Lá, nas campinas - João Guimarães Rosa

... nessas tão minhas lembranças eu
mesmo desapareci.
Diurno.

Lá, nas campinas


© Adélio Sarro
Está-se ouvindo. Escura a voz, imesclada, amolecida; modula-se, porém, vibrando com insólitos harmônicos, no ele falar naquilo. Todo o mundo tem a incerteza do que afirma. Drijimiro, não; o pouco que pude entender-lhe, dos retalhos do verbo. Nada diria, hermético feito um coco, se o fundo da vida não o surpreendesse, a só saudade atacando-o, não perdido o siso.
Teve recurso a mim. Contou, que me emocionou. — “Lá, nas campinas...” — cada palavra tatala como uma bandeira branca — comunicado o tom — o narrador imaginário. Drijimiro tudo ignorava de sua infância; mas recordava-a, demais. Ele era um caso achado.
Vinha-lhe a lembrança — do último íntimo, o mim de fundo — desmisturado milagre. Só lugares. Largo rasgado um quintal, o chão amarelo de oca, olhos-d’água jorrando de barrancos. A casa, depois de descida, em fojo de árvores. Tudo o orvalho: faísca-se, campo a fora, nos pendões dos capins passarinhos penduricam e se embalançam... De pessoas, mãe ou pai, não tirava memória. Deles teria havido o amor, capaz de consumir vozes e rostos — como a felicidade. Drijimiro voltava-se — para o rio de ouvidos tapados. Nenhum dia vale, se seguinte. Que jeito recobrar aquilo, o que ele pretendia mais que tudo? Num ninho, nunca faz frio.
Frase única ficara-lhe, de no nenhum lugar antigamente: — “Lá, nas campinas...” — desinformada, inconsoante, adsurda. Esqueceu-a, por fim. Calava reino perturbador; viver é obrigação sempre imediata.
Estava agora bem de vida — como o voo da mosca que caminhou até à beira da mesa. Iô Nhô, o rico e chefe, estimava-o. Seguia-o o Rixío, entendido e provador de cachaças. Dona Divída debruçava-se à janela, redondos os peitos, os perfumes instintivos. Drijimiro passava, debaixo de chapéu, gementes as botinas. Aparecia, na clara ponta da rua, Dona Tavica, jasmim em ramalhete, tantas crianças a rodeavam.
Antes ele buscara, orfandante, por todo canto e parte. — “Lá, nas campinas?...” — o que soubesse acaso.
Tinha ninguém para lhe responder. De menino, passara por incertas famílias e mãos; o que era comum, como quando vêm esses pobres, migrantes: davam às vezes os filhos, vendiam filhas pequenas.
Drijimiro andara — de tangerino, positivo, ajudador de arrieiro — às vastas terras e lugares. Nada encontrava, a não ser o real: coisas que vacilam, por utopiedade. E esta vida, nunca conseguida. Ia ficando esperto e prático.
Uma campina — plano, nu campo, espaço — podendo ser no distante Rio Verde Pequeno, ou todo o contrário, abaixo do Abae-té, e estando nem onde nem longe, na infinição, a serra de atrás da serra. Via as moças enfeitantes — olhos e rir, Divída, matéria bonita — e precisava, tornava a partir, apertando-o o nó de recordações. Só achar o sítio, além, durado na imaginação.
No sertão, entanto, campinas eram os “alegres”: as assentadas nos morros, esses altos claros, limpos, ondeados em encostas. Viu — pelos olhos perdido por mil — Tavica, alva tão diferente, para simplificação do coração. Gostou dela, como de madrugada gêia.
Tácito, mais, entrecuidando. Disse-se-lhe: que, se num lugar tal alguém aquilo falara, então não seriam lá as campinas, mas -em ponto afastado diverso.
Já afadigado Drijimiro lutava, constando que velhaco. Vendia, recriava, comprava bezerros. Iô Nhô fizera-o seu sócio. Vezava-se, afortunado falsamente, inconsiderava, entre a necessidade e a ilusão, inadiavelmente afetuoso.
