Che Guevara - aforismos e excertos

Che Guevara


❝ É preciso endurecer, sem perder a ternura, jamais. 
— Che Guevara, no livro “Sem perder a ternura: pequeno livro de pensamentos de Che Guevara”. Rio de Janeiro: Record, 1999  

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 ❝ Se você é capaz de tremer de indignação cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros. 
— Che Guevara, no livro “Sem perder a ternura: pequeno livro de pensamentos de Che Guevara”. Rio de Janeiro: Record, 1999  

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 ❝ O caminho é longo e em parte desconhecido; conhecemos nossas limitações. Faremos, nós mesmos, o homem do século XXI. 
— Che Guevara, no livro “Sem perder a ternura: pequeno livro de pensamentos de Che Guevara”. Rio de Janeiro: Record, 1999  

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 ❝ Deixe-me lhe dizer, com o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é feito de grandes sentimentos de amor. 
— Che Guevara, no livro “Sem perder a ternura: pequeno livro de pensamentos de Che Guevara”. Rio de Janeiro: Record, 1999  

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 ❝ A universidade deve ser flexível, pintar-se de negro, de mulato, de operário, de camponês ou então ficar sem portas, e o povo invadirá a Universidade e a pintará com as cores que quiser. 
— Che Guevara, no livro “Sem perder a ternura: pequeno livro de pensamentos de Che Guevara”. Rio de Janeiro: Record, 1999

Somos todos Chapecoense - Fabrício Carpinejar

Chapecoense - jogadores
E quando uma cidade inteira morre? Uma cidade para no ar?

Quando uma cidade some e o sangue se transforma em vento?

Quando os relâmpagos emudecem. Quando as estrelas ficam envergonhadas de brilhar e o sol de aparecer.

Quando uma cidade perde as suas residências dentro de um avião? Porque cada homem era uma casa, uma família, uma esperança.

A queda da aeronave na Colômbia que levava o time do Chapecoense matou toda Chapecó na madrugada desta terça-feira (29/11). Porque Chapecó era o Chapecoense. Nunca vi uma torcida como aquela: pais, mães e filhos levantando bandeiras na Arena Condá.

As ruas se esvaziavam para ouvir melhor o coração do estádio.

Uma equipe movida pela alegria dos moradores que incentivaram com a loucura infantil do bairrismo e da gincana. Um viveiro de vozes, uma caixa de ressonância de gritos.

Uma equipe que veio de baixo, da mais simples e monocromática chuteira, da pobreza da grama em 43 anos de história, que subiu da série D para A em apenas seis anos em 2013, campeão catarinense por cinco vezes, que se manteve com prestígio na elite do futebol brasileiro e que disputaria a final da Copa Sul Americana na próxima quarta, o que seria seu maior título. Novatos no triunfo, mas veteranos na resiliência.

22 mil pessoas nas arquibancadas eram 210 mil pessoas na cidade. 74 mortos são 210 mil chapecoenses.

Não duvido que um país inteiro não tenha definhado junto em Rionegro, perto de Medellín, na Colômbia.

Jamais contaremos os mortos da tragédia. Jamais saberemos ao certo o número de mortos. Somos hoje todos desaparecidos.

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fonte: Blogs/O Globo, 29.11.2016.

A história do homem-leopardo - Jack London

©Gustave Courbet
A história do homem-leopardo
Jack London (1876-1916 | Estados Unidos)

Ele tinha um olhar sonhador e distante, e sua voz triste, insistente, cortês como a de uma criada, parecia a plácida personificação de alguma melancolia arraigada. Ele era o Homem Leopardo, embora não tivesse essa aparência. Sua ocupação, da qual vivia, era aparecer em uma jaula de leopardos que se exibiam diante de grandes platéias e audiências vastas e excitar essas platéias por certas demonstrações de nervos de aço pelas quais seus empregadores o recompensavam em escala proporcional à excitação produzida.
Como digo, ele não parecia um leopardo. Tinha quadris e ombros estreitos e era anêmico, embora não parecesse tão oprimido pelo desânimo quanto por uma doce e gentil tristeza, cujo peso era também dócil e gentilmente suportado. Durante uma hora eu tentara tirar dele uma história, mas parecia faltar-lhe imaginação. Para ele não havia qualquer romance em sua magnífica carreira, nenhuma ação de ousadia, nenhuma excitação - nada além de uma monotonia cinzenta e enfado infinito.
Leões? Oh, ele havia lutado com eles. Não era nada. Tudo o que você tinha que fazer era ficar sóbrio. Qualquer um poderia bater num leão com uma vareta comum para que ele ficasse parado. Havia lutado com um por quase meia hora. Era só bater-lhe no focinho a cada vez que ele avançasse e, quando ele ficava ardiloso e avançava com a cabeça baixa, a coisa a fazer era esticar a perna. Quando ele fosse agarrar a perna, você a puxava para trás e batia-lhe novamente no focinho.
Com seu olhar distante e fala tranqüila, mostrou-me suas cicatrizes. Havia muitas, e uma recente onde uma tigresa tentara arrancar-lhe o ombro e afundara os dentes até o osso. Eu podia ver os rasgões cuidadosamente remendados no paletó que ele usava. Seu braço direito, do cotovelo para baixo, parecia ter passado por uma debulhadora, tal o estrago feito por garras e caninos. Mas não era nada, disse ele, só as velhas feridas o incomodavam um pouco quando chegava a época das chuvas.
De repente, seu rosto iluminou-se com uma lembrança, porque ele estava realmente tão ansioso para me contar uma história quanto eu para ouvi-Ia.
- Suponho tenha ouvido falar do domador de leões que era odiado por outro homem... - disse ele.
Fez uma pausa e olhou pensativo para um leão doente na jaula em frente.
- Está com dor de dentes - explicou. - Bem, o grande número do domador de leões para a platéia era botar a cabeça dele na boca de um leão. O homem que o odiou assistia a todos os espetáculos na esperança de algum dia ver aquele leão fechar a boca. Ele seguiu o show por todo o país. Os anos passaram e ele envelheceu, e o domador de leões envelheceu, e o leão envelheceu. E afinal um dia, sentado na primeira fila, ele assistiu ao que vinha esperando. O leão fechou a boca, e não houve necessidade alguma de se chamar um médico.
O Homem Leopardo olhou despreocupadamente para suas unhas de um modo que teria sido decisivo se não fosse tão triste.
- Agora, isso é o que eu chamo de paciência - continuou ele -, é meu estilo. Mas não era o estilo de um sujeito que conheci. Ele era um engolidor de espadas e prestidigita-dor francês, baixinho, magro e mirrado. Chamava-se DeVille e tinha uma esposa bonita. Ela trabalhava no trapézio e costumava mergulhar do telhado numa rede, descendo rodopiando da maneira mais bonita que puder imaginar.
"DeVille tinha reações rápidas, tão rápidas quanto sua mão, e a mão dele era tão rápida quanto a pata de um tigre. Um dia, porque o diretor do circo chamou-o de comedor de rãs, ou algo assim e talvez um pouco pior, ele o empurrou contra a parede de pinho macio que usava em seu número de atirar facas, tão depressa que o diretor não teve tempo para pensar, e lá, diante da platéia, DeVille manteve o ar em fogo com suas facas, afundando-as na madeira em volta do diretor, tão perto que atravessaram suas roupas e a maioria beliscou-lhe a pele.
"Os palhaços tiveram que arrancar as facas para soltá-lo, porque ele estava firmemente pregado. Assim, correu a notícia para que se tomasse cuidado com DeVille, e ninguém ousou ser algo mais do que ligeiramente cortês com sua mulher. E ela era uma biscateira muito da sonsa, só que todas as mãos tinham medo de DeVille.
"Mas havia um homem, Wallace, que tinha medo de nada. Ele era o domador de leões e fazia o mesmo número de pôr a cabeça na boca do leão. Ele a punha na boca de qualquer um deles, embora preferisse Augustus, um animal grande e de boa índole, no qual sempre se podia confiar.
"Como eu estava dizendo, Wallace - nós o chamávamos "Rei" Wallace - não tinha medo de coisa alguma, viva ou morta. Ele era um rei e ninguém tinha dúvidas. Eu o vi, bêbado, numa aposta, entrar na jaula de um leão que tinha ficado perigoso e, sem uma vara, dar fim nele. Fez isso simplesmente dando-lhe um soco no focinho.
"A Sra. DeVille. .. "
Por causa de um alvoroço atrás de nós, o Homem Leopardo se virou. Era uma jaula dividida, e um macaco, metendo a mão pelas barras e ao redor da divisória, tivera sua pata presa por um grande lobo cinza que estava tentando arrancá-Ia com toda a força. O braço parecia ir-se esticando mais e mais, como um elástico grosso, e os companheiros do infeliz faziam uma algazarra terrível. Não havia um zelador por ali, então o Homem Leopardo deu alguns passos, bateu no lobo com um golpe certeiro no focinho com a pequena bengala que carregava e voltou com um sorriso tristemente apologético para completar sua frase inacabada como se não tivesse havido qualquer interrupção.
- ... olhou para o Rei Wallace e o Rei Wallace olhou para ela, enquanto DeVille os olhava feio. Nós prevenimos Wallace, mas foi em vão. Ele riu de nós, como riu de DeVille um dia quando enfiou a cabeça dele num balde de cola porque ele queria lutar.
"DeVille ficou num estado lamentável - eu ajudei a limpá-lo, mas ele estava frio como gelo e não fez qualquer tipo de ameaça. Mas eu vi em seus olhos um brilho que tinha visto muitas vezes nos olhos de animais selvagens, e saí de meus cuidados para dar a Wallace um último aviso... Ele riu, mas não olhou tanto na direção da Senhora DeVille depois disso.
"Vários meses se passaram. Nada havia acontecido e eu estava começando a pensar que tudo não passara de um susto. Estávamos no Oeste naquela época, apresentan-do-nos em Frisco. Era o espetáculo da tarde, e a grande tenda estava cheia de mulheres e crianças, quando fui atrás de Denny Vermelho, o encarregado-chefe que tinha saído com meu canivete.
"Passando por uma das barracas que serviam de camarim, dei uma olhada por um buraco na lona para ver se o localizava. Ele não estava lá, mas bem na minha frente estava o Rei Wallace, de ceroulas, esperando sua vez de ir para a jaula dos leões amestrados. Ele assistia e se divertia muito com uma discussão entre um casal de trapezistas. Todas as outras pessoas na barraca do camarim assistiam à mesma coisa, com a exceção de DeVille, que percebi estar encarando Wallace com indisfarçável ódio. Wallace e os outros estavam ocupados demais para perceber isto ou o que se seguiu.
"Mas eu vi pelo buraco na lona. DeVille tirou o lenço do bolso, fez como se secasse com ele o suor do rosto (o dia estava quente) e, ao mesmo tempo, caminhou para trás de Wallace. Ele não parou, mas com um volteio do lenço deteve-se bem na soleira da porta, de onde virou a cabeça ao passar, e deu uma rápida olhada para trás. O olhar me perturbou na ocasião, porque não vi nele apenas ódio, vi também triunfo.
"DeVille vai ficar à espreita, eu disse a mim mesmo, e eu realmente respirei aliviado quando o vi sair pela entrada do circo e subir a bordo de um trem elétrico para o centro da cidade. Alguns minutos depois eu estava na grande lona, onde revistava o Denny Vermelho. O Rei Wallace fazia seu número e dominava a platéia enfeitiçada. Ele tinha um ar especialmente perverso e manteve os leões agitados até que estivessem todos rosnando, quer dizer, todos menos o velho Augustus, que era simplesmente gordo, preguiçoso e velho demais para ficar excitado com o que quer que fosse.
"Finalmente Wallace fez estalarem os joelhos do leão velho com seu chicote e colocou-o em posição. O velho Augustus, piscando com benevolência, abriu a boca e para lá foi a cabeça de Wallace. Então as mandíbulas se fecharam, nheco, bem assim."
O Homem Leopardo sorriu de um modo gentilmente melancólico e o olhar distante voltou a seus olhos.
- E este foi o fim do Rei Wallace - continuou ele em sua voz triste e baixa. - Depois que a excitação baixou, esperei minha oportunidade, abaixei-me e cheirei a cabeça de Wallace. Então espirrei.
- E... e era... ? - indaguei com uma avidez hesitante.
- Rapé - que DeVille derrubou no cabelo dele na barraca do camarim. O velho Augustus nunca pretendeu fazer aquilo. Ele só espirrou.

