Tarantão, meu patrão... - João Guimarães Rosa

— Tarantão, meu patrão...


© Frank Earle Schoonover
Suspa! — que me não dão nem tempo para repuxar o cinto nas calças e me pôr debaixo de chapéu, sem vez de findar de beber um café nos sossegos da cozinha.
Aí — ... ai-te..." — a voz da mulher do caseiro declarou, quando o caso começou. Vi o que era. E, pois. Lá se ia, se fugia, o meu esmarte patrão, solerte se levantando da cama, fazendo das dele, velozmente, o artimanhoso. Nem parecesse senhor de tanta idade, já sem o escasso juízo na cabeça, e aprazado de moribundo para daí a dias desses, ou horas ou semanas. Ôi, tenho de sair também por ele, já se vê, lhe corro todo atrás. Ao que, trancei tudo, assungo as tripas do ventre, viro que me viro, que a mesmo esmo, se me esmolambo, se me despenco, se me esbandalho: obrigações de meu ofício. — "Ligeiro, Vagalume, não larga o velho!" — acha ainda de me informar o caseiro Sô Vincêncio, presumo que se rindo, e: — "Valha-me eu!" — rogo, ih, danando-o, êpa! e desço em pulos passos esta velha escada de pau, duma droga, desta antíquíssima fazenda, ah...
E o homem — no curral, trangalhadançando, zureta, de afobafo — se propondo de arrear cavalo! Me encostei nele, eu às ordens. Me olhou mal, conforme pior que sempre.
— "Tou meio precisado de nada..." — me repeliu, e formou para si uma cara, das de desmamar crianças. Concordei. Desabanou com a cabeça. Concordei com o não.
Aí ele sorriu, consigo meio mesmo. Mas mais me olhou, me desprezando, refrando: — "Que, o que é, menino, é que é sério demais, para você, hoje!"
Me estorvo e estranhei, pelo peso das palavras. Vi que a gente estávamos era em tempo-de-guerra, mas com espadas entortadas; e que ele não ia apelar para manias antigas. E a gente, mesmo, vesprando de se mandar buscar, por conta dele, o doutor médico, da cidade, com sábias urgências! Jeito que, agora, o velho me mandava pôr as selas. Bom desatino!
Nem queria os nossos, mansos, mas o baioqueimado, cavalão alto, e em perigos apresentado, que se notava. E o pedresão, nem mor nem menor. Os amaldiçoados, estes não eram de lá, da fazenda, senão que animais esconhecidos, pegados só para se saber depois de quem fosse que sejam. Obedeci, sem outro nenhum remédio de recurso; para maluco, maluco-e-meio, sei. O velho me pespunha o azul daqueles seus grandes olhos, ainda de muito mando delirados. Já estava com a barba no ar — aquela barba de se recruzar e baralhar, de nenhum branco fio certo. Fez fabulosos gestos. Ele estava melhor do que na amostra.
Mal pus pé em estrivos, já ele se saía pela porteira, no que esporeava. E eu — arre a Virgem — em seguimentos. Alto, o velho, inteiro na sela, inabalável, proposto de fazer e acontecer. O que era se ser um descendente de sumas grandezas e riquezas — um Iô-João-de-Barros-Diniz-Robertes! — encostado, em maluca velhice, para ali, pelos muitos parentes, que não queriam seus incômodos e desmandos na cidade.
E eu, por precisado e pobre, tendo de aguentar o restante, já se vê, nesta desentendida caceteação, que me coisa e assusta, passo vergonhas. O cavalo baioqueimado se avantajava, andadeiro de só espaços. Cavalo rinchão, capaz de algum derribamento. Será que o velho seria de se lhe impor? Suave, a gente se indo, pelo cerrado, a bom ligeiro, de lados e lados. O chapéu dele, abado pomposo, por debaixo porém surgindo os compridos alvos cabelos, que ainda tinha, não poucos. — "Ei, vamos, direto, pegar o Magrinho, com ele hoje eu acabo!" — bramou, que queria se vingar. O Magrinho sendo o doutor, o sobrinho-neto dele, que lhe dera injeções e a lavagem intestinal.
— "Mato! Mato, tudo!" — esporeou, e mais bravo. Se virou para mim, aí deu o grito, revelando a causa e verdade: — "Eu 'tou solto, então sou o demônio!" A cara se balançava, vermelha, ele era claro demais, e os olhos, de que falei. Estava crente, pensava que tinha feito o trato com o diabo!
