Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar? - Mia Couto



©August Macke 
Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?


1. SENHOR DOUTOR, LHE COMEÇO

Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências.
A minha mulher matei, dizem. Na vida real, matei uma que não existia. Era um pássaro. Soltei-lhe quando vi que ela não tinha voz, morria sem queixar. Que bicho saiu dela, mudo, através do intervalo do corpo?
O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no tribunal para me defender. Enquanto nem me conhece. O meu sofrimento lhe interessa, doutor? Não me importa a mim, nem tão pouco. Estou aqui a falar, isto-isto, mas já não quero nada, não quero sair nem ficar. Seis anos que estou aqui preso chegaram para desaprender a minha vida. Agora, doutor, quero só ser moribundo. Morrer é muito de mais, viver é pouco. Fico nas metades. Moribundo. Está-me a rir de mim?
Explico: os moribundos tudo são permitidos. Ninguém goza-lhes. O respeito dos mortos eles antecipam, pré-falecidos. O moribundo insulta-nos? Perdoamos, com certeza. Cagam nos lençóis, cospem no prato? Limpamos, sem mais nada. Arranja lá uma maneira, senhor doutor. Desarasca lá uma maneira de eu ficar moribundo, submorto.
Afinal, estou aqui na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada, não foi ninguém que queixou. Farto de mim, me denunciei. Entreguei-me eu mesmo. Devido, talvez, o cansaço do tempo que não vinha. Posso esperar, nunca consigo nada. O futuro quando chega não me encontra. Onde estou, afinal eu? O lugar da minha vida não é esse tempo?
Deixo os pensamentos, vou directo na história. Começo no meu cunhado Bartolomeu. Aquela noite que ele me veio procurar, foi onde iniciaram desgraças.

2. ASAS NO CHÃO, BRASAS NO CÉU

A luz emagrecia. Restava só um copo de cu. Em casa do meu cunhado Bartolomeu preparava-se o fim do dia. Ele espreitou a palhota: a mulher, mexedora, agitava as últimas sombras do xipefo. A mulher deitava mas Bartolomeu estava inquieto. O adormecimento demorou de vir. Lá fora um mocho piava desgraças. A mulher não ouviu o pássaro que avisa a morte, já dormia entregue ao corpo. Bartolomeu falou-se:
— Vou fazer o chá: talvez bom para eu garrar maneira de dormir.
O lume estava ainda a arder. Tirou um pau de lenha e soprou nele. Sacudiu dos olhos as migalhas do fogo. Na atrapalhação deixou a lenha acesa cair nas costas da mulher. O grito que ela deu, nunca ninguém ouviu. Não era som de gente, era grito de animal. Voz de hiena, com certeza. Bartolomeu saltou no susto: estou casado com quem, afinal? Uma nóii? (Nóii: feiticeira) Essas mulheres que noite transformam em animais e circulam no serviço da feitiçaria?
A mulher, na frente da aflição dele, rastejava a sua dor queimada. Como um animal. Raio da minha vida, pensou Bartolomeu. E fugiu de casa. Atravessou a aldeia, rápido, para me contar. Chegou a minha casa, os caes agitaram. Entrou sem bater, sem licenças. Contou-me o sucedido assim como agora estou a escrever. Desconfiei, no início. Bêbado, talvez o Bartolomeu trocou as lembranças. Cheirei o hálito da sua queixa. Não arejava bebida. Era verdade, então. Bartolomeu repetia a histria duas, três, quatro vezes. Eu ouvia aquilo e pensava: e se a minha mulher também é uma igual? Se é uma nóii, também?
Depois de Bartolomeu sair, a ideia me prendia os pensamentos. E se eu, sem saber, vivia com uma mulher-animal? Se lhe amei, então troquei a minha boca com um focinho. Como aceitar desculpas da troca? Lugar de animal é na esteira, algum dia? Bichos vivem e revivem nos currais, para lá dos arames. Se essa mulher, fidaputa, me enganou, fui eu que animalei. Só havia uma maneira de provar se Carlota Gentina, minha mulher, era ou não uma nóii. Era surpreender-lhe com um sofrimento, uma dor funda. Olhei em volta e vi a panela com água a ferver. Levantei e reguei o corpo dela com fervuras. Esperei o grito mas não veio. Não veio, mesmo. Ficou assim, muda, chorando sem soltar barulho. Era um silêncio enroscado, ali na esteira. Todo o dia seguinte, não mexeu. Carlota, a coitada, era só um nome deitado. Nome sem pessoa: só um sono demorado no corpo. Sacudi-lhe nos ombros:
— Carlota, porquê não mexes? Se sofres, porquê não gritas?
Mas a morte uma guerra de enganos. As vitórias são só derrotas adiadas. A vida enquanto tem vontade vai construindo a pessoa. Era sso que Carlota precisava: a mentira de uma vontade. Brinquei de criança para fazer-lhe rir. Saltei como gafanhoto em volta da esteira. Choquei com as latas, entornei o barulho sobre mim. Nada. Os olhos dela estavam amarrados na distância, olhando o lado cego do escuro. Só eu me ria, embrulhado nas panelas. Me levantei, sufocado no riso e saí para estourar gargalhadas loucas lá fora. Gargalhei até cansar. Depois, aos poucos, fiquei vencido por tristezas, remorsos antigos.
Voltei para dentro e pensei que ela havia de gostar ver o dia, elasticar as pernas. Trouxe-lhe para fora. Era tão leve que o sangue dela devia ser só poeira vermelha. Sentei Carlota virada para o poente. Deixei o fresco tapar o seu corpo. Ali, sentada no quintal, morreu Carlota Gentina, minha mulher. Não notei logo aquela sua morte. S vi pela lágrima dela que parara nos olhos. Essa lágrima era já água da morte.
Fiquei a olhar a mulher estendida no corpo dela. Olhei os pés, rasgados como o chão da terra. Tanto andaram nos carreiros que ficaram irmãos da areia. Os pés dos mortos são grandes, crescem depois do falecimento. Enquanto media a morte de Carlota eu me duvidava: que doença era aquela sem inchaço nem gemidos Água quente pode parar assim a idade de uma pessoa? Conclusão que tirei dos pensamentos: Carlota Gentina era um pássaro, desses que perdem voz nos contravento.

