Seria para fazerem antes casa, a que sonhava a nôiva. — “A mais moderna...” — ela queria constante, ah: escutei, de um pulo.
— “Pois então” — o que estudei e rebatidamente. — “Vamos propor, à revelia desses, dita casa...” — disse e olhei, de um trago.
— “O sr.? amigo...” — ele, vem, me espreitou nos centros, ele suspirava pelos olhos.
Suspirei junto: — “Estou para nascer, se isso não faço!” — rouqueei — desfechada decisão.
Mas ele recedia, ao triste gosto, como um homem vê de frente e anda de costas. Teso em mente forcejei — por de mim arredar desânimo pegador. Enquanto o que, eu percebia: a sina e azo e hora, de cem uma vez: da vida com capacidade. — “A casa levada da breca, confrontando com o Brasil” — e parti copo, também o dele, me pondo em pé, o pé em chão, o chão de cristão. Armininho, só então. Só riu ou entendeu, comigo se adotou. De lá a gente saiu, arrastando eu aquele peso alheio, paixão, de um coração desrespeitado.
Deserto do mais, tranquei minha presença, com lápis, régua e papel, rodei a cabeça. Minha mulher a me supor; desrespondi a quem me ilude. Tantas quantas vezes hei-de, tracei planta — só um solfejo, um modulejo — a minha construção, desconforme a reles usos. Assim amanheci.
De alvenel a mestre-de-obras, apareci frente ao Armininho. Tresnoitado, espinhoso, eu, ardente; ele, sonhado com felizes idos. Porque, quem sabe. Confirmou, o caso era fato. Tudo a favor e seguro: escritura, carta-branca, tempo bom, nem chuvas. Dinheiro — o que serve principalmente, mesmo ao sofrido amargurado.
Encomendei: pedra e cal. A moça, daquela futura casa padroeira, tanto fazendo solteira que casada! Tirada a licença completa; e o que não digo. Tijolaria areias cimento, logo. Eu tinha o Dés, ajudante correto, e servente o Nhãpá, cordato; mas ainda outros reuni, por motivos. O lugar e o povo temíveis em paz. De carpinteiro tão bem entendo: para o travejável, de lei, esteios de madeira serrada. O Requincão em praça se certificou, tarde.
Não há como um tarde demais — eu dizendo — porque aí é que as coisas de verdade principiam. Amor? Dele e fé, o Armininho consumia, pesaroso; contanto cobrava era aqui, esperança organizada. E o que não digo, meço palavra.
Vinham avispar, os do Requincão; logo aborrecidos do que olhado. A cova — sete palmos — que antes de tudo ali cavei, a de qualquer afoito defunto, estreamento, para enxotar iras e orgulho. Primeiro o sotaque, depois a signifa — eu redizendo; com meu Tio o Borba, ajudador, e nosso um Lamenha dando serventia. Nhãpá e o Dés cavavam os profundamentos; o risco mudamente eu caprichava. Um alvo ali em árvore preguei, e tiros de aviso-de-amigo atirávamos. Eu, que a mais valentes não temo, não haviam de me pôr grosa.
— “Dôido diacho monstro!” — minha mulher e praga. Desentendia minha fundura. Empiquei: a fio-a-prumo. Ela indo-se embora para sempre — e botados o assento e o soco em o baldrame. A obra abria.
Suave o Armininho: — “Vai, vou...” — referia o montante de suspiros, durante cada fiada de tijolos. Enviava o amor a vales e campos, isto é, a certa rua e morada. Saiba eu o que não digo, eu, alarife, trolha na mão, espingarda à bandoleira. A nôiva em lua-de-mel cativa — ninguém via — vigiada. Tomara, o extrato desse amor, para ingerir no projeto exato. Perfiz a primeira quadrela.
Rondeavam os do Requincão, muito mais retrocediam: de ante meu Tio o Borba, dunga jagunço, e o Lamenha nosso, quera curimbaba. O mau resolve — estando-se em empresas. Mas, escarniam nossos andaimes era o povo, inglório. De invejas ainda não bastante — esta minha terra é igual a todas. Despique e birra contra desfeita: — “Boto edifício ao contrário!” — então, mandei; e o Armininho concorde. Votei, se fechou, refiz traço. Descrevo o erguido: a casa de costas para o rual, respeitando frente a horizonte e várzeas.
Armininho, mas, conjunto, chorava já por um olho só, o homem. Me prezou, pelo meu engenho, o quanto alguém me creditava. Mirava o quê: sem açamouco, diferençado, vistoso, o pé-direito de moda. Ah, e a moça? Mulher, o que quer, ouve, tão mal, tão bem; todo-o-mundo neste mundo é mensageiro.
Em que, até, para igreja, o lugar o padre cobiçou. Minhas mãos de fazer a ele mostrei — mandato — por invenção de sentimento. — “Deus do belo sofrido é servido...” — conveio. Mas não assim as pessoas, umas e outras, atiçadas.
Tive começo de ameaço de medo. Então eu disse: — “Redobrar tudo, mais alto! sobrado!” — tive’de. A madre, meu construído, casa-grande de quantos andares aguentando, no se subir, lanço a lanço, à risca feita. Mas: a casa sem janelas nem portas — era o que eu ambicionava.
Sem no tempo terminar? Vindo o osso, o caroço, as rijezas amargosas. O dinheiro: água, que faltando. Armininho, rapaz, pois sim. Vi. Sua parte ele ainda fiado me cedendo, firmei clareza; desmanchada nossa sociedade. Tão de lado, comum, sofri nos dentes, nos dedos, mesmo nem comigo eu pudesse, sentado chorava. Mas para adiante. Tal o que meu, sangue ali amassei, o empenho e dívidas. Se avessavam os companheiros, desistidos entes, sem artes. — “Morro, na soleira e no reboco!” — anunciei. — “Eu, não morro...” — ou nem nada.
Me culpavam desta à-sozinha casa, infinito movimento, sem a festa da cumeeira. Seja agora a simplicidade, pintada de amarelo-flor em branco, o alinhamento, desconstrução de sofrimento, singela fortificada. Sem parar — e todo ovo é uma caixinha? Segui o desamparo, conforme. Só me valendo o extraordinário.
Surpresa azul: à-del-rei, a matinas, se soube, o confusório. As coisas só me espantam de véspera. Se foram, no caminhão das telhas, em horas da noite, de amor, bem idos! Assim fugido o par — Armininho e ela — mulher do Requincão, mas nôiva dele. Sem nem haver perseguição. Solertes em breve longe estavam, alegres na nuca e na barriga, entre os tebas parentes dele surungangas.
Sozinho fiquei, aqui esperei, os requincães. Vieram, as pessoas, umas atrás das outras, certa multidão. Revólver meu no bolso, aqueles recebi, disse: — “É para não entrarem! A casa é vossa...” — por não romper a cortesia.
Ventanias em fubás: assaz destorciam os rostos, vi como é que o povo muda. Agora, comigo e por pró estavam, vivavam: — “A casa é progresso do arraial!” — instantes arras. Outras aí alturas me a rodear, desfechos de um calor me percorriam.
A mim, por fim, de repletos ganhos, essas frias sopas e glória. A casa, porém de Deus, que tenho, esta, venturosa, que em mim copiei — de mestre arquiteto — e o que não dito.


- João Guimarães Rosa, no livro "Tutameia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

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