P'r'onde vou? — a trote, a gente, pelas esquerdas e pelas direitas, pisando o cascalharal, os cavalos no bracear. O velho tendo boa mão na rédea. De mim, não há de ouvir, censuras minhas. Eu, meus mal-estares. O encargo que tenho, e mister, é só o de me poitar perto, e não consentir maiores desordens. Pajeando um traste ancião — o caduco que não caia! De qualquer repente, se ele, tão doente, por si se falecesse, que trabalhos medonhos que então não ia haver de me dar? Minha mexida, no comum, era pouca e vasta, o velho homem meu patrão me danava-se. Me motejou: — "Vagalume, você então pensa que vamos sair por aí é pr'a fazer crianças?"
A voz toda, sem sobrossos nem encalques. E ia ter a coragem de viagem, assim, a logradouro — tão sambanga se trajando? Sem paletó, só o todo abotoado colete, sujas calças de brim sem cor, calçando um pé de botina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um colete, enfiado no braço, falando que aquele era a sua toalha de se enxugar.
Um de espantos! E, ao menos, desarmado, senão que só com uma faca de mesa, gastada a fino e enferrujada — pensava que era capaz, contra o sobrinho, o doutor médico: ia pôr-lhe nos peitos o punhal! — feio, fulo. Mas, me disse, com o pausar: — "Vagalume, menino, volta, daqui, não quero lhe fazer enfrentar, comigo, riscos terríveis".
Esta, então! Achava que tinha feito o trato com o diabo, se dando agora de o mor valentão, com todas as sertanejices e braburas. Ah, mas, ainda era um homem — da raça que tivera — e o meu patrão! Nisto, apontava dedo, para lá ou cá, e dava tiros mudos. Se avançou, àfrente, só avançávamos, afora, por aí, campampantes. Por entre arvoredos grandes, ora demos, porém, com um incerto homem, desconfioso e quase fugidiço, em incerta montada. Podia-se-o ver ou não ver, com um tal sujeito não se tinha nada. Mas o velho adivinhou nele algum desar, se empertigando na sela, logo às barbas pragas: — "Mal lhe irá!" — gritou altamente. Aproximou seu cavalão, volumou suas presenças. Parecia que lhe ia vir às mãos. Não é que o outro, no tir-te, se encolheu, borrafofo, todo num empate? Nem pude regularizar o de meu olhar, tudo expresso e distenso demais se passava. O velho achando que esse era um criminoso! — e, depois, no Breberê, se sabendo: que ele o era, de fato, em meios termos.
Isto que é, que somente um sem-medo, ajudante de criminoso, mero. Nem pelejou para se fugir, dali donde moroso se achava; estava como o gato com chocalho. — "Ai-te!" — o velho, sacudindo sua cabeça grande, sem com que desenfezar-se: — "Pague o barulho que você comprou!" — o intimava. O ajudante-de-criminoso ouviu, fazendo uns respeitos, não sabendo o que não adiar. Aí, o velho deu ordem: — "Venha comigo, vosmicê! Lhe proponho justo e bom foro, se com o sinal de meu servidor..."
E...
É de se crer? Deveras. Juntou o homem seu cavalinho, bem por bem vindo em conosco. Meio coagido, já se vê; mas, mais meio esperançado.
Sem nem mais eu me sonhar, nem a quantas, frigido de calor e fartado. Aquilo tudo, já se vê, expunha a desarrazoada loucura. O velho, pronto em arrepragas e fioscas, no esbrabejo, estrepa-e-pega. No gritar: — "Mato pobres e coitados!" Se figurava, nos trajos, de já. ser ele mesmo o demo, no triste vir, na capetagem?
Só de déu e em léu tocávamos, num avante fantasmado. O ajudante-de-criminoso não se rindo, e eu ainda mais esquivançando. Nisto, o visto: a que ia com feixinho de lenha, e com a escarrapachada criança, de lado, a mulher, pobrepérrima. O velho, para vir a ela, apressou macio o cavalo. Receei, pasmado para tudo. O velho se safou abaixo o chapéu, fazia dessas piruetas, e outras gesticulações. Me achei: — "Meu, meu, mau! Esta é aquela flor, de com que não se bater nem em mulher!"