3. SONHOS DA ALMA ACORDARAM-ME DO CORPO
Sonhei-lhe. Ela estava no quintal, trabalhando no pilão. Pilava sabe o quê? Água. Pilava água. Não, não era milho, nem mapira, nem o quê. Água, grãos do céu.
Aproximei. Ela cantava uma canção triste, parecia que estava a adormecer a si própria. Perguntei a razão daquele trabalho.
— Estou a pilar.
— Esses são grãos?
— Sao tuas lágrimas, marido.
Foi então: vi que ali, naquele pilão, estava a origem do meu sofrimento. Pedi que parasse mas a minha voz deixou de se ouvir. Ficou cega a minha garganta. Só aquele tunc-tunc-tunc do pilão sempre batendo, batendo, batendo. Aos poucos, fui vendo que o barulho me vinha do peito, era o coração me castigando. Invento? Inventar, qualquer pode. Mas eu daqui da cela só vejo as paredes da vida. Posso sentir um sonho, perfume passante. Agarrar não posso. Agora, já troquei minha vida por sonhos. Não foi só esta noite que sonhei com ela. A noite antepassada, doutor, até chorei. Foi porque assisti minha morte. Olhei no corredor e vi sangue, um rio dele. Era sangue órfão. Sem o pai que era o meu braço cortado. Sangue detido como o dono. Condenado. Não lembro como cortei. Tenho memória escura, por causa dessas tantas noites que bebi.
E sabe, nesse tal sonho, quem salvou o meu sangue espalhado? Foi ela. Apanhou o sangue com as suas mãos antigas. Limpou aquele sangue, tirou a poeira, carinhosa. Juntou os pedaços e ensinou-lhes o caminho para regressar ao meu corpo. Depois ela me chamou com esse nome que eu tenho e que já esqueci, porque ninguém me chama. Sou um número, em mim uso algarismos não letras.
O senhor me pediu para confessar verdades. Está certo, matei-lhe. Foi crime? Talvez, se dizem. Mas eu adoeço nessa suspeita. Sou um vivo, não desses que enterra as lembranças. Esses têm socorro do esquecimento. A morte não afasta-me essa Carlota. Agora, já sei: os mortos nascem todos no mesmo dia. Só os vivos têm datas separadas. Carlota voou? Daquela vez que lhe entornei água foi na mulher ou no pássaro? Quem pode saber? O senhor pode?
Uma coisa eu tenho máxima certeza: ela ficou, restante, por fora do caixão. Os que choravam no enterro estavam cegos. Eu ria. É verdade, ria. Porque dentro do caixão que choravam não havia nada. Ela fugira, salva nas asas. Me viram rir assim, não zangaram. Perdoaram-me. Pensaram que eram essas gargalhadas que não são contrárias da tristeza. Talvez eram soluços enganados, suor do sofrimento. E rezavam. Eu não, não podia. Afinal, não era uma morta falecida que estava ali. Muito-muito era um silêncio na forma de bicho.

