Quadrinho de estória - João Guimarães Rosa

Camille Pissarro - peasants harvesting potatoes - 1882

Quadrinho de estória

A qualquer mulher que agora vem e está passando é uma do vestido azul, por exemplo, nova, no meio do meio-dia, no foco da praça. Todo-o-mundo aqui a pode ver — para que? — cada um de seu modo e a seu grau. Mais, vê-a o homem, mãos vazias e pássaros voando, cara colada às grades.
Só em falsificado alcance a apreende, demarcada por imaginário compartimento, como o existir da gente, pessoa sozinha numa página. Ela não se volta, ondulável de fato se apresse, para distância. Vexa-a e oprime-a a fachada defronte, que dita tristeza, uma cadeia é o contrário de um pombal; recorde, aos despreocupados, em rigor, a verdade.
Construção alguma vige porém por si triste, nem a do túmulo, nem a da choupana, nem a do cárcere. Importe lá que a mulher divise-se parada ou caminhando. De seu caixilho de pedra e ferro o olhar do homem a detém, para equilíbrio e repouso, encentrada, em moldura. Seja tudo pelo amor de viver.
A vida, como não a temos.
Aqui insere o sujeito em retângulo cabeça humana com olhos com pupilas com algo; por necessitar, não por curiosidade. Via, antemão, a grande teia, na lâmpada do poste, era de uma aranha verde, muito móvel, ávida. De redor, o pouco que repetidamente esperdiça-lhe a atenção: nuvens ultravagadas, o raio de sol na areia, andorinhas asas compridas, o telhado do urubu pousado; dor de paisagem. O céu, arquiteto. Surgindo e sumindo-se rua andantes vultos, reiterantes. A vida, sem escapatória, de parte contra parte.
Ele espia, moço que se notando bem, muito prisioneiro, convidado ao desengano. Espreita as fora imagens criaturas: menino, valete, rei; pernas, pés, braços balançantes, roupas; um que a nenhum fulanamente por acaso se parece; o que recorda não se sabe quando onde; o homem com o pacote de papel cor-de-rosa. Ora — ainda — uma mulher. A figura no tetrágono.
A do vestido azul, esta, objeto, no perímetro de sua visão, no tempo, no espaço. Desfaz o vazio, conforma o momentâneo, ocupa o arbitrário segmento, possível. Opõe-se, isolante, ao que nele não acontece, em seu foro interno; e reflexos nexos. Apenas útil. Não ter mais curiosidade é já alguma coisa. O preso a vê. Mas, transvista, por meio dela, uma outra — a que foi a — que nunca mais. Seu coração não bate agradecimentos.
Da que não existe mais, descontornada, nem pode sozinho lembrar-se, sufoca-o refusa imensidão, o assombro abominável. Ele é réu, as mãos, o hálito, os olhos, seus humanos limites; só a prisão o salve do demasiado. Sempre outra vez tem de apoiar, nas tão vivas, que passam, a vontade de lembrança dela, e contemplo: o mundo visto em ação. Assim a do vestido azul, em relevo, fina, e aí eis, salteada de perfil, como um retrato em branco, alheante, fixa no perpasso. Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente. O sol da manhã é enganoso meio mágico, gaio inventa-se, invade a quadrada abertura por onde ele é avistado e vê, fenestreca. Era bom não chover.
Desde que diluz, tem ele de se prender ali mais, ante onde as repassantes outras mulheres, precisas: seus olhos respiram de as achar de vista. O sol se risca, gradeado, nasce, já nos desígnios do despenhadeiro. O absurdo. Pensa, às vezes, por descuido e espinho. A amava... — e aquilo hediondo sob instante sucedera! — então não há liberdade, por força menor das coisas, informe, não havia. A liberdade só pode ser de mentira.
A pequena fenda na parede sequestra uma extensão, afunda-a, como por um óculo: alvéolo. A do vestido azul nele entrepaira; espessa presença, portanto apenas visível. Assusta, a intransparência equívoca das pessoas, enviadas. Elas não são. A alma, os olhos — o amor da gente — apenas começam. O homem espia, dôidas as tardes.
