Darandina - João Guimarães Rosa

© Gustavo Aimar

Darandina

De manhã, todos os gatos nítidos nas pelagens, e eu em serviço formal, mas, contra o devido, cá fora do portão, à espera do menino com os jornais, e eis que, saindo, passa, por mim e duas ou outras três pessoas que perto e ali mais ou menos ocasionais se achavam, aquele senhor, exato, rápido, podendo-se dizer que provisoriamente impoluto. E, pronto, refez-se no mundo o mito, dito que desataram a dar-se, para nós, urbanos, os portentosos fatos, enchendo explodidamente o dia: de chinfrim, afã e lufa-lufa.
— “Ô, seô!…” –foi o grito; senão se, de guerra: — “Ugh, sioux!…” — também cabendo ser, por meu testemunho, já que com concentrada ou distraída mente me encontrava, a repassar os próprios, íntimos quiproquós, que a matéria da vida são. Mas: — “Oooh…” — e o senhor tão bem passante algum quieto transeunte apunhalara?! Isso em relance e instante visvi — vislumbrou-se-me. Não. Que só o que tinha sido — vice-vi-mais — : pouco certeiro e indiscreto no golpe, um afanador de carteiras. Desde o qual, porém, irremediável, ia-se o vagar interior da gente, roto, de imediato, para durante contínuos episódios.
— “Sujeito de trato, tão trajado…” — estranhava, surgindo do carro, dentr’onde até então cochilara, o chofer do dr. Bilôlo. — “A caneta-tinteiro foi que ele abafou, do outro, da lapela…” — depunha o menino dos jornais, só no vivo da ocasião aparecendo. Perseguido, entretanto, o homem corria que luzia, no diante do pé, varava pela praça, dava que dava. — “Pega!” Ora, quase no meio da praça, instalava-se uma das palmeiras-reais, talvez a maior, mesmo majestosa. Ora, ora, o homem, vestido correto como estava, nela não esbarrou, mas, sem nem se livrar dos sapatos, atirou-se-lhe abraçando, e grimpava-a, voraz, expedito arriba, ao incrível, ascensionalíssimo. — Uma palmeira é uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira? — inquiriria um filósofo. Nosso homem, ignaro, escalara dela já o fim, e fino. Susteve-se.
— Esta! — me mexi, repiscados os olhos em tento por me readquirir. Pois o nosso homem se fora, a prumo, a pino, com donaires de pica-pau e nenhum deslize, e ao topo se encarapitava, safado, sabiá, no páramo empíreo. Paravam os de seu perséquito, não menos que eu surpresos, detidos, aqui em nível térreo, ante a infinita palmeira — muralha-vaz. O céu só safira. No chão, já nem se contando o crescer do ajuntamento, dado que, de toda a circunferência, acudiam pessoas e povo, que na praça se esmagotava. Tanto nunca pensei que uma multidão se gerasse, de graça, assim e instantânea.
Nosso homem, diga-se que ostentoso, em sua altura inopinada, floria e frutificava: nosso não era o nosso homem. — “Tem arte…” — e quem o julgava já não sendo o jornaleiro, mas o capelão da Casa, quase com regozijo. Os outros, acolá, de infra a supra, empinavam insultos, clamando do demo e aqui-da-polícia, até se perguntava por arma de fogo. Além, porém, muito a seu grado, ele imitativamente aleluiasse, garrida a voz, tonifluente; porque mirável era que tanto se fizesse ouvir, tudo apesar-de. Discursava sobre canetas-tinteiro? Um camelô, portanto, atrevido na propaganda das ditas e estilógrafos. Em local de má escolha, contudo, pensei; se é que, por descaridosa, não me escandalizasse ainda a idéia de vir alguém produzir acrobacias e dislativas peloticas, dessas, justo em frente de nosso Instituto. Extremamente de arrojo era o sucesso, em todo o caso, e eu humano; andei ver o reclamista.