Conto de Jack London
Tradução de Celina Portocarrero

- no livro "Os 100 melhores contos de crime e mistério da literatura universal". [Organização de Flávio Moreira da Costa]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002

Fidel - Eduardo Galeano

Fidel Castro - foto: A. Ernesto

Fidel

Seus inimigos dizem que foi rei sem coroa e que confundia a unidade com a unanimidade.
E nisso seus inimigos têm razão.
Seus inimigos dizem que, se Napoleão tivesse tido um jornal como o Granma, nenhum francês ficaria sabendo do desastre de Waterloo.
E nisso seus inimigos têm razão.
Seus inimigos dizem que exerceu o poder falando muito e escutando pouco, porque estava mais acostumado aos ecos que às vozes.
E nisso seus inimigos têm razão.
Mas seus inimigos não dizem que não foi para posar para a História que abriu o peito para as balas quando veio a invasão, que enfrentou os furacões de igual pra igual, de furacão a furacão, que sobreviveu a 637 atentados, que sua contagiosa energia foi decisiva para transformar uma colônia em pátria e que não foi nem por feitiço de mandinga nem por milagre de Deus que essa nova pátria conseguiu sobreviver a dez presidentes dos Estados Unidos, que já estavam com o guardanapo no pescoço para almoçá-la de faca e garfo.
E seus inimigos não dizem que Cuba é um raro país que não compete na Copa Mundial do Capacho.
E não dizem que essa revolução, crescida no castigo, é o que pôde ser e não o quis ser. Nem dizem que em grande medida o muro entre o desejo e a realidade foi se fazendo mais alto e mais largo graças ao bloqueio imperial, que afogou o desenvolvimento da democracia a la cubana, obrigou a militarização da sociedade e outorgou à burocracia, que para cada solução tem um problema, os argumentos que necessitava para se justificar e perpetuar.
E não dizem que apesar de todos os pesares, apesar das agressões de fora e das arbitrariedades de dentro, essa ilha sofrida mas obstinadamente alegre gerou a sociedade latino-americana menos injusta.
E seus inimigos não dizem que essa façanha foi obra do sacrifício de seu povo, mas também foi obra da pertinaz vontade e do antiquado sentido de honra desse cavalheiro que sempre se bateu pelos perdedores, como um certo Dom Quixote, seu famoso colega dos campos de batalha.


- Eduardo Galeano, no livro "Espelhos, uma história quase universal". [tradução de Eric Nepomuceno]. Porto Alegre: L&PM, 2008