Se bem que as coisas todas foram outras. O velho, pasmosamente, do doidar se arrefecia. Não é que, àquela mulher, ofereceu tamanhas cortesias? Tanto mais quanto ele só insistindo, acabou ela afinal aceitando: que o meu patrão se apeou, e a fez montar em seu cavalo. Cuja rédea ele veio, galante, a pé, puxando. Assim, o nosso ajudante-de-criminoso teve de pegar com o feixe de lenha, e eu mesmo encarregado, com a criança a tiracolo. Se bem que nós dois montados, já se vê? — nessas peripécias de pato.
Só, feliz, que curta foi a farsalhança, até ali a pouco, num povoado. Onde o destino dessa pobre e festejada mulher, que se apeou, menos agradecida que envergonhada.
Mas, veja um, e reveja, em o que às vezes dá uma boa patacoada. Por fato que, lá, havia, rústico, um Felpudo, rapaz filho dessa mulher. O qual, num reviramento, se ateou de gratidões, por ver a mãe tão rainha tratada. Mas o velho determinou sem lhe dar atualmentes nem ensejos: — "Arranja cavalo e vem, sob minhas ordens, para grande vingança, e com o demônio!" Advirto, desse Felpudo: tão bom como tão não, da mioleira. No que — não foi, quê? — saiu, para se prover do dito cavalo; e vir, a muito adiante. Para vexar o pejo da gente, nessa toda trapalhada. Das pessoas moradoras, e de nós, os terceiros personagens. Mas, que ser, que haver? Os olhos do velho se sucediam. Que estragos?
Se o que seja. Se boto o reto no correto: comecei a me duvidar. Tirar tempo ao tempo. Mas, já a gente já passávamos pelo povoadinho do M'engano, onde meu primo Curucutu reside. Cujo o nome vero não é, mas sendo João Tomé Pestana; assim como o meu, no certo, não seria Vagalume, só, só, conforme com agrado me tratam, mas João Dosmeuspés Felizardo. Meu primo vi, e a ele fiz sinal. Lhe pude dar, dito: — "Arreia alguma égua, e alcança a gente, sem falta, que nem sei adonde ora andamos, a não ser que é do Dom Demo esta empreitada!"
Meu primo prestes me entendeu, acenou. E já a gente — haja o galopar — no encalço do velho, estramontado. Que, nisto de ainda mais se sair de si, desadoroso, num outro assomo ao avante se lançava: — "Eu acabo com este mundo!"
Aí, o mais: poeiras! Ao pino. E, depois de uma virada, o arraial do Breberê, a gente ia dar de lá chegar, de entrada. O vento tangendo, para nós, pedaços de toque de sinos. Do dia me lembrei: que sendo uma Festa de Santo. E uns foguetes pipoquearam, nesse interintintim, com no ar azuis e fumaças. O patrão parou a nós todos, a gesto, levantado envaidecid...
"Tão me saudando!" — ele se comprouve, do a-tchim-pum-pum dos foguetes, que até tiros. Não se podia dele discordar. Nós: o ajudante-de-criminoso, o Felpudo filho da pobre mulher, meu primo Curucutu; e eu, por oficio. Que, de galope, no arraial então entrou-se, nós dele assim, atrasmente, acertados. No Breberê.
Foi danado. Lá o povo, se apinhando, no largo enorme da igreja, procissão que se aguardava. O velho! — ele veio, rente, perante, ponto em tudo, pá! p'r'achato, seu cavalão a se espinotear, z't-zás...; e nós. Aí, o povaréu fez vêvêvê: pé, p'ra lá, se esparziam. O velho desapeou, pernas compridas, engraçadas; e nós. Meio o que pensei pus a rédea no braço: que íamos ter de pegar nos bentos tirantes do andor.
Mas, o velho, mais, me pondo em espantos. Vem chegando, discordando, bradou vindas ao pessoal: — "Vosmicês! ..." — e sacou o que teria em algibeiras. E tinha. Vazou pelo fundo. Era dinheiro, muitíssimas moedas, o que no chão ele jogava. Suspa e ai-te! — à choldraboldra, desataram que se embolaram, e a se curvar, o povo, em gatinhas, para poderem catar prodiglosamente aquela porqueira imortal.
Tribuzamos. Safanamos.
