Azo de almirante - João Guimarães Rosa


Azo de almirante
©Albert Marquet

Longe, atrás uma de outra, passaram as mais que meia dúzia de canoas, enchusmadas e em celeuma, ao empuxo de remos, a toda a voga. O sol a tombar, o rio brilhando que qual enxada nova, destacavam-se as cabeças no resplandecer. Iam rumo ao Calcanhar, aonde se preparava alguma desordem. De um Hetério eram as canoas, que ele regia. Despropósito? O caso tem mais dúvida.

Eventos vários. Em fatal ano da graça, Hetério sobressaíra, a grande enchente de arrasar no começo de seus caminhos. Fora homem de família, merecedor de silêncio, só no fastio de viver, sem hálito nem bafo. O gênio é punhal de que não se vê o cabo. Não o suspeitavam inclinado ou apontado ao êxito no século.
Na cheia, por chuvas e trombas, desesperara-se o povo, à estraga, em meio ao de repente mar — as águas antepassadas — por cima o Espírito Solto. Hetério teve então a suscitada.
Ajuntou canoas e acudiu, valedor, dado tudo, sabendo lidar com o fato, o jeito de chefe. Ímpetos maiores nunca houve, coisa que parecia glória. Salvou, quantidade. Voltado porém da socorreria, não achou casa nem corpos das filhas e mulher, jamais, que o rio levara.
Não exclamou. Não se pareceu mais com ninguém, ou ébrio por dentro, aquela novidade de caráter. Sacudia, com a cabeça, o perplexo existir, de dó sem parar, em tanta maneira. E nem a bola de bilhar tem caprichos cinemáticos. De modo ou outro, já estava ele adquirindo as boas canoas, de que precisava.
Para o que de efeito. Destruíra-se a ponte da Fôa, cortando a estrada, ali de movimento. Hetério despachou-se para lá, tripulantes ele e os filhos, e outros moços, e arranjaram-se ao travessio. Durado mais de ano, versaram aquilo, transpondo gente e carga, de banda para banda. Até cortejos de noivos passaram, sob baldaquim, até enterros, o bispo em pastoral, troços de soldados. Foi tudo justo. Obedeciam os outros a Hetério — o em posição personificada — o na maior, canoa barcaçosa, a caravela com caveiras.
Ao certo, nada explicava, ainda que de humor benigno, homem de cabeça perpétua; cerrando bem a boca é que a gente se convence a si mesmo. Morriam-lhe os inimigos, e ele nem por isso se alegrava, ao menos. Segue-se ver o que quisesse.
A ponte nova repronta, o bom ofício tocava a termo. Hetério, entretanto, se reaviara. Descobrira-se, rio acima, uma mulher milagreira jejuadora, a quem os crentes acorriam. Vieram também, para passadores, ele e os seus; todo o mundo é, de algum modo, inteligente. Travessavam, com acuração, os peregrinos da santa, aleijados, cegos, doentes de toda loucura e lepra, o rico triste e o próximo precisado.
Semi-ator, Hetério, em mãos o rosário e o remo amarelo-venado de taipoca, tivesse mudado talvez a lembrança da enchente e de sua ocasião de herói, que já era apenas virtude sem fama, um fragmento de lenda. Ao adiante, assim às águas — outras e outras. No rio nada durava.

Agora, ao pôr-do-sol, desciam as canoas — de enfia-a-fino, serenas, horizonteantes, cheias de rude gente à grita, impelidas no reluzente — de longe, soslonge.
Ainda não.
Seguindo-se antes outros atos. Desaparecida de lá a mulher beata, Hetério com os dele saíram-se imediatamente a mascatear, revendendo aos ribeirinhos mercadorias e miudezas, em faina de ciganos regatões. Sobe e descendo, nessa cabotagem trafegaram até a águas sãofranciscas, ou abocando a outros rios, as canoas mercantes separadas ou juntas, como de estanceio chegaram ao porto de Santo Hipólito e ao Porto-das-Galinhas, abaixo de Traíras, lugares de negócio, no das Velhas, de praias amarelas. Trazia ele então lápis e uma grande caderneta, em que assentava e repassava difíceis contas. Os que o seguiam, pensavam na riqueza.
Daí, vai, começou a construir-se barragem para enorme usina, a do Governo, em tumulto de trabalhadores, mil, totalmente, de dezenas de engenheiros. Rearvorado, logo Hetério largou-se para lá, com seu lóide de canoas. Vales, a bacia, convertiam-se em remanso de imenso lago, em que podiam navegar com favor e proveito. Empreitaram-se, por fim, a contrato daqueles. Máquinas e casas, nas margens, barracões de madeira — e foi que um dos filhos de Hetério o deixou, para namorar e se casar. Hetério, ora, em oferecido tempo, encontrou um Normão, homem apaixonado, na maior imaginação. A paisagem ali tomava mais luz: fazia-se mais espelho — a represa, lisa — que não retinha, contudo, corpos de afogadas.
E esse Normão, propício, queria reaver sua mulher, que o pai guardava, prudente, de refém, na Fazenda-do-Calcanhar, beiradeã. Enquanto anos; e a usina deu-se por pronta. O rio não deixa paz ao canoeiro.

Assim ao de longe, contra raso sol, viu-se a fila de canoas, reta rápida, remadas no brilhar, com homens com armas, de Normão, que rumavam a rixa e fogo. Hetério comandava-as, definitivo severamente decerto, sua figura apropriada, vogavante.

Certo, soube-se.
Aproaram aos fundos da do-Calcanhar, numa gamboa, e atacaram, de faca em polpa. Troou, curto, o tiroteio. Normão, vencedor, raptada em paz a mulher, no ribanceiro acendeu fogueira de festa. As canoas todas entanto se perderam. Só na sua, Hetério continuou, a esporte de ir, rio abaixo, popeiro proezista, de levada, estava ferido, não a conduzia de por si, vogavagante; e seu outro filho na briga terminara, baleado.
Adiante, no travessão do Fervor, itaipava perigosa, a canoa fez rombo. Ainda ele mesmo virou-a então, de boca para baixo, num completamento. Safo, escafedeu-se de espumas, braceante, alcançou o brejo da beira, onde atolado se aquietou. Acharam-no — risonho morto, muito velho, velhaco — a qualidade de sua pessoa.

 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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