Flor, telefone, moça - Carlos Drummond de Andrade

©Xuan loc Xuan

flor, telefone, moça

Não, não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem falava, e é doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos.
Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga — bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores — ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.
— Sei de um caso de flor que é tão triste!
E sorrindo:
— Mas você não vai acreditar, juro.
Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.
— Era uma moça que morava na rua General Polidoro, começou ela. Perto do cemitério São João Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que de não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.
Se o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar no portão do cemitério, para dar uma espiada. Você já notou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores — por disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o préstito até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar para passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça, pela curiosidade dos enterros, sei lá por quê, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo. Coitada!
— No interior isso não é raro...
— Mas a moça era de Botafogo.
— Ela trabalhava?
— Em casa. Não me interrompa. Você não vai me pedir a certidão de idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contando, isso não interessa. O certo é que de tarde costumava passear — ou melhor, “deslizar” pelas ruinhas brancas do cemitério, mergulhada em cisma. Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões — sim, há de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse ao morro, onde está a parte nova do cemitério, e as covas mais modestas. E deve ter sido lá que, uma tarde, ela apanhou a flor.
— Que flor?
— Uma flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de flor. Apanha, leva ao nariz — não tem cheiro, como inconscientemente já se esperava —, depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa mais nisso.
Se a moça jogou a margarida no chão do cemitério ou no chão da rua, quando voltou para casa, também ignoro. Ela mesma se esforçou mais tarde por esclarecer esse ponto, mas foi incapaz. O certo é que já tinha voltado, estava em casa bem quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou, ela atendeu.
— Alooô...
— Quede a flor que você tirou de minha sepultura?
A voz era longínqua, pausada, surda. Mas a moça riu. E, meio sem compreender:
— O quê?
Desligou. Voltou para o quarto, para as suas obrigações. Cinco minutos depois, o telefone chamava de novo.
— Alô.
— Quede a flor que você tirou de minha sepultura?
Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote. A moça riu de novo, mas preparada.
— Está aqui comigo, vem buscar.
No mesmo tom lento, severo, triste, a voz respondeu:
— Quero a flor que você me furtou. Me dá minha florzinha.
Era homem, era mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não se identificava. A moça topou a conversa:
— Vem buscar, estou te dizendo.
— Você bem sabe que eu não posso buscar coisa nenhuma, minha filha. Quero minha flor, você tem obrigação de devolver.
— Mas quem está falando aí?
— Me dá minha flor, eu estou te suplicando.
— Diga o nome, senão eu não dou.
— Me dá minha flor, você não precisa dela e eu preciso. Quero minha flor, que nasceu na minha sepultura.
O trote era estúpido, não variava, e a moça, enjoando logo, desligou. Naquele dia não houve mais nada.
Mas no outro dia houve. À mesma hora o telefone tocou. A moça, inocente, foi atender.
— Alô!
— Quede a flor...
Não ouviu mais. Jogou o fone no gancho, irritada. Mas que brincadeira é essa! Irritada, voltou à costura. Não demorou muito, a campainha tinia outra vez. E antes que a voz lamentosa recomeçasse:
— Olhe, vire a chapa. Já está pau.
— Você tem que dar conta de minha flor, retrucou a voz de queixa. Pra que foi mexer logo na minha cova? Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, já acabei. Me faz muita falta aquela flor.
— Esta é fraquinha. Não sabe de outra?
E desligou. Mas, voltando ao quarto, já não ia só. Levava consigo a ideia daquela flor, ou antes, a ideia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma flor no cemitério, e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Pela voz não seria fácil acertar. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se podia saber ao certo se de homem ou de mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como de interurbano. Parecia vir de mais longe ainda... Você está vendo que a moça começou a ter medo.

— E eu também.
— Não seja bobo. O fato é que aquela noite ela custou a dormir. E daí por diante é que não dormiu mesmo nada. A perseguição telefônica não parava. Sempre à mesma hora, no mesmo tom. A voz não ameaçava, não crescia de volume: implorava. Parecia que o diabo da flor constituía para ela a coisa mais preciosa do mundo, e que seu sossego eterno — admitindo que se tratasse de pessoa morta — ficara dependendo da restituição de uma simples flor. Mas seria absurdo admitir tal coisa, e a moça, além do mais, não queria se amofinar. No quinto ou sexto dia, ouviu firme a cantilena da voz e depois passou-lhe uma bruta descompostura. Fosse amolar o boi. Deixasse de ser imbecil (palavra boa, porque convinha a ambos os sexos). E se a voz não se calasse, ela tomaria providências.
A providência consistiu em avisar o irmão e depois o pai. (A intervenção da mãe não abalara a voz.) Pelo telefone, pai e irmão disseram as últimas à voz suplicante. Estavam convencidos de que se tratava de algum engraçado absolutamente sem graça, mas o curioso é que, quando se referiam a ele, diziam “a voz”.
— A voz chamou hoje? indagava o pai, chegando da cidade.
— Ora. É infalível, suspirava a mãe, desalentada.
Descomposturas não adiantavam, pois, ao caso. Era preciso usar o cérebro. Indagar, apurar na vizinhança, vigiar os telefones públicos. Pai e filho dividiram entre si as tarefas. Passaram a frequentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas. Se alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvido do espião se afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de jazigo. E restava a rede dos telefones particulares. Um em cada apartamento, dez, doze no mesmo edifício. Como descobrir?
O rapaz começou a tocar para todos os telefones da rua General Polidoro, depois para todos os telefones das ruas transversais, depois para todos os telefones da linha dois-meia... Discava, ouvia o alô, conferia a voz — não era —, desligava. Trabalho inútil, pois a pessoa da voz devia estar ali por perto — o tempo de sair do cemitério e tocar para a moça — e bem escondida estava ela, que só se fazia ouvir quando queria, isto é, a uma certa hora da tarde. Essa questão de hora também inspirou à família algumas diligências. Mas infrutíferas.
Claro que a moça deixou de atender telefone. Não falava mais nem para as amigas. Então a “voz”, que não deixava de pedir, se outra pessoa estava no aparelho, não dizia mais “você me dá minha flor”, mas “quero minha flor”, “quem furtou minha flor tem de restituir” etc. Diálogo com essas pessoas a “voz” não mantinha. Sua conversa era com a moça. E a “voz” não dava explicações.
Isso durante quinze dias, um mês, acaba por desesperar um santo. A família não queria escândalos, mas teve de queixar-se à polícia. Ou a polícia estava muito ocupada em prender comunista, ou investigações telefônicas não eram sua especialidade — o fato é que não se apurou nada. Então, o pai correu à Companhia Telefônica. Foi recebido por um cavalheiro amabilíssimo, que coçou o queixo, aludiu a fatores de ordem técnica...
— Mas é a tranquilidade de um lar que eu venho pedir ao senhor! É o sossego de minha filha, de minha casa. Serei obrigado a me privar de telefone?
— Não faça isso, meu caro senhor. Seria uma loucura. Aí é que não se apurava mesmo nada. Hoje em dia é impossível viver sem telefone, rádio e refrigerador. Dou-lhe um conselho de amigo. Volte para sua casa, tranquilize a família e aguarde os acontecimentos. Vamos fazer o possível.
Bem, você já está percebendo que não adiantou. A voz sempre mendigando a flor. A moça perdendo o apetite e a coragem. Andava pálida, sem ânimo para sair à rua ou para trabalhar. Quem disse que ela queria mais ver enterro passando. Sentia-se miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer conhecia. Porque — já disse que era distraída — nem mesmo se lembrava da cova de onde arrancara aquela maldita flor. Se ao menos soubesse...
O irmão voltou do São João Batista dizendo que, do lado por onde a moça passeara aquela tarde, havia cinco sepulturas plantadas.
A mãe não disse coisa alguma, desceu, entrou numa casa de flores da vizinhança, comprou cinco ramalhetes colossais, atravessou a rua como um jardim vivo e foi derramá-los votivamente, sobre os cinco carneiros. Voltou para casa e ficou à espera da hora insuportável. Seu coração lhe dizia que aquele gesto propiciatório havia de aplacar a mágoa do enterrado — se é que os mortos sofrem, e aos vivos é dado consolá-los, depois de os haver afligido.
Mas a “voz” não se deixou consolar ou subornar. Nenhuma outra flor lhe convinha senão aquela, miúda, amarrotada, esquecida, que ficara rolando no pó e já não existia mais. As outras vinham de outra terra, não brotavam de seu estrume — isso não dizia a voz, era como se dissesse. E a mãe desistiu de novas oferendas, que já estavam no seu propósito. Flores, missas, que adiantava?
O pai jogou a última cartada: espiritismo. Descobriu um médium fortíssimo, a quem expôs longamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contato com a alma despojada de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era sua fé de emergência, mas os poderes sobrenaturais se recusaram a cooperar, ou eles mesmos eram impotentes, esses poderes, quando alguém quer alguma coisa de sua última fibra, e a voz continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo (como às vezes a família ainda conjeturava, embora se apegasse cada dia mais a uma explicação desanimadora, que era a falta de qualquer explicação lógica para aquilo), seria de alguém que houvesse perdido toda noção de misericórdia; e se era de morto, como julgar, como vencer os mortos? De qualquer modo, havia no apelo uma tristeza úmida, uma infelicidade tamanha que fazia esquecer o seu sentido cruel, e refletir: até a maldade pode ser triste. Não era possível compreender mais do que isso. Alguém pede continuamente uma certa flor, e essa flor não existe mais para lhe ser dada. Você não acha inteiramente sem esperança?
— Mas, e a moça?