4. VOU APRENDER A SER ÁRVORE

De escrever me cansei das letras. Vou ultimar aqui. Já não preciso defesa, doutor. Não quero. Afinal das contas, sou culpado. Quero ser punido, não tenho outra vontade. Não por crime mas por meu engano. Explicarei no final qual esse engano. Há seis anos me entreguei, prendi-me sozinho. Agora, próprio eu me condeno.
De tudo estou agradecido, senhor doutor. Levei seu tempo, só de graça. O senhor me há-de chamar de burro. Já sei, aceito. Mas, peço desculpa, se faz favor: o senhor, sabe o que da minha pessoa? Não sou como outros: penso o que aguento, não o que preciso. O que desconsigo não é de mim. Falha de Deus, não minha. Porquê Deus não nos criou já feitos? Completos, como foi nascido um bicho a quem só falta o crescimento. Se Deus nos fez vivos porque não deixou sermos donos da nossa vida?
Assim, mesmo brancos somos pretos. Digo-lhe, com respeito. Preto o senhor também. Defeito da raça dos homens, esta nossa de todos. Nossa voz, cega e rota, já não manda. Ordens só damos nos fracos: mulheres e crianças. Mesmo esses começam a demorar nas obediências. O poder de um pequeno fazer os outros mais pequenos, pisar os outros como ele próprio é pisado pelos maiores. Rastejar é o serviço das almas. Costumadas ao chão como que podem acreditar no céu?
Descompletos somos, enterrados terminamos. Vale a pena ser planta, senhor doutor. Mesmo vou aprender a ser árvore. Ou talvez pequena erva porque árvore aqui dentro não dá. Porqu os baloii (Baloii: feiticeiros, deitadores de sorte {plural de nóii}) não tentam de ser plantas, verde-sossegadas? Assim, eu não precisava matar Carlota. Só lhe desplantava, sem crime, sem culpa.
Só tenho medo de uma coisa: de frio. Toda a vida sofri do frio. Tenho paludismo não é no corpo, é na alma. O calor pode apertar: sempre tenho tremuras. O Bartolomeu, meu cunhado, costumava dizer: “fora de casa sempre faz frio.” Está certo. Mas eu, doutor, que casa eu tive? Nenhuma. Terra nua, sem aqui nem onde. Num lugar assim, sem chegada nem viagem, preciso aprender espertezas. Não dessas que avançam na escola. Esperteza redonda, esperteza sem trabalho certo nem contrato com ninguém.
Nesta carta última o senhor me vê assim, desistido. Porquê estou assim? Porque o Bartolomeu me visitou hoje e me contou tudo como se passou. No enfim, compreendi o meu engano. Bartolomeu me concluiu: afinal a sua mulher, minha cunhada, não era uma nóii. Isso ele confirmou umas tantas noites. Espreitava de vigia para saber se a mulher dele tinha ou não outra ocupação nocturna. Nada, não tinha. Nem gatinhava, nem passarinhava. Assim, Bartolomeu provou o estado de pessoa da sua esposa.
Então, pensei. Se a irmã da minha mulher não era nóii, a minha mulher também não era. O feitiço mal de irmãs, doença das nascenças. Mas eu como podia adivinhar sozinho? Não podia, doutor.
Sou filho do meu mundo. Quero ser julgado por outras leis, devidas da minha tradição. O meu erro não foi matar Carlota. Foi entregar a minha vida a este seu mundo que não encosta com o meu. Lá, no meu lugar, me conhecem. Lá podem decidir das minhas bondades. Aqui, ninguém. Como posso ser defendido se não arranjo entendimento dos outros? Desculpa, senhor doutor: justiça só pode ser feita onde eu pertenço. Só eles sabem que, afinal, eu não conhecia que Carlota Gentina não tinha asas para voar.
Agora já é tarde. Só reparo o tempo quando já passou. Sou um cego que vê muitas portas. Abro aquela que está mais perto. Não escolho, tropeço a mão no fecho. Minha vida não é um caminho. É uma pedra fechada à espera de ser areia. Vou entrando nos grãos do chão, devagarinho. Quando me quiserem enterrar já eu serei terra. Já que não tive vantagem na vida, esse ser o privilégio da minha morte.


— Mia Couto, no livro "Noites anoitecidas". Lisboa: Editorial Caminho,1987.
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