Chamavam-me, porém, nesse entremenos, e apenas o Adalgiso, sisudo ele, o de sempre, só que me pegando pelo braço. Puxado e puxando, corre que apressei-me, mesmo assim, pela praça, para o foco do sumo, central transtornamento. Com estarmos ambos de avental, davam-nos alguma irregular passagem. — “Como foi que fugiu?” — todo o mundo perguntando, do populacho, que nunca é muito tolo por muito tempo. Tive então enfim de entender, ai-me, mísero. — “Como o recapturar?” Pois éramos, o Adalgiso e eu, os internos de plantão, no dia infausto’fanático.
Vindo que o Adalgiso, com de-curtas, não urgira em cochichar-me: nosso homem não era nosso hóspede. Instantes antes, espontâneo, só, dera ali o ar de sua desgraça. — “Aspecto e facies nada anormais, mesmo forma e conteúdo da elocução a princípio denotando fundo mental razoável…” Grave, grave, o caso. Premia-nos a multidão, e estava-se na área de baixa pressão do ciclone. — “Disse que era são, mas que, vendo a humanidade já enlouquecida, e em véspera de mais tresloucar-se, inventara a decisão de se internar, voluntário: assim, quando a coisa se varresse de infernal a pior, estaria já garantido ali, com lugar, tratamento e defesa, que, à maioria, cá fora, viriam a fazer falta…” — e o Adalgiso, a seguir, nem se culpava de venial descuido, quando no ir querer preencher-lhe a ficha.
–“Você se espanta?” — esquivei-me. De fato, o homem exagerara somente uma teoria antiga: a do professor Dartanhã, que, mesmo a nós, seus alunos, declarava-nos em quarenta-por-cento casos típicos, larvados; e, ainda, dos restantes, outra boa parte, apenas de mais puxado diagnóstico… Mas o Adalgiso, mas ao meu estarrecido ouvido: — “Sabe quem é? Deu nome e cargo. Sandoval o reconheceu. É o Secretário das Finanças Públicas…” — assim baixinho, e choco, o Adalgiso.
Ao que, quase de propósito, a turba calou-se e enervou-nos, à estupefatura. Desolávamo-nos de mais acima olhar, aonde evidentemente o céu era um desprezo de alto, o azul antepassado. De qualquer modo, porém, o homem, aquém, em torre de marfim, entre as verdes, hirtas palmas, e ao cabo de sua diligência de veloz como um foguete, realizava-se, comensurado com o absurdo. Sei-me atreito a vertigens. E quem não, então, sob e perante aquilo, para nós, um deus-nos-acuda, de arrepiar perucas, semelhante e rigorosa coisa? Mas um super-humano ato pessoal, transe hiperbólico, incidente hercúleo. — “Sandoval vai chamar o dr. Diretor, a Polícia, o Palácio de Governo…” — assegurou o Adalgiso.
Uma palmeira não é uma mangueira, em sua frondosura, sequer uma aroeira, quanto a condições de fixibilidade e conforto, acontece-que. Que modo e como, então, aguentava de reter-se tanto ali, estadista ou não, são ou doente? Ele lá não estava desequilibrado; ao contrário. O repimpado, no apogeu, e rematado velhaco, além de dar em doido, sem fazer por quando. A única coisa que fazia era sombra. Pois, no justo momento, gritou, introduziu-se a delirar, ele mais em si, satisfatível: — “Eu nunca me entendi por gente!…” — de nós desdenhava. Pausou e repetiu. Daí e mais: — “Vocês me sabem é de mentira!” Respondendo-me? Riu, ri, riu-se, rimo-nos. O povo ria.
Adalgiso, não: — “Ia adivinhar? Não entendo de política” — inconcluía. — “Excitação maníaca, estado demencial… Mania aguda, delirante… E o contraste não é tudo, para se acertarem os sintomas?” — ele, contra si consigo, opunha. Psiu, porém, quem, assado e assim, a mundos e resmungos, sua total presença anunciava? Vê-se que o dr. Diretor: que, chegando, sobrechegado. Para arredar caminho, por império, os da Polícia — tiras, beleguins, guardas, delegado, comissário — para prevenir desordem. Também, cândidos, como o dr. Diretor, os enfermeiros, padioleiros; Sandoval, o Capelão, o dr. Enéias e o dr. Bilôlo. Traziam a camisa-de-força. Fitava-se o nosso homem empalmeirado. E o dr. Diretor, dono: — “Há de ser nada!”