— Carlos, eu preveni que meu caso de flor era muito triste. A moça morreu no fim de alguns meses, exausta. Mas sossegue, para tudo há esperança: a voz nunca mais pediu.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro "Contos de aprendiz". São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Biografia, entrevistas e poemas do poeta Drummond:

Aos que defendem a volta da ditadura - Eliane Brum

Foto: Arquivo/Ales

Aos que defendem a volta da ditadura

Quando escuto brasileiros fazendo manifestação pela volta da ditadura, penso que eles não podem saber o que estão dizendo. Quem sabe, não diz. Mas esse primeiro pensamento é uma mistura de arrogância e de ingenuidade. O mais provável é que uma parte significativa desses homens e mulheres que têm se manifestado nas ruas desde o final das eleições, orgulhosos de sua falta de pudor, peçam a volta dos militares ao poder exatamente porque sabem o que dizem. Mas talvez seja preciso manter não a arrogância, mas a ingenuidade de acreditar que não sabem, porque quem sabe não diria, não poderia dizer. Não seria capaz, não ousaria. É para estes, os que desconhecem o seu dizer, estes, que talvez nem existam, que amplio aqui a voz das crianças torturadas, de várias maneiras, pela ditadura.

Crianças. Torturadas. De várias maneiras.

Como Ernesto Carlos Dias do Nascimento. Ele tinha dois anos e três meses. Foi considerado terrorista, “Elemento Menor Subversivo”, banido do país por decreto presidencial. Foi preso em 18 de maio de 1970, em São Paulo, com sua mãe, Jovelina Tonello do Nascimento. O pai, Manoel Dias do Nascimento, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), organização comandada por Carlos Lamarca, havia sido preso horas antes. Ernesto é quem conta:

“Me levaram diversas vezes às sessões de tortura para ver meu pai preso no pau de arara. Para o fazerem falar, simulavam me torturar, com uma corda, na sala ao lado, separados apenas por um biombo”.

O menino de dois anos dizia: “Não pode bater no papai. Não pode”.

E batiam.

Libertado quase um mês depois, passou os primeiros anos com pavor de policiais de farda e grupos com mais de quatro pessoas. Entrava em pânico, escondia-se debaixo da cama ou dentro do armário, mordia quem se aproximava e urinava nas calças. Ernesto foi uma criança com pesadelos recorrentes. O mais comum era com um asno, uma corda e uma agulha. “O asno usava um boné militar, a agulha tinha olhos arregalados e uma risada aguda sarcástica e corria atrás de mim, eu apavorado tentava fugir. O asno me cercava, me dava coices ou chutava coisas sobre mim. A corda parecia boazinha, disfarçada de linha se estendia até mim, mas quando eu a segurava ela  machucava minhas mãos e me deixava cair em um abismo.”

Ernesto é um dos 44 adultos torturados na infância – física e psicologicamente, mas também de outras maneiras – que contam sua história em um livro lançado em novembro pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Infância roubada – crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil é a memória do inominável que precisa ser nomeado para que cada um deles possa viver, para que o crime de Estado não se repita. A maioria dos depoimentos foi registrada em audiências na Comissão da Verdade de São Paulo. Algumas pessoas, que não puderam comparecer ou não conseguiam falar sobre o assunto, foram entrevistadas depois.

O que dizer sobre crianças torturadas pelo Estado? E torturadas ontem, em parâmetros históricos, bem aqui? Os relatos desse livro são alheios aos adjetivos. São silêncios que falam. E soluçam. Como João Carlos Schmidt de Almeida Grabois, o Joca, antes mesmo de nascer. Ele estava na barriga da mãe, Crimeia, quando ela levou choques elétricos, foi espancada em diversas partes do corpo e agredida a socos no rosto. Enquanto ela era assim brutalizada, os agentes da repressão ameaçavam sequestrar seu bebê tão logo nascesse. Quando os carcereiros pegavam as chaves para abrir a porta da cela e levar Crimeia à sala de tortura, o bebê começou a soluçar dentro da barriga. Joca nasceu na prisão e, anos depois, já crescido, quando ouvia o barulho de chaves, voltava a soluçar. A marca da ditadura nele é um soluço.

Perto da hora do parto, em vez de levarem Crimeia para a enfermaria, a colocaram numa cela cheia de baratas. Como o líquido amniótico escorria pelas pernas, elas a atacavam em bandos. Isso durou quase um dia inteiro. Só no fim da tarde, com outros presos gritando junto com ela, a levaram para o hospital. O obstetra disse que, como não estava de plantão, só faria a cesariana no dia seguinte. Crimeia alertou que seu filho poderia morrer. O médico respondeu: “É melhor! Um comunista a menos”. O pai de Joca foi assassinado pelo regime militar meses depois de o menino nascer. A primeira vez que ele viu o rosto do pai foi aos 18 anos, numa foto nos arquivos do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo.

Carlos Alexandre Azevedo, o Cacá, não suportou a lembrança. Talvez porque ele nunca pôde transformá-la em memória. Era nele algo vivo e sem palavras, um silêncio que não conseguia se dizer. E um silêncio que não consegue se dizer é um pavor. Ele tinha um ano e oito meses quando sua casa foi invadida por policiais do DOPS/SP, em janeiro de 1974. Como começou a chorar, os policiais deram-lhe um soco na boca que de imediato sangrou. Passou mais de 15 horas em poder da repressão, nas mãos de funcionários do Estado, enquanto lá fora gente demais vivia suas vidas fingindo que nada acontecia. Seus pais ouviram relatos de que nesse período o menino, pouco mais que um bebê, teria levado choques elétricos. Cacá se matou aos 40 anos, em 2013. Seu pai diria: “Ele ficou apavorado. E esse pavor tomou conta dele. Entendo que a morte dele foi o limite da angústia”.

Ângela Telma de Oliveira Lucena escolheu lembrar. Tinha três anos e meio quando executaram o pai diante dela. Ângela diz:

“Eu lembro como ele estava vestido. Eu lembro exatamente como tudo se desenrolou naquele dia. Eu estava no colo da minha mãe, e quando fui crescendo, durante muitos anos ficava pensando se tinha sonhado aquilo ou se era realmente um fato que tinha ocorrido. Eu vivia um conflito entre apagar, riscar aquilo da minha vida, mas, ao mesmo tempo, sabia que, se fizesse isso, estaria riscando a história da minha família. (...) As pessoas sempre colocam em dúvida se eu realmente consigo lembrar da morte do meu pai. (...) Eu gostaria muito de poder apagar esse momento do assassinato do meu pai da minha vida. Mas eu não posso, eu não quero e eu não consigo. Porque a única memória que tenho do meu pai é exatamente o momento da sua morte”.

Houve Paulo Fonteles Filho, cujo parto da mãe foi uma tortura iniciada por policiais, completada pelo médico. Aos cinco meses de gestação, Hecilda era espancada com socos e pontapés, aos gritos de: “Filho dessa raça não deve nascer”. Era mantida acordada a noite inteira com uma luz forte no rosto, no que se chamava de “tortura dos refletores”. Depois, sentada numa cadeira, os fios subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios, causando calor, frio, asfixia. Mais tarde, foi colocada numa cela cheia de baratas. Ela já não conseguia ficar nem em pé nem sentada. Como não tinha colchão, deitou-se no chão. As baratas começaram a roê-la. Ela só conseguiu tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos. Levaram-na então para o Hospital da Guarnição do Exército, em Brasília. Ela lembra da irritação extrema do médico, que induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Hecilda não chorou. Ela conta no livro Luta, Substantivo Feminino: Mulheres Torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura, publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos: “Depois disso ficavam dizendo que eu era fria, sem emoção, sem sentimentos. Todos queriam ver quem era a ‘fera’ que estava ali”. Assim é contado o nascimento de Paulo, assim é como ele começa a se contar. Nascido entre feras – nenhuma delas a sua mãe. Nascido entre humanos, os mais brutais entre as feras.

E há aqueles que não nasceram. Como o filho de Isabel Fávero que, aos dois meses de gravidez foi colocada numa sala e torturada com choques, pau de arara, ameaça de estupro e insultos verbais. No quinto dia, abortou. Isabel foi trancada num quarto fechado, onde ficou incomunicável. Ou Nádia Lucia do Nascimento, grávida de seis meses, colocada na temida “cadeira do dragão”. Depois de ter a roupa arrancada, levou choques elétricos por todo o corpo. Abortou. Teve hemorragias e dores, nenhum atendimento médico.

