Verdadeira história de um amor ardente - Marina Colasanti

Leonid Afremov  - kiss
Verdadeira história de um amor ardente

Nunca tivera namorada, esposa, amante. Desde jovem vivia só. Entretanto, passando os anos, sentia-se como se mais só ficasse, adensando-se ao seu redor aquele mesmo silêncio que antes lhe parecera apenas repousante. E, vindo por fim a tristeza instalar-se no seu cotidiano, decidiu providenciar uma companheira que, partilhando com ele o espaço, expulsasse a intrusa lamentosa.
Em loja especializada adquiriu grande quantidade de cera, corantes, e todo o material necessário. Em breves estudos nos almanaques e tratados aprendeu a técnica. E logo, trancado à noite em sua casa, começou a moldar aquela que preencheria seus desejos.
Pronta, surpreendeu-se com a beleza que quase inconscientemente lhe havia transmitido. A suavidade opalinada, rósea palidez que aqui e ali parecia acentuar-se num rubor, não tinha semelhança com a áspera pele das mulheres que porventura conhecera. Nem a elegância altiva desta podia comparar-se à rusticidade quase grosseira daquelas. Era uma dama de nobre silêncio. E só tinha olhos para ele.
Perdidamente a amou. O calor dos seus abraços tornando aquele corpo ainda mais macio, conferia-lhe uma maleabilidade em que todo toque se imprimia, formando e deformando a amada no fluxo do seu prazer.
Já há algum tempo viviam juntos, quando uma noite a luz faltou. Começava ele a cansar-se de tanta docilidade. Começava ela a empoeirar-se, turvando em manchas acinzentadas os tons antes translúcidos. Um certo tédio havia-se infiltrado na vida do casal. Que ele tentava justamente combater naquela noite empunhando um bom livro, no momento em que a lâmpada apagou.
Sentado na poltrona, com o livro nas mãos prometendo delícias, ainda hesitou. Depois levantou-se, e tateando, com o mesmo isqueiro com que há pouco acendera o cigarro, inflamou a trança da mulher, iluminando o aposento.
Arrastou-a então para mais perto de si, refestelou-se na poltrona. E, sereno, começou a ler à luz do seu passado amor, que queimava lentamente.

— Marina Colasanti, no livro "Um espinho de marfim e outras histórias". Porto Alegre: L&PM, 1999.

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