Empurrou-se para longe a confusão. No clareado, se tomou fôlego. Porém, durante esse que-o-quê, o padre, à porta da igreja, sobrevestido se surgia. O velho caminhou para o padre. Caminhou, chegou, dobrou joelho, para ser bem abençoado; mas, mesmo antes, enquanto que em caminhando, fez ainda várias outras ajoelhadas: — "Ele está com um vapor na cabeça..." — ouvi mote que glosavam. O velho, circunspecto, alto, se prazia, se abanava, em sua barba branca, sujada. — “Só saiu de riba da cama, para vir morrer no sagrado?" — outro senhor perguntava. O que qual era um Cheira-Céu, vizinho e compadre do padre. Mais dizia: — "A ele não abandono, que deve passados favores à sua estimável família". Ouviu-o o velho: — "Vosmicê, venha!" E o outro, baixo me dizendo: — "Vou, para o fim, a segurar na vela...” — assentindo. Também quis vir um rapaz Jiló; por ganâncias de dinheiro? O velho, em fogo: — "Cavalos e armas!" — queria. O padre o tranquilizou, com outra bênção e mão beijável. Já menos me achei: — "Lá se avenha Deus com o seu mundo... "
Montou-se, expediu-se, esporeou-se, deixando-se o Breberê para trás. Os sinos em toada tocavam.
Seja — galopes. Depois de nenhum almoço, meio caminho desandado; isto é, caminho-e-meio. Ao que, o velho: pá! impava. Aí, em beira da estrada-real, parava o acampo dos ciganos. — "Tira lá!" — se teve: aos com cachorros e meninos, e os tachos, que consertavam. No burloló, esses ciganos, em tretas, tramoias, zarandalhas; cigano é sempre descarado. No entendimento do vulgo: pois, esses, propunham cangancha, de barganhar todos os cavalos. — "A p'r'-a-parte! Cruz, diabo!" Mas o velho convocou; e um se quis, bandeou com a gente. O cigano Pé-de-Moleque para possíveis patifarias? Me tive em admirações. Tantos vindo, se em seguida. Assim, mais um Gouveia Barriga-Cheia, que já em outros tempos, piores, tinha sido ruim soldado. Já me vejo em adoidadas vantagens?
Assim a gente, o velho à frente — tipláco... t'plóco... t'plo... — já era cavalaria. Mais um, ainda, sem cujo nem quem: o vagabundo Corta-Pau; o sem-quefazer, por influências. A gente, com Deus: 11! Ao adíante — tira-que-tira — num sossego revoltoso. Eu via o velho, meu patrão: de louvada memória maluca, torre alta. Num córrego, ele estipulou: — "Os cavalos bebem. A gente, não. A gente não tenha sede!" Por áspera moderação, penitência de ferozes. O patrão, pescoço comprido, o grande gogô, respeitável. O rei! guerreiro. Posso fartar de suar; mas aquilo tinha para grandezas.
— "Mato sujos e safados!" — o velho. Os cavalos, cavaleiros. Galopada. A gente: 13 ... e 14. A mais um outro moço, o Bobo, e a menos um João-Paulino. Aí, o chamado Rapa-pé, e um amigo nosso por nome anônimo; e, por gostar muito de folguedos, o preto de Gorro-Pintado. Todos vindos, entes, contentes, por algum calor de amor a esse velho. A gente retumbava, avantes, a gente queria façanhas, na espraiança, nós assoprados. A gente queria seguir o velho, por cima de quaisquer ideias.
Era um desembaraçamento — o de se prezar, haja sol ou chuva. E gritos de chegar ao ponto: — “Mato mortos e enterrados!" — o velho se pronunciava.
Ao que o velho sendo o que era por-todos, o que era no fechar o teatro. — "Vou ao demo!" — bramava. — "Mato o Magrinho, é hoje, mato e mato, mato, mato!" — de seu sobrinho doutor, iroso não se olvidava. Suspete! que eu não era um porqueira; e quem não entende dessas seriedades? Aí o trupitar — cavalos bons! — que quem visse se perturbasse: não era para entender nem fazer parar. Fechamos nos ferros. — "Vigie-se, quem vive!" — espandongue-se. Não era. Num galopar, ventos, flores.
Me passei para o lado do velho, junto — ... tapatrão, tapatrão... tarantão... tarano... — e ele me disse: nada. Seus olhos, o outro grosso azul, certeiros, esses muito se mexiam. Me viu mil. — "Vagalume!" — só, só, cá me entendo, só de se relancear o olhar. — "João é João, meu patrão..."
Ai: e — patrapão, tampantrão, tarantão... — cá me entendo. Tarantão, então... — em nome em honra, que se assumiu, já se vê. Bravos!
