Marina Colasanti - poemas

Vincent van Gogh - Wheatfield with Cypresses, 1889
poemas de marina colasanti


Enquanto o respirar
O amor morreu
diz quem não sabe amar,
morreu a arte
o romance se foi
o autor está defunto.
Aninham-se os coveiros nas suas frases
enquanto o respirar das coisas mortas
ergue
sereno
o peito do mundo.
- Marina Colasanti, no livro "Passageira em trânsito. Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.

§


Jardinagem abaixo do equador

Deve ser erro meu
querer jardim lá onde a natureza
só pretende selva.
Gramados, convenhamos,
são coisas de europeu
com galgos, gamos
e um castelo ao fundo
erva aparada em
séculos de cascos
coturnos e
sapatinhos de damas,
séculos de batalhas
e sangue nas raízes.
Aqui a batalha que travo
é muito outra,
luta contra as daninhas
contra as pragas
sempre mais fortes do que grama
ou flores.
Arranco e arranco
despedaçando em vão as pobres unhas.
Onças, tamanduás, serpentes e gambás
riem de mim
no escuro não distante.
E me pergunto se não sou eu
a praga
nessa insistência cega em extirpar
quem aqui nasce e vive
de direito.
- Marina Colasanti, em "Poesia em 4 tempos". Rio de Janeiro: Editora Global, 2008.


§


Lá fora, a noite

É quando a família dorme
- inertes as mãos nas dobras dos lençóis
pesados os corpos sob a viva mortalha -
que a mulher se exerce.
Na casa quieta
onde ninguém lhe cobra
ninguém lhe exige
ninguém lhe pede
                            nada
caminha enfim rainha
nos cômodos vazios
demora-se no escuro.
E descalços os pés
aberta a blusa
pode entregar-se
plácida
ao silêncio.
- Marina Colasanti, no livro "Rota de colisão". Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1993.

§


Outras palavras
Para dizer certas coisas
são precisas
palavras outras
novas palavras
nunca ditas antes
ou nunca
antes
postas lado a lado.
São precisas
palavras que inventaram
seu percurso
e cantam sobre a língua.
Para dizer certas coisas
são precisas palavras
que amanhecem.

- Marina Colasanti, em "Fino sangue". Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.

§


Canção para um homem e um rio
Porque era um homem sincero 
eu o levei ao rio entre junquilhos. 
Mas sincero não era 
era só homem 
e deixei nos junquilhos a esperança 
de dar à minha espera serventia. 

Porque era um homem forte 
eu o levei ao rio entre junquilhos. 
Mas forte ele não era 
era só homem 
e entre pedras deixei o meu desejo 
de abandonar o arado, a forja, e a lança. 

Porque podia me amar 
eu o levei ao rio entre junquilhos. 
Mas amante não era 
era só homem 
e na água afoguei a minha sede 
de palavras mais doces que ambrosia. 

Porque era um homem 
só homem 
eu o levei ao rio entre junquilhos. 
- Marina Colasanti, no livro "Rota de colisão". Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1993.

§

Frutos e flores
Meu amado me diz 
que sou como maçã 
cortada ao meio. 
As sementes eu tenho 
é bem verdade. 
E a simetria das curvas. 
Tive um certo rubor 
na pele lisa 
que não sei 
se ainda tenho. 
Mas se em abril floresce 
a macieira 
eu maçã feita 
e pra lá de madura 
ainda me desdobro 
em brancas flores 
cada vez que sua faca 
me traspassa.
- Marina Colasanti, no livro "Rota de colisão". Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1993.

§

Porta do armário aberta
Abro a porta do armário 
como abro um diário, 
a minha vida ali 
dependurada 
meu frusto cotidiano 
sem segredos 
intimidade exposta 
que os botões não defendem 
nem se veda nos bolsos, 
espelho mais real que todo espelho 
entregando à devassa 
as medidas do corpo. 

Armário 
tabernáculo do quarto 
que abro de manhã 
como à janela 
para sagrar o ritual do dia. 
Sala de Barba Azul 
coalhada de pingentes 
longas saias e véus 
emaranhados sem que sangue goteje. 
Corpos decapitados 
ausentes minhas mãos 
dos murchos braços. 

