Débora Leão - poemas

Henri Matisse, Mujer al laúd, 1943.

A alma é livre
Se a flor suave trescala
O aroma embriagador,
Ele colhe, despetala
E encerra o aroma da flor.

Se o trovão ribomba e estala,
Num crescendo assustador ,
Compondo uma enorme escala,
Ele escraviza o rumor.

Mas em vão, sem consciência,
Quer dominar nossa essência.
Nossa alma, leve, incorrupta,

Mais alta que a força bruta,
Que a vontade e a inteligência,
Paira, além da humana luta.
- Débora Leão, no livro "Remoto sonho". Recife PE: Editora Bagaço, 1989.

§

A lua
A face morta da lua,
Sem fluído de atmosfera,
Sem um rumor, continua
Brilhando na sua esfera.

Sem uma notícia tua,
Sem calor, sem primavera,
Como o astro que flutua
Como a lua, ah, quem me dera,

Embora toda gelada,
Sem vida, sem luz,sem ar,
Por teus olhos contemplada,

Eu passaria a brilhar 
Como a lua prateada

Refletindo a luz solar.
- Débora Leão, no livro "Remoto sonho". Recife PE: Editora Bagaço, 1989.

§

Bambusal
O bambusal e o vento vivem ambos
Sempre amigos, alegres, brincalhões.
Fortes e flexíveis, leves,bambos,
Inclinam-se os bambus nas direções

Que os ventos querem.Quantos corações.
Como eles, nos palácios, nos mocambos.
Uns egoistas, como as virações,
Outros rendendo ternos ditirambos.
Meu belo bambusal, não te desdobres
Em finezas, não lembres a bondade
Incondicional das almas nobres
Que tantas vezes a fatalidade
Obriga a conviver com aqueles pobres
De espírito, tão ricos de maldade.
- Débora Leão, no livro "Remoto sonho". Recife PE: Editora Bagaço, 1989.

§

Casa vazia
Nas horas de encantamento,
Quando a ideia vem, etérea,
Governar meu pensamento,
Escravizando a matéria.

Livre, então, por um momento,
Dessa orgânica miséria,
Desdobro as asas ao vento,
Na estrada branca e sidérea.

O meu imenso desejo
Para teus braços me guia.
Mas, de repente, me vejo

Só, numa casa vazia.
Fantasio, pois teu beijo

Só me é dado em fantasia.
- Débora Leão, no livro "Remoto sonho". Recife PE: Editora Bagaço, 1989.

§

Divagações
I

Sei de alguém que só recita
Poesia que entristece,
Porque na casa onde habita,
Onde sofre, onde adoece,

Só recebe uma visita,
Escondida numa prece
Ou numa frase bonita:
Só a musa lhe aparece.

Lembra coisas que comovem.
Mas quem é que vai chorar
Tendo versos pra rimar?

E enquanto os lábios movem,
As tristezas se dissolvem
Como as neblinas no ar.

II

Nas noites cheias de estrelas
A saudade suaviso.
Tenho olhos para vê-las,
É tudo quanto preciso.

Numa estrela como aquelas,
Nalguns versos de improviso,
Gravando a beleza delas
Minha vida romantizo:

Sou a Deusa, transportada
Num astro da imensidão,
Pelo céu toda abraçada,

Como o formoso clarão
Da noite toda estrelada,
Brilhando na escuridão.

III

A realidade vazia
Deixarei pra quem quiser;
Prefiro ser esmoler 
Do mundo da fantasia.

Acordar pedindo ao dia
Um raio de sol qualquer,
À rosa mais rosicler,
A perfumada ambrosia.

A poesia ao caminho
Do horizonte descoberto,
À noite um doce carinho,

E as asas do passarinho,
Para mirar mais de perto

O céu de estrelas coberto.
- Débora Leão, no livro "Remoto sonho". Recife PE: Editora Bagaço, 1989.

§

Lira
Da margem da lagoa adormecida,
Contemplo a superfície reluzida.
E é tão tranquilo o líquido abandono
Que cuido ouvir-lhe o plácido ressono.

Dorme a lagoa límpida estendida, 
Pelo manto do céu toda envolvida.
Do seu profundo demorado sono
Vem despertá-la o vendaval do outono.

Sob as fortes rajadas incessantes
A água parece impulcionada lira,
Cheia de sons e espumas cintilantes.

Assim tocam-me as tuas mãos vibrantes,
E aminha carne em frêmito delira

Como a linda lagoa azul safira!
- Débora Leão, no livro "Remoto sonho". Recife PE: Editora Bagaço, 1989.

§

Maternidade
Mulher, as leis eternas absolutas
Te espantam quando a dor te dilacera
As entranhas.Que importa se executas
A tarefa mais nobre que te espera?

Bendiz tantas dores, tantas lutas;
Amar não é somente uma quimera,
Amam asas e flores impolutas,
Há extremos no querer de uma pantera.

Vê a terra, tua irmã nesta grandeza:
Quantas vezes também sonhando fica
Em flor, plena de luz e de beleza!

Pois a terra que é grande, bela e rica
Deu-te com o seu exemplo a singeleza

Da árvore que floresce e frutifica 
- Débora Leão, no livro "Remoto sonho". Recife PE: Editora Bagaço, 1989.

§

Salve o sol
Salve o sol da manhã, o astro que assume
Atributos divinos, sem mistério,
Atrai a terra, com o brilhante lume
Apagando as estrelas do hemisfério.

Abençoado seja o seu império
Sobre os mundos.Por tudo que resume
O resplendor do seu clarão sidério:
Natureza,calor,vida,perfume;

Pelo raio de luz ao chão resvala,
Atravessando a lama, até levá-la
Como suave, pálida neblina,

Que amanhã cairá na pequenina
Gota de orvalho, resumindo a escala

De cores do clarão que me ilumina.
- Débora Leão, no livro "Remoto sonho". Recife PE: Editora Bagaço, 1989.

§

Sinfonia universal
Creio no céu, num mundo mais feliz.
Mas esta terra é um céu, claro e ideal,
De belezas sublimes e pueris.
Adorando o perfume vegetal,

A semente plantei, sua raiz
Adubei. A raiz, força vital,
Deu-me o perfume doce, como eu quis.
Quem sabe, Deus, desconhecendo o mal,

Fez tudo mais ou menos como eu fiz,
nos térreos elementos rudes, vis,
Plantou o triste gérmen animal.

E assim como eu aspiro o roseiral,
Do céu, Ele ouve as notas mais sutis

Da grande sinfonia universal.
- Débora Leão, no livro "Remoto sonho". Recife PE: Editora Bagaço, 1989.

§


BREVE BIOGRAFIA DA AUTORA


:: Remoto sonho. Recife PE: Editora Bagaço, 1989.


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