Que na cidade já se ia chegar, maiormente, à estrupida dos nossos cavalos, lesbestada.
Agora, o que é que ia haver? — nem pensei; e o velho: — "Eu mato! Eu mato!" Ia já alta a altura. — "As portas e janelas, todos!" — trintintim, no desbaralhado. E eu ali no meio. O um Vagalume, Dosmeuspés, o Sem-Medo, Curucutu, Felpudo, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o Bobo, o Gorro-Pintado; e o sem-nome nosso amigo. O velho, servo do demo — só bandeiras despregadas. O espírito de pernas-para-o-ar, pelos cornos da diabrura. E estávamos afinal-de-contas, para cima de outros degraus, os palhaços destemidos.
Estávamos, sem até que a final. Ah, já era a rua. A cidade — catástrapes! Que acolhenças? A cidade, estupefata, com automóveis e soldados. Aquelas ruas, aldemenos, consideraram nosso maltrupício. A gente nem um tico tendo medo, com o existido não se importava. Ah, e o velho, estardalhão? — que jurava que matava.
Pois, o demo! vamos... O velho sabia bem, aonde era o lugar daquela casa.
Lá fomos, chegamos. A grande, bela casa. O meu em glórias patrão, que saudoso.
Ao chegar a este momento, tenho os olhos embaciados. Como foi, crente, como foi, que ele tinha adivinhado? Pois, no dia, na hora justa, ali uma festa sedava. A casa, cheia de gente, chiquetichique, para um batizado: o de filha do Magrinho, doutor!
Sem temer leis, nem flauteio, por ali entramos, de rajada. Nem ninguém para impedimento — criados, pessoas, mordomado. Com honra. Se festava! Com surpresas! A família, à reunida, se assombrava gravemente, de ver o velho rompendo — em formas de mal-ressuscitado; e nós, atrás, nesse estado. Aquela gente, da assemblança, no estatelo, no estremunho. Demais. — O que haviam: de agora, certos sustos em remorsos. E nós, empregando os olhos, por eles. O instante, em tento. A outra instantaneação. Mas, então, foi que de repente, no fechar do aberto, descomunal. O velho nosso, sozinho, alto, nos silêncios, bramou — dlâo! — ergueu os grandes braços: — "Eu pido a palavra...”
E vai. Que o de bem se crer? Deveras, que era um pasmar. Todos, em roda de em grande roda, aparvoados mais, consentiram, já se vê, e o velho, meu patrão para sempre, primeiro tossiu: bruba! — e se saiu, foi por aí embora afora, sincero de nada se entender, mas a voz portentosamente, sem paradas nem definhezas, no ror e rolar das pedras. Era de se suspender a cabeça. Me dava os fortes vigores, de chorar.
Tive mais lágrimas. Todos, também; eu acho. Mais sentidos, mais calados. O velho, fogoso, falava e falava. Diz-se que, o que falou, eram baboseiras, nada, ideias já dissolvidas. O velho só se crescia. Supremo sendo, as barbas secas, os históricos dessa voz: e a cara daquele homem, que eu conhecia, que desconhecia. Até que parou, porque quis. Os parentes se abraçavam. Festejavam o recorte do velho, às quantas, já se vê. E nós, que atrás, que servidos, de abre-tragos, desempoeirados.
Porque o velho fez questão: só comia com todos os dele em volta, numa mesa, que esses seus cavaleiros éramos, de doida escolta, já se vê, de garfo e faca.
Mampamos.
E se bebeu, já se vê. Também o velho de tudo provou, tomou, manjou, manducou — de seus próprios queixos. Sorria definido para a gente, aprontando longes. Com alegrias.
Não houve demo. Não houve mortes.
Depois, ele parou em suspensão, sozinho em si, apartado mesmo de nós, parece que. Assaz assim encolhido, em pequenino e tão em claro: quieto como um copo vazio.
O caseiro Só Vincêncio não o ia ver, nunca mais, àdoidiva, nos escuros da fazenda. Aquele meu esmarte patrão, com seu trato excelentriste — Iô-João-de-Barros-Diniz-Robertes.
Agora, podendo daqui para sempre se ir, com direito a seu inteiro sossego. Dei um soluço, cortado. Tarantão — então... Tarantão... Aquilo é que era!

- João Guimarães Rosa, no livro "Primeiras estórias". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
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