Contestando-o, diametral, o professor Dartanhã, de contrária banda aportado: — “Psicose paranóide hebefrênica, dementia praecox, se vejo claro!” –; e não só especulativo-teorético, mas por picuinha, tanto o outro e ele se ojerizavam; além de que rivais, coincidentemente, se bem que calvo e não calvo. Toante que o dr. Diretor ripostou, incientífico, em atitude de autoridade: — “Sabe quem aquele cavalheiro é?” — e o título declinou, voz vedada; ouvindo-o, do povo, mesmo assim, alguns, os adjacentes sagazes. Emendou o mote o professor Dartanhã: “–…mas transitória perturbação, a qual, a capacidade civil, em nada lhe deixará afetada…” — versando o de intoxicação-ou-infecção, a ponto falara. Mesmo um sábio se engana quanto ao em que crê –; cremos, nós outros, que nossos límpidos óculos limpávamos. Assim cada qual um asno prepalatino, ou melhor, apud o vulgo: pessoa bestificada. E, pois que há razões e rasões, os padioleiros não depunham no chão a padiola.
Porque, o nosso, o excelso homem, regritou: — “Viver é impossível!…” — um slogan; e, sempre que ele se prometia para falar, conseguia-se, cá, o multitudinal silêncio — das pessoas de milhares. Nem esquecera-lhe o elemento mímico: fez gesto — de que empunhasse um guarda-chuva. ameaçava o quê a quem, com seu estro catastrófico? — “Viver é impossível!” — o dito declarado assim, tão empírico e anermenêutico, só através do egoísmo da lógica. Mas, menos como um galhofeiro estapafúrdio, ou alucinado burlão, pendo a ouvir, antes em leal tom e generoso. E era um revelar em favor de todos, instruía-nos de verdadeira verdade. A nós — substantes seres subaéreos — de cujo meio ele a si mesmo se raptara. Fato, fato, a vida se dizia, em si, impossível. Já assim me pareceu. Então, ingente, universalmente, era preciso, sem cessar, um milagre; que é o que sempre há, a fundo, de fato. De mim, não pude negar-lhe, incerta, a simpatia intelectual, a ele, abstrato — vitorioso ao anular-se — chegado ao píncaro de um axioma.
Sete peritos, oficiais pares de olhos, do espaço inferior o estudavam. — “Que ver: que fazer?” — agora. Pois o dr. Diretor comandava-nos em conselho, aqui, onde, prestimosa para nós, dilatava a Polícia, a proêmios de cassetetes e blasfemos rogos, uma clareira precária. Para embaraços nossos, entretanto, portava-se árduo o ilustre homem, que ora encarnava a alma de tudo: inacessível. E — portanto — imedicável. Havia e haja que reduzi-lo a baixar, valha que por condigno meio desguindá-lo. Apenas, não estando à mão de colher, nem sendo de se atrair com afagos e morangos. — “Fazer o quê!” — unânimes, ora tardávamos em atinar. Com o que o dr. Diretor, como quem saca e desfecha, prometeu: — “Vêm aí os bombeiros!” Ponto. Depunham os padioleiros no chão a padiola.
