Zingarêsca - João Guimarães Rosa


©Winslow Homer
Zingarêsca

Sobrando por enquanto sossego no sítio do dono novo Zepaz, rumo a rumo com o Re-curral e a Água-boa, semelhantes diversas sortes de pessoas, de contrários lados, iam acudir àquela parte.

A boiada, do norte.
Antes, porém, os ciganos de roupagem e de linguagem, tribo de gente e a tropa cavalar. Zepaz se irou, ranhou pigarro. Mas esses citavam licença, o ciganão Vai-e-Volta, primaz, sacou um escrito, do antigo sitiante. Tinham alugado ali uma árvore! — o que confirmou o preto Mozart, servo morador: dês que sepultado debaixo do oiti um deles, só para sinalarem onde, ou com figuração pagã, por crerem em espíritos e nas fadas; e pago o preto Mozart para, durado de semana, verter goles de vinho na cova.
E agora desaforados mandavam vir o Padre? Já armavam barracas, em beira da lagoa, por três dias com suas noites. Então, pagassem, justo uso, o capim para os animais e o desar e desordens. Até o cozinheiro-boiadeiro, que acendia fogo, além, cerca do riacho, apontou neles garrucha. Se sabia, também, no meio de tais, um peão amansador, cigano nenhum, grinfo e mudo surdo.
A boiada apareceu e encheu as vistas. Era de tardinha. A ciganada se inçando, os vaqueiros repeliam esses malandantes, sofreavam as bridas, sem vez de negócio nem conversação. O Padre deu viva, arrecadou o rosário em algibeira. Zepaz mandou a mulher se recatar, ela saiu da porta, dada formosa risada.
So-Lau, o capataz, se propôs, rente o cachorro cor de sebo, e mais outro, vaqueiro com a buzina de corno, Serafim, visonho ainda tristão, jocoso de humildades. Seo Lau, Ladislau, impunha pasto plantado, por afreguesada regalia, não tolerava o gado em rapador. Serafim, aquele, só certo figurava, em par com as chefias e os destinos.
Zepaz estava com o juízo quente. E que quais vinham lá aqueles dois: o cego, pernas estreitas de andar, com uma cruz grande às costas; o guia — rebuço de menino corcunda, feio como um caju e sua castanha. — Menino é a mãe! — ele contestou, era muito representado. Era o anão Dinhinhão. Retornava para sertões, comum que o dinheiro corre é nas cidades? Dizendo que por vontade própria o cego carregava a cruz: — Penitências nossas... — se assoviava. — Pois dizem que matei um homem, precipitado... — ora, ô. Ele? porque cego nasceu, com culpas encarnadas.
O Padre não desdisse: tinha cedido de vir — pela espórtula dos ciganos, os que com fortes quantias, decerto salteado por aí algum fazendeiro. Dinhinhão leve encaminhava o cego atrás deles, para festivo esmolar, já acham que ele é profeta, espia com sem-vergonhez as ciganas. A mulher de Zepaz piscava outra vez, na janela, primorosa sem rubôres. O cego, sentado, não se desabraçava da cruz.
O chefe cigano vem a So Lalau, pé à frente, mãos para trás, subindo fingidas ladeiras, faz uns respeitos: — Meu dono... — se chamava era o cigano Zé Voivoda, tinha os bigodes do rei de copas. Mais o cigano velho Cheirôlo, beijaram a mão do Padre, religião deles é remedada. Convidavam todos para ceia. So Lau e os vaqueiros rejeitam, cobram seu feijão atoucinhado. O Padre aceitou; antes, prova cachaça, de Zepaz, cá fora.
O Padre bebe ou reza, por este mundo torto, diz-se que ele bebe particular. Dinhinhão não deixa o cego adormecer de barriga vazia, vai enxerir no ouvido do vaqueiro Serafim igualamento: — Só o pobre é que tem direito de rir, mas para isso lhe faltam os fins ou motivos...; o enxotaram. O preto Mozart se praz do variar de tanta gente ajuntada. De dentro, a mulher de Zepaz canta que o amor é estrelas. Zepaz tranca portas. Do lugar, o Te-Quentes, ele trocara nome para Rancho-Novo. Inda bem que ia ser lua cheia.
