Ardendo sobre o rochedo - Rubem Braga


Paul Gauguin - 1888.
Ardendo sobre o rochedo

Foi então que, tendo repelido os apalaches, fiz meus quartéis de verão nas Ilhas Ébrias.

Ora, em uma dessas ilhas, a que tem o nome de Almenara, havia um homem chamado Emiliano;
Que vivia em uma choupana diante de uma pequena Angra, por isso mesmo conhecida como Angra Emiliana.
Pois há homens que são como cabos, outros que semelham ilhas, outros que parecem cubos de concreto.
Mas Emiliano é como que uma angra; nele todos os barcos têm porto inseguro, mas franco; e farta aguada.
Embora o perigo das cascavéis.
O clima é harto quente, mas chuvoso; e há ninfas.
No Calendário Emiliano os dias não se juntam em meses e anos, mas em procissões e piracemas.
E as noites são negras e brilhantes como auroras secretas. São como auroras.
Nossos baralhos tinham passado pelas mãos de muitas gerações, e mal se distinguia neles um rei de uma sota.
Jogávamos incessantemente, apostando cocos, siris e barregãs.
E o fumo de nossos vícios formava uma nuvem sobre nossas cabeças.
E jogávamos sempre e sempre, dizendo blasfêmias.
Até que essa nuvem, pejada e enegrecida, se rompia em raios e aguaceiros. Sobre as nossas cabeças.
Quando o mulungu dava suas flores, esse dia era chamado domingo.
E frequentávamos as moitas de pitangueiras e comíamos tristes jenipapos que as velhas mulheres da aldeia assavam com açúcar preto em seus fornos de barro.
Porém, quando soprava o sudoeste, Emiliano d’Almenara envolvia-se no silêncio de seus brocados barrocos.
Então não havia chamá-lo para os jogos nem para as danças e cauim;

Porque seu coração era enegrecido de soberba.
Emiliano d’Angra.
D’Angra d’Almenara.
Assim chamada por um facho que em muitas noites antigas era visto ardendo sobre o rochedo.
Era o coração de Emiliano ardendo sobre o rochedo.


Rio, julho, 1959.

— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Rio de Janeiro: Record, 2010.


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