Essa é a memória das crianças da ditadura. É a lembrança de parto de suas mães. Nós, que não fomos torturados, não temos como alcançar como é viver com essa marca – ou tentar fazer marca do que ainda é horror – num momento histórico em que – depois de tudo – alguns brasileiros perderam a vergonha de pedir a volta da ditadura. Podemos tentar nos colocar no lugar desses homens e mulheres, hoje adultos com seus próprios filhos, alguns já avós, nascidos ou presos nos porões em que seus pais foram torturados e alguns deles assassinados. É fundamental tentar vestir o outro, mas não alcançamos. Não há como alcançar. Como é passar pela Avenida Paulista, como aconteceu algumas vezes nas últimas semanas, ouvindo os gritos de gente – gente, certamente gente – gritando por intervenção militar e volta da ditadura militar no Brasil. Como é?

Entre as dezenas de relatos desse livro, há um que destoa. Este eu conheci de perto. Testemunhei. Ao contrário da maioria, Grenaldo Erdmundo da Silva Mesut não tinha lembrança da repressão. Sequer sabia o que era ditadura para além de um nome vago, uma história que não lhe dizia respeito. Alguns poderiam supor que talvez fosse melhor assim, mas isso é desconhecer o quanto a ausência da memória é brutal, um buraco que se pressente, mas não se sabe como apalpar.

Sobre ele, a jornalista Tatiana Merlino, que o escutou e assina a edição e a organização primorosa desse livro, diz: “A ditadura deixou inúmeras marcas nos filhos das vítimas; dos desaparecidos, assassinados, presos: desde nascimento na prisão, serem levados aos órgãos de repressão, clandestinidade, exílio, banimento, etc. Há histórias de horror, de crianças que viram os pais torturados, que foram sequestradas... Mas a história do Grenaldo me toca por uma brutalidade especial a qual ele foi submetido, que é o desaparecimento, o apagamento, promovido pela ditadura, da sua própria história. A ele foi negado até o direito de vivenciar a dor da verdade de ser filho de um assassinado pelo regime. Para além da subtração da vida, do corpo, a mentira, a subtração da verdade. Quais são os impactos desse crime na construção da identidade do Grenaldo? É essa lacuna, que são se pode mensurar, que me toca profundamente”.

Meu caminho se cruzou com o de Grenaldo de uma forma que só acontece na vida real. Se fosse ficção, a história seria considerada tão fantasiosa que soaria de má qualidade. Na campanha eleitoral de 2002, eu trabalhava na revista Época e minha atribuição era contar o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva pela sua trajetória pessoal e familiar. Fiz várias reportagens e, no início do seu mandato como presidente, escrevi sobre a morte de sua primeira mulher, Maria de Lourdes, num parto em que ela e o bebê perderam a vida. Era mais uma das dores de Lula, dono de uma biografia que continha o DNA do Brasil, país que naquele momento ele começava a governar com a promessa de mudar o destino dos mais pobres e estatísticas como as da mortalidade materna.

Durante a investigação jornalística, descobri uma curiosa coincidência. O médico que assinou o atestado de óbito de Maria de Lourdes era um dos legistas acusados de ter forjado laudos para a ditadura. Sérgio Belmiro Acquesta, absolvido pelo Conselho Regional de Medicina um ano antes de morrer, era então gerente do departamento médico da Villares, metalúrgica em que Lula trabalhava como operário, e também funcionário do Instituto Médico Legal de São Paulo. Numa das páginas da reportagem havia a foto de dois casos em que ele teria atuado para apagar a responsabilidade do regime militar. Um dos retratos, em tamanho 3X4, era de um marinheiro, Grenaldo de Jesus Silva, que em 1972 sequestrou sozinho um avião da Varig. Depois de ter liberado todos os passageiros e a maior parte da tripulação, ele foi detido, imobilizado e morto no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, aos 31 anos. No dia seguinte, jornais estamparam a versão do regime: “Encurralado, terrorista suicidou-se”.

Três décadas depois, minha reportagem de capa foi publicada e essa pequena foto, mais do que toda a história de Lula e Lourdes, moveu lembranças insepultas. Dias depois, um homem que se apresentou como ex-sargento especialista da Aeronáutica, José Barazal Alvarez, então com 63 anos, procurou a revista. Quando o sequestro acabou, ele tinha sido o encarregado de fazer o relatório e recolher os pertences do morto. Ao examinar o corpo de Grenaldo, contou ter encontrado no peito uma carta ensanguentada e um segundo tiro. Nessa espécie de carta testamento, Grenaldo contava as razões do sequestro para o filho e prometia buscar a família tão logo chegasse ao Uruguai. José manteve segredo do que viu por 30 anos, não mencionou nada nem mesmo à própria mulher. Mas era assombrado pela carta, porque sabia que em algum lugar havia um filho que nunca recebera a palavra do pai, um gesto que, por não ter se completado, teria de ter causado estrago. Era desse pesadelo que José queria se libertar quando conversamos pela primeira vez. Ao ver a foto do marinheiro “suicidado” na reportagem, ele decidiu buscar o filho sem pai – e a libertação.

Eu procurei o filho. Mas mesmo entre as organizações de mortos e desaparecidos políticos da ditadura, a trajetória, as circunstâncias e a intenção do marinheiro que sequestrou um avião tinha muitas lacunas. Grenaldo foi um dos 1.509 marinheiros expulsos em 1964 por se alinhar com o presidente João Goulart. Destes, 414 foram condenados à prisão. Grenaldo recebeu a pena mais alta: cinco anos e dois meses. Fugiu e iniciou uma vida na clandestinidade. Dele era tudo o que se sabia até ressurgir num avião da Varig.

Tentei vários caminhos para encontrar seu filho, não consegui. Quando o telefone da minha mesa na redação tocou, eu ainda o procurava, mas já tinha escassas esperanças. No outro lado, uma mulher me disse que o filho do marinheiro queria conversar comigo. As linhas finalmente se cruzavam e, por um breve instante, esqueci de respirar. O que tinha se passado era algo tão prosaico, um clichê. Uma mulher folheava distraída uma revista velha no consultório do dentista, quando se deparou com o nome bastante raro. De imediato ligou para a irmã: “Leila, tem um homem aqui com o mesmo nome do seu marido. Será que não é o pai dele?”.

O marido de Leila não falava do pai. Ele era sobrevivente de uma infância arruinada, na qual o legado do pai era um “sangue ruim”. Sua mãe nunca soube das ações políticas do marido e, quando ele sumiu e reapareceu na capa dos jornais como “terrorista”, ela não pôde entender. Mônica Mesut já conhecera o marido na clandestinidade, na cidade paulista de Guarulhos, sem jamais ter sido informada de que ele tivera outra vida. Enquanto esteve com ela, Grenaldo foi vigia da construtora Camargo Corrêa e teve pelo menos dois negócios fracassados. Em 1971, começou a receber cartas que o deixavam muito nervoso. Um dia saiu de casa prometendo voltar para dar a família uma vida melhor e só voltou a aparecer num avião da Varig. O filho tinha quatro anos.

Até a vida adulta, do pai ele só sabia que era “ladrão” e “terrorista”. A família era muito pobre, sem nenhuma formação política e precária educação. Grenaldo, o filho, cresceu num cenário em que tudo faltava, entre uma mãe alcoólatra, um tio violento e uma avó devastada. Christina, a avó, e Mônica, a mãe, já eram elas mesmas sobreviventes de uma outra guerra. Ao fugir da Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial, Christina encontrou um bebê nos braços de uma mulher morta. Sem leite ou comida, rasgou o pulso e alimentou-o com sangue. Era Mônica, a mãe de Grenaldo, que em 1972 não suportou ver o marido e pai do seu filho como terrorista e suicida nas capas dos jornais. Acreditou na ditadura e na imprensa. Em uma família na qual o passado já era trevas, mais um apagamento fazia todo o sentido.

Quando Grenaldo ainda era criança, Mônica literalizou a destruição da memória ao sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) que a reduziu a quase nada. Morreria só anos depois. Enquanto viveu, Grenaldo e a mãe eram espancados primeiro pelo padrasto, depois pelo tio. O nome do pai só emergia pelo ódio, na boca de todos, por qualquer motivo e antes de cada surra: “Seu filho de ladrão!”. E então, quando ele tinha 35 anos, já professor de educação física e pai de família, apareceu aquele nome numa reportagem, com uma história diferente. Na mesma página de revista, José reencontrou o rosto que o assombrava, Grenaldo deparou-se com a face desconhecida do próprio pai.

