A nuvem - Rubem Braga

Camille Pissarro - fields - 1877
A nuvem

Fico admirado como é que você, morando nesta cidade, consegue escrever uma semana inteira sem reclamar, sem protestar, sem espinafrar!
E meu amigo falou de água, telefone, Light em geral, carne, batata, transporte, custo de vida, buracos na rua, etc., etc., etc.
Meu amigo está, como dizem as pessoas exageradas, grávido de razões. Mas que posso fazer? Até que tenho reclamado muito isto e aquilo. Mas se eu for ficar rezingando todo dia, estou roubado: quem é que vai aguentar me ler? Acho que o leitor gosta de ver suas queixas no jornal, mas em termos.
Além disso, a verdade não está apenas nos buracos das ruas e outras mazelas. Não é verdade que as amendoeiras neste inverno deram um show luxuoso de folhas vermelhas voando no ar? E ficaria demasiado feio eu confessar que há uma jovem gostando de mim? Ah, bem sei que esses encantamentos de moça por um senhor maduro duram pouco. São caprichos de certa fase. Mas que importa? Esse carinho me faz bem; eu o recebo terna e gravemente; sem melancolia, porque sem ilusão. Ele se irá como veio, leve nuvem solta na brisa, que se tinge um instante de púrpura sobre as cinzas de meu crepúsculo.
E olhem só que tipo de frase estou escrevendo! Tome tenência, velho Braga. Deixe a nuvem, olhe para o chão — e seus tradicionais buracos.

Rio, agosto, 1959.

— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Rio de Janeiro: Record, 2010.

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