Espera a brandura do cansaço. O sol morre para todos, o rubro. Entra o carcereiro, para correr os ferros. Diz: — “Tomara que...” — por costume. Deu-se o dia, no oblíquo anoitecer, fatos não interrompidos; as coisas é que estão condenadas. Tem-se o preso estendido, definido seu grabato, em contraquadro, dorme a sono solto.
Dês madrugar, forçoso pelo reabrir as pálpebras, ele se repete, para os quatro cantos da cela. Demais não se desprende de seu talhado posto, de enxergar, de nada. Vivem as mulheres, que passam, encerram o momento; delas nem adiantaria ter mais, descortinado, o que de antes e de depois, nem o tempo inteiro. Agora, a do vestido azul, esta. Ele não a matou, por ciúme...
À outra — que não existe mais — soltou-a: como a um brusco pássaro; não no claro mundo, confinada, sem certeza. Então, não existe prisão. O a que se condenou — de, juntos, não poder mais vir a acontecer — é como se todavia alhures estivesse acontecendo, sempre. Os dois. Ele, porém, aqui, desconhecidamente; esta a vermelha masmorra.
A de azul, aqui, avistada de lado, o ar dela em torno para roxo, entre muralhas não imagináveis. As pessoas não se libertam. O carcereiro é velho, com rumor, nada aprendeu a despertado dizer: — “Tenho a chave...” Se a visão cresce, o obstáculo é mutável. Ninguém quer nascer, ninguém quer morrer. Sejam quais o sol e céu, a palavra horizonte é escura.
Ou então.
Que ver — como bicho saído dos tampos da tristeza — ele quer; seus olhos perseguem. As quantas mulheres, outroutra vez, contra acolá o muro, vivas e quentes, o todo teatro. A de azul, agora, cabe para surpreendida através de intervalo, de encerro: seu corpo, seguridade imóvel — não desfeita — detardada.
Mas ele não pode querer; e só memória. O vão, por onde vê, recorta pedaço de céu, pelo meio a copa da árvore, o plano de onde as pessoas desaparecem, imediatas. Escuta os passos do soldado sentinela, são passadas mandadamente, sob a janela mesma, embora não se veja, não.
Se bem.
Ele não pode arrepender-se. Tanto nem saiba de um seu transformar-se, exato, lento, escuso. Essas mulheres, a de azul, que revêm, desmentem-se, para muito longas viagens. Daquela. A que a gente ama: viva vivente, que modo reavê-la? Ela, transeunte, não o amara, conseguidamente; ele não atenta arrepender-se, chorar seria como presenciar-se morrer.
Teme, sob tudo, improvisa, a descentrada extensão, extravagância. Amar é querer se unir a uma pessoa futura, única, a mesma do passado? Diz o carcereiro: — “Há-de-o...” Nada lhe vale. Só o cansaço — feito sobre si mesmo estivesse ele abrindo desmedidas asas — e os relógios todos rompendo por aí a fora.
Seu cluso é uma caixa, com ângulos e faces, sem tortuoso, não imóvel. Dorme, julgável, persuadido, o pseudopreso: o rosto fechado mal traduz o não-intento das sombras. Diz-se-lhe, porém, de fundo, o que ninguém sabe, sussurro, algo; a sorte, a morte, o amor — inerem-nos.
Sob sorrisos, sucessivos, entredemonstrados. Percebe, reconhece, para lá daqui, aquela, a jamais extinta, transiente, em dado lugar, nas vezes desse tempo? Ternura entreaberta, distinguível, indesconhecível: ela, em formato, em não azul, em oval.
Ele, seus traços ora porém se atormentam; no sonho, mesmo, vigia que vai despertar, lobriga. E teme, contrito, conduzido. À cara, ocorrem-lhe maquinais lágrimas, os olhos hodiernos. Entanto de novo se apazigua, um tanto, porventurosamente: para o amanhecer, apesar de tudo. A liberdade só pode ser um estado diferente, e acima. A noite, o tempo, o mundo, rodam com precisão legítima de aparelho.

 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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