O filho do marinheiro marcou um encontro comigo numa pizzaria de São Paulo. Eu carregava vários livros sobre a ditadura para dar a ele e um enorme temor. Como contar a um filho quem era seu pai? Como dar a um filho notícias do pai? Como se faz algo assim tão enorme, com que palavras? Me senti tão insuficiente. Cheguei mais cedo, como sempre faço, e esperei. Vi aquele homem enorme chegar, com o rosto transtornado por algo que era medo e era expectativa e era, me parecia, um pedido de compaixão. Era como se ele suplicasse com aqueles olhos arregalados, quase infantis, que eu tivesse cuidado, que eu possuía ali o poder de acabar com o delicado equilíbrio que ele havia alcançado com um esforço impossível de mensurar. Percebi que ele não tinha a menor ideia do que ia ouvir. Naquele momento, Grenaldo começou uma travessia em busca de um pai e de um país. Os dois, ao mesmo tempo. E eu era a ponte imperfeita e aquém diante dele. Quando voltei desse encontro, lembro de ter deitado na cama de roupa e ficado ali de olhos estalados até o dia amanhecer, porque era tão grande aquilo, grande demais.

Dias depois, marquei um encontro entre Grenaldo, o filho, e José, o ex-militar. A cena era impressionante. Grenaldo caiu de joelhos diante de José. E José libertou-se de um pesadelo de 30 anos. Todos naquela sala choravam. Naquele momento, a vida não cabia em nós.

José encerrava ali três décadas de um pesadelo recorrente, o de um homem assassinado, amontoado como um saco de lixo, num Opala preto da repressão. E Grenaldo iniciava uma série de noites agitadas, em que sonhava ser um detetive em busca de pistas.

Com a ajuda de um advogado, Grenaldo e eu passamos semanas, meses, buscando a carta que era sua. Numa noite, lembro de outra cena: as fotos do inquérito militar espalhadas pelo chão da sala da casa de Grenaldo. As imagens do pai morto, sangue, e nós dois tentando desvendar aquele quebra-cabeça macabro. Eu pensava: como ele vai suportar esse destino transtornado de um dia para o outro?

Grenaldo tinha – tem – algo que poderia ser definido como uma pureza resistente, algo que ele manteve intacto mesmo no inferno que foi sua infância, algo que eu já vi em outros sobreviventes, e algo que naquele momento o salvava de novo. Consegui localizar a última pessoa a encontrar seu pai com vida no avião e provar que ele foi assassinado. Testemunhas lembravam do estranho caso do homem “suicidado com um tiro na nuca”. A granada que supostamente o marinheiro portava durante o sequestro era, segundo José, um carretel de pescaria enrolado com fita crepe.

Grenaldo, o pai, foi reconhecido como um dos executados pela ditadura, e o filho pôde receber uma indenização do Estado. Meses depois, ele reencontrou a avó paterna no Maranhão e resgatou os laços perdidos com uma família que não sabia que tinha. Ele soube então que, depois de deixar a casa de Guarulhos e antes de sequestrar o avião, o marinheiro perseguido pela repressão tinha visitado a mãe, para dar a notícia de que ela tinha um neto e lhe deixar uma foto do menino. Atrás do retrato estava escrito: “São três anos que completo, sou um meninão. Um dia vou crescer, visitar o Maranhão. Naldinho. 9/6/71”. Passaram-se mais de três décadas até ele desembarcar no aeroporto de São Luís, onde a avó o esperava. Viveram uma relação de afeto pungente até a morte dela.

Nunca conseguimos encontrar a carta, e o gesto do pai jamais será completado. É enorme a tragédia de uma carta que não encontra seu destinatário. Essa letra perdida será sempre um buraco que Grenaldo terá de sustentar, mas um buraco que ele vai preenchendo com a construção da memória. Hoje ele tem um pai – e tem um país. E é com os pedaços faltantes de ambos que precisa lidar. Grenaldo se prepara agora para contar para sua filha mais velha a história do avô. E às vezes, quando um dos dois filhos diz que não consegue fazer alguma coisa, ele diz: “Não fale que você não consegue, essa palavra não pode existir. Você é neto do Grenaldo!”.

Não sei quem são os brasileiros que gritam nas ruas pedindo a volta da ditadura. Desconheço as pessoas que clamam por intervenção militar como se isso não fosse uma vergonha, uma indignidade, e sim a prerrogativa de “cidadãos de bem”. Acho que nunca tive tanto medo desse deformado discurso “do bem” quanto hoje, essa época em que todo o pudor foi perdido e a ignorância da História é ostentada como um troféu. Sei que são pessoas, porque só humanos são capazes de algo tão brutal.

Dizem que eram “apenas” 400 no primeiro sábado de dezembro, em São Paulo. Alegam que 400 pedindo intervenção militar é pouco. Eu digo que um é muito. Respeito o direito que têm de se expressar, porque ao fazê-lo reforçam a expressão máxima da democracia, na grandeza de acolher a voz até mesmo de quem exige o seu fim. Mas me reservo o direito de, por um momento, escolher a ingenuidade. Prefiro acreditar que vocês não sabem do que falam nem o que pedem. Não podem saber. Se soubessem, não ousariam.


– Eliane Brum, artigo originalmente publicado no El País, em 8 de dezembro de 2014.


Saiba mais sobre Eliane Brum:

A marca na parede - Virginia Woolf

©Edvard Munch
A marca na parede

Foi talvez em meados de janeiro deste ano que olhei pela primeira vez para cima e vi a marca na parede. Para fixar uma data é preciso lembrar o que se viu. Por isso eu penso agora no fogo; no inalterável véu de luz amarela sobre a página do meu livro; nos três crisântemos na jarra de vidro redonda na lareira. Sim, deve ter sido no inverno, e tínhamos acabado de terminar nosso chá, pois lembro que eu estava fumando quando olhei para cima e vi a marca na parede pela primeira vez. Olhei para cima, através da fumaça do cigarro, e meu olhar foi alojar-se por um momento nas brasas, e aquela velha fantasia da bandeira carmesim tremulando na torre de um castelo me veio à mente, e pensei no cortejo de cavaleiros vermelhos subindo pelo penhasco negro. Mas, para meu alívio, a fantasia foi interrompida pela visão da marca, porque é uma fantasia antiga, uma fantasia automática, constituída talvez na infância. A marca, negra na parede branca, era pequena e arredondada, a uns quinze centímetros acima do parapeito da lareira.
Quão de pronto nossos pensamentos se atiram a um novo objeto, erguendo-o por um pouco, assim como formigas que carregam febrilmente uma lasca de palha e depois a abandonam… Se a marca fosse de prego, não devia ter sido para quadro, só podia ser para miniatura — a miniatura de uma dama de cachos empoados de branco, faces empoadas de creme e lábios como cravos vermelhos. Uma fraude decerto, pois as pessoas que moraram nesta casa antes de nós teriam escolhido quadros assim — para um cômodo antigo, um quadro antigo. Eis o tipo de pessoas que eram — pessoas muito interessantes, e é tão frequente eu pensar nelas, nesses lugares tão estranhos, porque nunca voltaremos a vê-las, nunca saberemos o que aconteceu a seguir. Pretendiam sair desta casa porque queriam mudar o estilo dos móveis, assim disse ele, e estava em processo de dizer que em sua opinião a arte deveria ter ideias por trás quando fomos separados à força, como somos separados da velha senhora que está para servir o chá e do jovem que está para atingir a bola de tênis no quintal da casa suburbana quando passamos de trem.
Mas, quanto à marca, não estou certa; não creio, afinal, que tenha sido feita por um prego; é muito grande e redonda para ser de prego. Eu poderia levantar-me, mas se o fizesse, para a olhar, é quase certo que não saberia dizer exatamente o que é; porque, uma vez feita uma coisa, ninguém nunca sabe como aconteceu. Oh, meu Deus, o mistério da vida! A inexatidão do pensamento! A ignorância da humanidade! Para mostrar como é pouquíssimo o controle que temos sobre nossas posses — sendo questão acidental que este modo de vida seja afinal nossa civilização —, deixem-me enumerar apenas algumas das coisas perdidas em nosso tempo de vida, a começar por — que gato iria comer, que rato iria roer? — três caixas azuis de ferramentas para encadernação de livros, que sempre pareceu a mais misteriosa das perdas. Depois houve as gaiolas de pássaros, os aros de ferro, os patins de aço, a caixa de carvão Queen Anne, o quadro de bugigangas, o realejo — tudo se foi, e também joias. Opalas e esmeraldas jazem em torno das raízes de nabos. Como é preciso aparar e raspar para ter certeza! Espanta é que eu tenha roupas no corpo, que me sente rodeada, neste momento, de móveis sólidos. Porque, se quisermos comparar a vida a alguma coisa, temos de equipará-la a ser levada pelo metrô a oitenta quilômetros por hora — desembarcando no outro extremo sem um único grampo no cabelo! Lançada totalmente nua aos pés de Deus! De pernas para o ar nas campinas de asfódelos como embrulhos de papel pardo jogados, no correio, pela calha abaixo! Com o cabelo voando para trás como o rabo de um cavalo de corrida. Sim, isso parece expressar a rapidez da vida, o gasto perpétuo e a perpétua recuperação; e tão por acaso, tão a esmo…
Mas após a vida. A queda lenta dos pedúnculos verdes e grossos para que o cálice da flor, à medida que vira, banhe-nos de luz vermelha e púrpura. Por que, afinal, não se há de nascer lá como se nasce aqui, sem defesa e sem fala, incapaz de focar os olhos, agarrando-se às raízes da grama, aos pés dos Gigantes? Quanto a dizer o que são árvores, o que são homens e mulheres, ou se existem tais coisas, isso não estaremos em condições de fazer por cinquenta anos ou mais. Não haverá nada a não ser espaços de luz e escuridão, cruzados por pedúnculos grossos, e talvez bem altos, traços em forma de roseta de uma cor indistinta — rosas pálidos e azuis — que se tornarão, com o passar do tempo, mais definidos, mais — não sei o quê…
E no entanto a marca na parede nem chega a ser um buraco. Pode até ter sido causada por alguma coisa arredondada e preta, como uma folhinha de roseira deixada pelo verão, e não sendo eu uma dona de casa muito atenta — vejam só, por exemplo, quanta poeira em cima da lareira, a poeira que, pelo que dizem, cobriu Troia por três vezes, apenas fragmentos de vasos negando-se obstinadamente à aniquilação, como se pode crer.1
A árvore perto da janela bate de leve na vidraça… Quero pensar com calma, em paz, espaçosamente, nunca ser interrompida, nunca ter de me levantar da cadeira, deslizar à vontade de uma coisa para outra, sem nenhuma sensação de hostilidade, nem obstáculo. Quero mergulhar cada vez mais fundo, longe da superfície, com seus fatos isolados, indisputáveis. Firmar-me bem, deixar-me agarrar a primeira ideia que passa… Shakespeare… Bem, tanto faz ele ou outro. Um homem que solidamente sentou-se numa poltrona e olhou para o fogo e assim… Uma chuva de ideias caiu perpetuamente de algum Céu muito alto para atingir sua mente. Ele, abaixando a cabeça, apoiou a testa na mão, e os outros, olhando pela porta aberta — pois supõe-se que esta cena aconteça numa noite de verão… Mas como é enfadonha esta ficção histórica! Não me interessa em nada. Bem que eu gostaria de dar com uma linha de pensamento agradável, uma linha que indiretamente refletisse crédito em mim, pois tais são os pensamentos mais agradáveis e muito frequentes até mesmo nas mentes de modestas pessoas cor de rato, que sinceramente acreditam que não gostam de receber elogios. Não são pensamentos diretamente autoelogiosos; e essa é que é a sua beleza; são pensamentos como este:
“E então entrei na sala. Eles estavam falando de botânica. Falei da flor que eu tinha visto crescendo num monte de lixo no quintal de uma casa velha em Kingsway. A semente, disse, deve ter sido plantada no reinado de Carlos i. Que flores ocorriam no reinado de Carlos I?”, perguntei — (mas não me lembro da resposta). Flores altas com pendões roxos talvez. E por aí vai. O tempo todo estou vestindo a figura de mim mesma em minha própria mente, em namoro furtivo, não a adorando abertamente, pois, se o fizesse, eu deveria considerar-me em erro e esticar a mão de imediato para em autoproteção apanhar um livro. É curioso como instintivamente protegemos nossa própria imagem de idolatria ou de qualquer manipulação que a possa tornar ridícula, ou diferente demais do original para que ainda acreditem nela. Ou isso não é, afinal de contas, tão curioso assim? É uma questão de grande importância. Suponha-se que o espelho se despedace, que a imagem desapareça e que a figura romântica com o fundo verde da floresta a envolvê-la não esteja mais lá, mas apenas aquilo, a casca de uma pessoa que é vista por outras — que mundo raso, árido, proeminente e sem ar ela se torna! Não um mundo no qual viver. Quando nos encontramos face a face, nos ônibus e trens subterrâneos, é no espelho que nós estamos olhando; o que explica a vaguidão, o brilho de vidro, em nossos olhos. E os romancistas do futuro dar-se-ão cada vez mais conta da importância dessas reflexões, pois claro está que não há só um, mas sim um número quase infinito de reflexões; são essas profundidades que eles irão explorar, esses os fantasmas que perseguirão, deixando a descrição da realidade cada vez mais fora de suas histórias, já contando com um conhecimento dela, como fizeram os gregos e talvez Shakespeare — mas essas generalizações são muito inúteis. Basta o timbre militar da palavra, que lembra editoriais, ministros de gabinete — toda uma categoria de coisas que em criança tomávamos pelo que podia haver de mais sério, de mais grave, de mais importante, e das quais não se podia escapar, a não ser sob risco de inominável danação. As generalizações trazem de volta, de alguma forma, o domingo em Londres, os passeios nas tardes de domingo, os almoços de domingo, e também modos de falar de mortos, roupas, hábitos — como o hábito de se sentarem todos juntos numa sala até certa hora, embora ninguém gostasse disso. Havia uma regra para tudo. A regra para toalhas de mesa, nessa época específica, é que deveriam ser feitas em tapeçaria, com pequenos compartimentos amarelos voltados para o lado de cima, como se pode ver em fotografias dos tapetes nos corredores dos palácios reais. As toalhas de outro tipo não eram verdadeiras. Quão chocante, no entanto quão maravilhoso, descobrir que essas coisas verdadeiras, os almoços de domingo, os passeios de domingo, as casas de campo e as toalhas de mesa, não eram afinal tão verdadeiras assim, sendo de fato meio fantasmais, e que a danação que se abatia sobre quem não acreditava nelas era apenas uma impressão de liberdade ilegítima. O que agora toma o lugar dessas coisas, pergunto-me, dessas coisas importantes e sérias? Talvez os homens, caso você seja mulher; o ponto de vista masculino que governa nossas vidas, que fixa o padrão, que estabelece a Ordem de Precedência de Whitaker,2 a qual desde a guerra se tornou meio fantasma, suponho eu, para muitos homens e mulheres, e que em breve, é lícito esperar, será motivo de riso na lata de lixo para onde vão os fantasmas, os bufês de mogno e as gravuras de Landseer,3 deuses e demônios, o Inferno e assim por diante, deixando-nos a todos uma impressão intoxicante de liberdade ilegítima — se existe liberdade…
