A vela ao diabo - João Guimarães Rosa

© Oswaldo Guayasamin


E se as unhas roessem os meninos? 
Estória imemorada.

A vela ao diabo

Esse problema era possível. Teresinho inquietou-se, trás orelha saltando-lhe pulga irritante. Via espaçarem-se, e menos meigas, as cartas da nôiva, Zidica, ameninhamente ficada em São Luís. As mulheres, sóis de enganos... Teresinho clamou, queixou-se — já as coisas rabiscavam-se. Ele queria a profusão. Desamor, enfado, inconstância, de tudo culpava a ela, que não estava mais em seu conhecer. Tremefez-se de perdê-la.
Embora, em lógico rigor, motivo para tanto não houvesse ou houvesse, andara da incerteza à ânsia, num dolorir-se, voluntário da insônia. Até bebeu; só não sendo a situaçãozinha solúvel no álcool. Amava-a com toda a fraqueza de seu coração. Saiu-se para providência.
A de que se lembrou: novena, heroica. Devia, cada manhã, em igreja, acender vela e de joelhos ardê-la, a algum, o mesmo, santo — que não podia saber nem ver qual, para o bom efeito. O método moveria Deus, ao som de sua paixão, por mirificácia — dedo no botão, mão na manivela — segurando-lhe com Zidica o futuro.
Sem pejo ou vacilar, começou, rezando errado o padre-nosso, porém afirmadamente, pio, tiriteso. Entrava nessa fé, como o grande arcanjo Miguel revoa três vezes na Bíblia. Havia-de.
Ia conseguindo, e reanimava-se; nada pula mais que a esperança. Difícil — pueris humanos somos — era não olhar nem conhecer o seu Santo. Na hora, sim, pensava em Zidica; vezes, outrossim, pensasse um risquinho em Dlena.
No terceiro dia, retombou, entretanto, coração em farpa de seta, odiando janelas e paredes. São Luís não lhe mandara carta. Quem sabe, cismou, vela e ajoelhar-se, só, não dessem — razoável sendo também uma demão, ajudar com o agir, aliar recursos? Deus é curvo e lento. E ocorreu-lhe Dlena.
Tão recente e inteligente, de olhos de gata, amiga, toda convidatividade, a moça esvoaçadora. Ela mesma, lindo modo, de início picara-lhe em Z a dúvida, mas pondo-se para conselhos — disso Teresinho quase se recordava. Realegrou-se, em imo, coração de fibra longa. Veio vê-la.
Dlena o acolheu, com tacto fino de aranha em jejum. Seu sorriso era um prólogo. E a estória pegou psicologia.
Teresinho — todos gostariam de narrar sua vida a um anjo — seus embaraços mentais. Dlena ouviu-o. Instruiu-o. — “Mulheres? Desprezo...” — muxoxo; ela isso dizia tão enxuto. Ela e cujo encanto.
Ele, dócil à sua graça, em plástico estado de suspenso, como um bicho inclina o ouvido. Apaziguavam-no seus olhos-paisagem. Sim, o que devia, e ora: não censuras e mágoas perturbadas, nenhum afligir-se, de gato sob pata, mas aguentar tempo, pagar na moeda! Descarregado das más suspeitas, já cienciado: dos poros da pele às cavidades do coração. Foi saindo do doendo.
Prosseguia na novena — ao infalir de Deus, por Santo incógnito; seguido, porém, o de Dlena, de cor — o que recordava, fonográfico. A Zidica, enviou curta carta, sem parte emotiva, traída a brasa do amor, entrouxada em muita palha. Voltava a Dlena, tanto quanto e tanto, caminhando sutilmente. Reenchia-se a lua, por aqueles dias.
Mostrou-lhe as de Zidica, após e pois. Simplórias simples cartinhas, reles ternas. Dlena, aliás, nelas leve notava as gentis faltas de gramática. Tinha ela olhos que nem seriam mesmo verdes, caso houvesse nome para outra igual e mais bela cor. Seu parecer provava-se sagaz tática, não há como Deus, d’ora-em-ora. Seu picadinho de conversa, razões para depois-de-amanhã.
Sentados os dois, ombro com ombro, a fim de arredondados suspiros ou vontade de suspirar. Ternura sem tentativa — fraternura. Teresinho se embriagando miudinho, feliz feito caranguejo na umidade, aos eflúvios dessa emoção. Seu coração e cabeça pensavam coisas diversas.
Valia divertir-se, furtar o tempo ao tormento — apud Dlena. Foram, a abrandar o caso, a festa e cinema. Num muito mais; prorrogavam-se. Teresinho, repartido, fino modo, que mais um escorpião em pica em sua consciência. Zidica bordando o enxoval... Zidica, a doçura insípida da boa água, produtora de esperanças... Tão quieto, São Luís, tão certo... Seu coração batia como uma doença, ele tinha medo.
Não iam desnamorar-se! A vida, vem se encaminhava. A novena completara-se, a derradeira vela, ele genuflexo. Fez o que pôde com aquele pensamento.
Ou começava a interrogar-se, desestruturando-se sua defesa. Frescura, quase felicidade; e espinhos perseverantes. Ideia tonta pousou nele. Tornou à igreja, espiou enfim o Santo, data vênia. Mal e nada no escuro viu, santo muda muito de figura.
Veio a Dlena — a seu suavizamento — com o coração na mão, algemada; caiu-lhe a alma aos pés dela. Apalpou os bolsos, contradesfeito. De Zidica, a última carta, esquecera-se de trazê-la. Ocorreu-lhe espirrar. Do nada, nada obteve.
Tudo, quanto há, é saudade, alternando-se com novidades: diagrama matemático, em calor de laboratório. O diabo não é inteiro nem invento. Teresinho desconjurava-se, imaginava-se chorando morno, por fechado desespero. Zidica — desconversas escrevera, volúvel, vaga?
Correu ele a Dlena, ao súbito último ato, açorado, asas nos sapatos. De fato. O Santo não lhe valera.
Dlena, ei-la — jeitinho, sorrisinho, dolo — estampada no vestido, amarelo com malhas castanho-vermelhas. Foi ela quem abriu o envelope; o iá-iá-iá de rir — riu de modo desusado. Mas franziu-se, então que então.
Ela era: seus olhos sem cinzas, rancordiosa. A carta rasgou, desfaçava-se. — “Viva, esta!” — voz de festa; o que maldisse. Soou, e fez-se silepse.
Teresinho recuou, de surpresa, susto, queimados os dedos. Seu coração se empacotou. Decidiu-se, de vez, de ombros, não preso. Ali algo se apagava. Dlena, ente. Nada disse, e disse mal. Só o que doeu: sorriso do amarelo mais belo. Teresinho arredou olhos.
Saiu-se — e tardara — de lá, dela, de vê-la. Voou para Zidica, a São Luís, em mês se casaram.
Foram infelizes e felizes, misturadamente.


 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
-------
Veja aqui Biobibliografia do autor:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Gostou? Deixe seu comentário.