A lua subida sobresselente. Vozeiam os ciganos, os sapos, percebem para si a noite toda. Dão festa. Aí o peão surdo-mudo: guinchos entre rincho e re-rincho — de trastalastrás! Fazem isto sem horas, doma de cavalos e burros, entanto dançam, furupa, tocam instrumentos; mesmo alegres já tristes, logo de tristes mais alegres. Tudo vêm ver, às máscaras pacíficas, caminhando muito sutilmente, um solta grito de gralha; senão o razoar, socó, coruja, entes do brejo, de ocos, o ror do orvalho da aurora. — Sei lá de ontem? — a parlapa, cigano Manjericão, cigano Gustuxo. Andante a lua. — O amanhã não é meu... — o cigano Florflor. O Padre, folgaz, benzeu já o oiti, pau do mato? Se diz — não seja — que as moças ficam nuas, ante o cego, se banham na lagoa. Por frestas espiará a mulher de Zepaz o mundo prateado. Dinhinhão, o anão, é quem vigia o que não há e imoralmente aprende. Zepaz tem o sono grosso. Dormem todos — cá os vaqueiros bambos de em meio de viagem — dão mão à natureza. Até o luar alumiava era por acaso.
Até que o sol fez brecha, o alvorecer já pendurado. A manhãzinha passarava.
É já que: nem um cigano!
Idos, a toque, para o norte, sem a barulhada que sempre fazem, antes de descamparem. Só refere o preto Mozart: em testa, em fé, em corcel, o Padre sopesava a cruz...
— Ah! — impagável, vociferoz, Zepaz, com feio gesticulejo. Dinhinhão destorce a cabeça enorme, como quando o gato acorda e finge que não; o cego sobraçado a uma de suas pernas. Aah... — brabo Zepaz, já griséu. Vote o de arrendar bentas árvores! — caçava machado. A boiada reaparecia, buscada de rocios e verdes. De risos, os vaqueiros sacodem os redondos chapéus-de-couro. O cachorro mija gentil no oitizeiro. — Ai, a minha cruz!? — o cego alastra braços, à tactura. Dinhinhão de olhos meio em ponto: — Tem-te, irmão, a cruz emprestei... Ora, ô. Urra o cego, enfeixa capins em cada mão, cava o chão. A cruz continha um vazio, nem seu guia soubesse disso, ali ele ocultava o lucro das esmolas. Dinhinhão rejeita o desabuso, declara, de pé, capaz de cair de qualquer lado: — O rico é um buraco, o pobre é um pedregulho! — ele furtou um flautim dos ciganos, capaz de qualquer arlequinada. — Sou um pecador de Deus... — se volta para todos, para louvor. O que não produz nem granjeia. Reprovado, aqui então pula no centro, expõe boas coisas: que o Padre rezou a inteira noite, missionário ajoelhado num jornal; a mulher de Zepaz, com o cigano Vai-e-Volta, se estiveram, os dois debaixo de um mantão... Zepaz, sim? ouviu, de vermelho preteou, emboca em casa, surrando já a mulher, no pé da afronta, até o diabo levantar o braço. So-Lau entanto só quer: urgente, cá, Zepaz, imediato, para receber a paga do gado pernoitado. Dinhinhão toca o flautim, regira, xis, recruza tortas pernas — diante dele o cego credos desentoa. Zás, em fogos, Zepaz, deixou trancada a mulher, pelo dinheiro vem, depois vai terminar de bater. Não. Zepaz torna a entrar, e gritos, mas, então: sovava-o agora a cacete era a mulher, fiel por sua parte, invesmente. Segundo o preto Mozart: — Só assim o povo tem divertimento. Se disse: sem beber, o Padre aguentasse remir mundo tão em desordenância? Inda se ouvindo um galo que cantava sem onde. A boiada se abanava. So-Lau decide: — São coisas de outras coisas... Dá o sair. Se perfaz outra espécie de alegria dos destrambelhos do Rancho-Novo. Serafim sopra no chifre — os sons berrantes encheram o adiante.

- João Guimarães Rosa, no livro "Tutameia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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