Sob certas luzes essa marca na parede parece na verdade se projetar da parede. Não é perfeitamente circular. Não posso ter certeza, mas parece lançar uma sombra perceptível, sugerindo que, se eu corresse o dedo para baixo, naquela faixa da parede, a um certo ponto ele iria subir e descer por um montículo, liso como os de South Downs, que ou bem são túmulos, segundo dizem, ou bem, acampamentos. Dos dois, eu preferiria que fossem túmulos, desejando a melancolia, como a maioria dos ingleses, e achando natural, ao fim de uma caminhada, pensar nos ossos esticados que há embaixo da terra… Deve haver algum livro sobre isso. Algum antiquário deve ter escavado essas ossadas, dando-lhes depois um nome… Que espécie de homem, pergunto-me, é um antiquário? A maioria é de coronéis reformados, creio eu, guiando grupos de trabalhadores idosos até o cume, examinando torrões e pedras e correspondendo-se com o clero das redondezas, o qual lhes dá, já estando aberto à hora do desjejum, um sentimento de importância, e a comparação de pontas de flechas necessita de longas viagens às cidades da região, necessidade agradável tanto para eles quanto para suas velhas esposas, que querem fazer uma geleia de ameixa, ou uma faxina no escritório, e têm todas as razões para manter essa grande questão de acampamento ou túmulo em suspensão perpétua, enquanto o próprio coronel sente-se satisfatoriamente filosófico ao acumular evidências sobre os dois lados da questão. É verdade que ele finalmente se inclina a crer no acampamento; e, quando se opõem à sua hipótese, redige um panfleto que está a ponto de ler na reunião trimestral da sociedade local quando um infarto o derruba, e seus últimos pensamentos conscientes não se reportam a mulher nem aos filhos, mas ao acampamento e àquela ponta de flecha, que agora está na vitrine do museu da cidade, junto com o pé de uma assassina chinesa, um punhado de pregos elizabetanos, muitos cachimbos de barro Tudor, um fragmento de cerâmica romana e o copo em que Nelson bebeu vinho — provando realmente não sei o quê.
Não, não, nada é provado, nada é sabido. E se eu me levantasse, neste exato momento, e me certificasse de que a marca na parede é na verdade — como devo dizer? — a cabeça de um velho prego gigante, cravado ali há uns duzentos anos e que agora, devido ao paciente atrito causado por muitas gerações de faxineiras, apontou a cabeça por cima das camadas de tinta para dar sua primeira olhada na vida moderna, captando-a numa sala onde as paredes são brancas e a lareira está acesa, o que eu ganharia? Conhecimento? Tema para especulação posterior? Quer em pé, quer sentada sem me mexer, eu sou capaz de pensar. E o que é conhecimento? O que são nossos homens de saber senão descendentes de bruxas e eremitas que se acocoravam em grutas e nas matas preparando suas beberagens de ervas, interrogando musaranhos e anotando a linguagem das estrelas? E quanto menos os respeitamos, à medida que nossas superstições se reduzem e aumenta nosso respeito pela beleza e a saúde mental… Sim, poder-se-ia imaginar um mundo muito agradável. Um tranquilo mundo espaçoso, com flores bem azuis e vermelhas pelos descampados. Um mundo sem professores, sem especialistas, sem zeladores com perfis de polícia, um mundo que se pudesse cortar com o pensamento como um peixe corta a água com suas nadadeiras, roçando em talos de nenúfares que pendem suspensos sobre ninhos de ovos brancos do mar… Como é tranquilo aqui embaixo, enraizado no centro do mundo e olhando para cima pelo acinzentado das águas, com seus repentinos fachos de luz, com seus reflexos — ah, se não fosse o Almanaque de Whitaker — se não fosse a Ordem de Precedência!
Tenho de me levantar para ir ver em pessoa o que é realmente esta marca na parede — um prego, uma folha de roseira, uma racha na madeira?
Aqui está mais uma vez a Natureza em seu velho jogo de autopreservação. Esta linha de pensamento, percebe ela, ameaça tornar-se pura perda de energia, ameaça até mesmo colidir com a realidade, pois quem jamais será capaz de pôr um dedo em riste contra a Ordem de Precedência de Whitaker? O arcebispo de Canterbury é seguido pelo presidente da Câmara dos Pares; o presidente da Câmara dos Pares é seguido pelo arcebispo de York. Todo mundo segue alguém, tal é a filosofia de Whitaker; e a grande coisa é saber quem segue quem. Whitaker sabe, e você que se console com isso, como a Natureza aconselha, ao invés de enraivar-se; mas, se você não puder ser consolada, se tiver de estragar esta hora de paz, pense então na marca na parede.
Entendo o jogo da Natureza — sua prontidão para agir como modo de interromper qualquer pensamento que ameace agitar ou causar dor. Daí provém, suponho, nosso leve desprezo pelos homens de ação — homens, presumimos, que não pensam. Seja como for, não faz mal ficar olhando uma marca na parede para pôr um ponto final em nossos desagradáveis pensamentos.
De fato, agora que fixei o olhar nela, sinto que me agarrei a uma tábua de salvação; tenho uma satisfatória noção de realidade que de uma vez por todas transforma os dois arcebispos e o presidente da Câmara dos Pares em meras sombras. Eis aqui alguma coisa concreta, definida. Assim, despertando de um sonho de horror à meia-noite, logo a pessoa acende a luz e se mantém quiescente, adorando o gaveteiro, adorando a solidez, adorando a realidade, adorando o mundo impessoal que é prova de alguma existência que não a sua. É disso que queremos estar seguros… A madeira é uma boa coisa na qual pensar. Vem de uma árvore; e as árvores crescem, e não sabemos como crescem. Por anos e anos elas crescem, sem nos dar nenhuma atenção, em campinas, em florestas e à beira dos rios — coisas nas quais, sem exceção, nós gostamos de pensar. As vacas dão chicotadas com o rabo, à sombra delas, nas tardes quentes; elas pintam tão de verde os rios que, quando um frango-d’água mergulha, esperamos vê-lo com as penas todas verdes, quando volta à tona. Gosto de pensar nos peixes que balançam contra a correnteza como bandeiras ao vento; e nos besouros-d’água que lentamente vão erguendo domos de lama sobre o leito do rio. Gosto de pensar na árvore em si: primeiro na íntima e seca sensação de ser madeira; depois na trituração pela tempestade; depois na lenta, deliciosa penetração de seiva. Gosto de pensar nisso também nas noites de inverno, quando me ergo no campo vazio com as folhas todas dobradas, fechando-me sem nada expor de sensível aos projéteis de ferro que vêm da lua, um mastro nu na terra que não para, ao longo de toda a noite, de rodopiar. O canto dos passarinhos deve soar muito alto e estranho em junho; e que frio devem sentir nos pés os insetos, quando fazem seus laboriosos avanços, subindo pelas rugas da casca, ou tomam sol sobre o toldo verde e fino das folhas, olhando reto para a frente com seus olhos vermelhos, cortados em forma de diamante… Uma a uma as fibras estalam sob a imensa pressão fria da terra e vem então o temporal mais recente e os galhos mais altos, caindo, cravam-se na terra de novo, e fundo. Nem assim a vida acaba; para uma árvore, ainda há um milhão de vidas pacientes e atentas em todo o mundo, em quartos de dormir, em barcos, no assoalho, forrando salas onde homens e mulheres sentam-se depois do chá para fumar seus cigarros. Está cheia de pensamentos tranquilos, de pensamentos felizes, esta árvore. Bem que eu gostaria de pegar cada um deles separadamente — mas alguma coisa está atrapalhando. Onde é que eu estava? De que é mesmo que se tratava? Uma árvore? Um rio? A região dos Downs? O Almanaque de Whitaker? Os campos de asfódelos? Não consigo me lembrar de nada. Tudo está se movendo, caindo, deslizando, sumindo… Há uma vasta sublevação da matéria. Alguém está de pé, acima de mim, e diz:
“Vou sair um instante para comprar um jornal.”
“Hein?”
“Se bem que nem adianta comprar jornais… Nunca acontece nada. Maldita guerra; que Deus maldiga esta guerra!… Seja como for, não vejo por que tínhamos de ter um caramujo na parede.”
Ah, a marca na parede! Era um caramujo. 


— Virginia Woolf, no livro "A marca na parede e outros contos". [tradução Leonardo Froes]. São Paulo: Cosac Naify, 2015

O mistério da poesia - Rubem Braga

©Zhang Xiaogang


O mistério da poesia

Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço um poema, ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: Trabajar era bueno en el Sur. Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos.
E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia.
O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade não sei de quê.
Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica.
De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas não é apenas do sentido. Se ele dissesse: Era bueno trabajar en el Sur, não creio que o poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinito do verbo cortar e do verbo hacer usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo; ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua. Reparem que tudo está dito com os elementos mais simples: trabajar, era bueno, Sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos.
Isso me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as palavras mais corriqueiras de nossa língua: "A grande dor das coisas que passaram."
Talvez o que impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a idéia da canoa é também um motivo de emoção.
Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de um tronco de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de uma grande beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um trabalho que era bom, não essa "necessidade aborrecida" de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez.
Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais profundas...

— Rubem Braga, no livro “A traição das elegantes”. Rio de Janeiro: Record, 2010.

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