Do armário minhas roupas 
me perseguem 
como baú de herança ou 
maldição. 
Peles minhas pendentes 
em repouso 
silenciosas guardiãs 
dos meus perfumes 
tessituras de mim 
mais delicadas 
que a luz desbota 
que o tempo gasta 
que a traça rói 
ainda assim durarão nos seus cabides 
muito mais do que eu sobre meus ossos. 

Nenhuma levarei. 
Irei despida 
deixando atrás de mim 
a porta aberta. 
- Marina Colasanti, no livro "Rota de colisão". Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

§

Rota de colisão
De quem é esta pele 
que cobre a minha mão 
como uma luva? 
Que vento é este 
que sopra sem soprar 
encrespando a sensível superfície? 
Por fora a alheia casca 
dentro a polpa 
e a distância entre as duas 
que me atropela. 
Pensei entrar na velhice 
por inteiro 
como um barco 
ou um cavalo. 
Mas me surpreendo 
jovem velha e madura 
ao mesmo tempo. 
E ainda aprendo a viver 
enquanto avanço 
na rota em cujo fim 
a vida 
colide com a morte. 
- Marina Colasanti, no livro "Rota de colisão". Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1993.

§

Vincent
Ciprestes de Van Gogh
imóveis labaredas
verdes incêndios sobre a tela
verdes mulheres nuas
em seus cabelos.

Ciprestes de Van Gogh
bizantinas colunas
da paisagem
vórtice
remoinho erguido
como o grito
o fallus
o arremesso de gozo
do pintor.
- Marina Colasanti, no livro "Rota de colisão". Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1993.

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Breve biografia
Marina Colasanti (Sant'Anna) nasceu em 26 de setembro de 1937, em Asmara (Eritréia), Etiópia. Viveu sua infância na Africa (Eritréia, Líbia). Depois seguiu para a Itália, onde morou 11 anos. Chegou ao Brasil em 1948, e sua família se radicou no Rio de Janeiro, onde reside desde então. Possui nacionalidade brasileira e naturalidade italiana. Entre 1952 e 1956 estudou pintura com Catarina Baratelle; em 1958 já participava de vários salões de artes plásticas, como o III Salão de Arte Moderna. Nos anos seguintes, atuou como colaboradora de periódicos, apresentadora de televisão e roteirista. Ingressou no Jornal do Brasil em 1962, como redatora do Caderno B, desenvolveu as atividades de: cronista, colunista, ilustradora, sub-editora, Secretária de Texto. Foi também editora do Caderno Infantil do mesmo jornal. Participou do Suplemento do Livro com numerosas resenhas. No mesmo período editou o Segundo Tempo, do Jornal dos Sports. Assinou seções nas revistas: Senhor, Fatos & Fotos, Ele e Ela, Fairplay, Claudia e Jóia.Em 1976 ingressou na Editora Abril, na revista Nova da qual já era colaboradora, com a função de editora de comportamento.De fevereiro a julho de 1986 escreveu crônicas para a revista Manchete. Em 1968, foi lançado seu primeiro livro, Eu Sozinha; desde então, publicou mais de 30 obras, entre literatura infantil e adulta. Seu primeiro livro de poesia, Cada Bicho seu Capricho, saiu em 1992. Em 1994 ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, por Rota de Colisão (1993), e o Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil, por Ana Z Aonde Vai Você?. Suas crônicas estão reunidas em vários livros, dentre os quais Eu Sei, mas não Devia (1992) que recebeu outro prêmio Jabuti, além de Rota de Colisão igualmente premiado. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Dentre outros escreveu E por falar em amor; Contos de amor rasgados; Aqui entre nós, Intimidade pública, Eu sozinha, Zooilógico, A morada do ser, A nova mulher (que vendeu mais de 100.000 exemplares), Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal delicado, Gargantas abertas e os escritos para crianças Uma idéia toda azul e Doze reis e a moça do labirinto de vento. Colabora, atualmente, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna com quem teve duas filhas: Fabiana e Alessandra. Em suas obras, a autora reflete, a partir de fatos cotidianos, sobre a situação feminina, o amor, a arte, os problemas sociais brasileiros, sempre com aguçada sensibilidade. 
:: Fonte: A poesia do Brasil
:: Site oficial da autora. AQUI!


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