Dizendo-lhe o Rixío: que com esse nome de Campinas houvesse, em São Paulo e Goiás, arraial antigo e célebre cidade. Ele não procurava mais; guardava paz, sossego insano, com caráter de cordialidade.
Mas achava, já sem sair do lugar, pois onde, pois como, do de nas viagens aprendido, ou o que tinha em si, dia com sobras de aurora. Notava: cada pedrinha de areia um redarguir reluzente, até os voos dos passarinhos eram atos. O ipê, meigo. O sol-poente cor de cobre — no tempo das queimadas — a lua verde e esverdeadas as estrelas. Ou como se combinam inesquecivelmente os cheiros de goiaba madura e suor fresco de cavalo.
Dom, porém, que foi perdendo. Diziam-no silencioso mentiroso. Ou que lesava os outros — voto de mentes vulgares.
Soltavam-se foguetes: Iô Nhô fazia anos e bodas-de-ouro. Drijimiro dele adquiriu também o alambique, barris, queria respeito e dinheiro, destilar aguardente; servia-o o Rixío, deixado de serenatas. Diante dali passava Dona Tavica: entre a horda de filhos, ela ralhava, amava e parcelava-se.
Seguidamente via-a, sentindo-se influído por aquela alvura. Calava, andava, mais bezerros negociava. E em dia o Rixío, ardido, deu a cor do calcanhar, saíu-se redondo pelo mundo. Tempo de fatos. Iô Nhô se entrevara, por ataques de estupor.
Vinham todos agora à tenda de aguardenteiro, queriam-se perto de Drijimiro, pelo tonto conselho e quase consolo, imaginavam suas trapaças. Tudo temessem perder, achavam-lhe graça. — “É burro...” — entendiam, se quietavam. Dona Divída, sacudida de bela, chamava-o, temia o envelhecer, queria que o marido não bebesse, homem de bigode.
Iô Nhô morreu. Outro dezembro e o Rixío tornou, quebrado e rendido, neste mundo volteador. Vinha, para passar. Só rever Drijimiro, pedir-lhe perguntado o segredo: — “Lá nas campinas...” — mas que Drijimiro não sabia mais de cor. O Rixío morreu — ficou fiel, frio, fácil. O mundo se repete mal é porque há um imperceptível avanço.
E ia Drijimiro, rugoso, sob chapéu, sem regalo nenhum, a ceder-se ao fado. Dona Divída aparecia, sua pessoa de filha de Deus, tão vistosa. E viu Dona Tavica, a quem calado entregou seu coração, formosa desbotada. Doravante... Ousava estar inteiramente triste.
Surgindo-lhe, ei, vem, de repente, a figura da Sobrinha do Padre: parda magra, releixa para segar, feia de sorte. Sós frios olhos, árdua agravada, negra máscara de ossos, gritou, apontou-o, pôde com ele.
Sem crer, Drijimiro se estouvou, perdido o tino, na praça destontando-se, corria, trancou-se em casa.
Aí veio o Padre. Atravessava a rua, ao sol, a batina ainda mais preta, se aproximava. Drijimiro pelos fundos do quintal refugiu, tremendo soube de sua respiração, oculto em esconso.
Mas logo não sorriu, transparentemente, por firmitude e inquebranto. Falou, o que guardado sempre sem saber lhe ocupara o peito, rebentado: luz, o campo, pássaros, a casa entre bastas folhagens, amarelo o quintal da voçoroca, com miriquilhos borbulhando nos barrancos... Tudo e mais, trabalhado completado, agora, tanto — revalor — como o que raia pela indescrição: a água azul das lavadeiras, lagoas que refletem os picos dos montes, as árvores e os pedidores de esmola.
Tudo era esquecimento, menos o coração. — “Lá, nas campinas!...” — um morro de todo limite. O sol da manhã sendo o mesmo da tarde.
Então, ao narrador foge o fio. Toda estória pode resumir-se nisto: — Era uma vez uma vez, e nessa vez um homem. Súbito, sem sofrer, diz, afirma: — “Lá...” Mas não acho as palavras.


 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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