O que vinha, era a vaia. Que não em nós, bem felizmente, mas ao nosso guardião do erário. Ele estava na ponta. Conforme quanto, rápida, no chacoalhar da massa, difundira-se a identificação do herói. Donde, de início, de bufos avulsos gritos, daqui, aqui, um que outro, comicamente, a atoarda pronta borbotava. E bradou aos céus, formidável, uma, a versão voxpopular: — “Demagogo! Demagogo!…” — avessa ressonância. — “Demagôoogo!…” — a belo e bom, safa, meus que corrimaça. O ultravociferado halali, a extrair-se de imensidão: apinhada em pé, impiedosa — aferventada ao calor do dia de março. Tenho que mesmo uns de nós, e eu, no conjunto conclamávamos. Sandoval, certo sim; ele, na vida, pela primeira vez, ainda que em esboço, a revoltar-se. Reprovando-nos o professor Dartanhã: — “Não tem um político direito às suas moléstias mentais?” — magistralmente enfadado. tão certo que até o dr. Diretor em seus créditos e respeitos vacilasse — psiquiatrista. Vendo-se, via-se que o nosso pobre homem perdia a partida, agora, desde que não conseguindo juntar o prestígio ao fastígio. Demagogo…
Conseguiu-o — de truz, tredo. Em suave e súbito, deu-se que deu que se mexera, a marombar, e por causas. Daí, deixando cair… um sapato! Perfeito, um pé de sapato — não mais — e tão condescendentemente. Mas o que era o teatral golpe, menos amedrontador que de efeito burlesco vasto. Claro que no vivo popular houve refluxos e fluxos, quando a mera peça demitiu-se de lá, vindo ao chão e gravitacional se exibiu no ar. Aquele homem: — “É um gênio!” — positivou o dr. Bilôlo. Porque o povo o sentia e aplaudia, danado de redobrado: — “Viva! Viva!…” — vibraram, reviraram. — “Um gênio!” — notando-se, elegiam-no, ofertavam-lhe oceânicas palmas. Por São Simeão! E sem dúvida o era, personagente, em sua sicofância, conforme confere e confirmava: com extraordinária acuidade de percepção e alto senso de oportunidade. Porque houve também o outro pé, que não menos se desabou, após pausa. Só que, para variar, este reto, presto, se riscou — não paravolava. Eram uns sapatos amarelados. O nosso homem, em festival — autor, alcandorado, alvo: desta e elétrica aclamação, adequada.
Estragou-a a sirene dos bombeiros: que eis que vencendo a custo o acesso e despontando, com esses tintinábulos sons e estardalho. E ancoravam, isto é — rubro de lagosta ou arrebol — cujo carro. Para eles se ampliava lugar, estricto espaço de manobra; com sua forte nota belígera, colheram sobeja sobra dos aplausos. Aí já seu Comandante se entendendo com a Polícia e pois conosco, ora. Tinham seu segundo, comprido caminhão, que se fazia base da escada: andante apetrecho, para o empreendimento, desdobrável altaneiramente, essencial, muito máquina. Ia-se já agir. Manejando-se marciais tempos e movimentos, à corneta e apito dados. Começou-se. Ante tanto, que diria o nosso paciente — exposto cínico insigne?
Disse. — “O feio está ficando coisa…” — entendendo de nossos planos, vivaldamente constatava; e nisso indocilizava-se, com mímica defensiva, arguto além de alienado. A solução parecendo inconvir-lhe. — “Nada de cavalo-de-pau!” — vendo-se que de fresco humor e troiano, suspeitoso de Palas Atenéia. E: — “Querem comer-me ainda verde?!” — o que, por mero mimético e sintomático, apenas, não destoava nem jubilava. À arte que mesmo escada à parte, os bons bombeiros, muitos homens seriam para de assalto tomar a palmeira-real e superá-la: o uso avulso de um deles, tão bem em técnicas, sabe-se lá, quanto um antilhano ou canaca. A poder de cordas, ganchos, espeques, pedais postiços e poiais fincáveis. Houve nem mais, das grandes expectações, a conversa entrecortada. O silêncio timbrava-se.
Isto é, o homem, o prócer, protestou. — “Pára!…” Gesticulou que ia protestar mais. — “Só morto me arriam, me apeiam!” — e não à toa, augural, tinha ele o verbo bem adestrado. Hesitou-se, de cá para cá, hesitávamos. — “Se vierem, me vou, eu… Eu me vomito daqui!…” — pronunciou. Declamara em demorado, quase quite eufórico, enquanto que nas viçosas palmas se retouçando, desvárias vezes a menear-se oscilante por um fio. À coaxa acrescentou: — “Cão que ladra, não é mudo…” — e já que só faltava mesmo o triz, para passar-se do aviso á lástima. Parecia prender-se apenas pelos joelhos, a qualquer simples e insuportável finura: sua palma, sua alma. Ah… e quase, quasinho… quasezinho, quase… era de horrir-me o pêlo. Nanja. — “É de circo…” — alguém sus sussurrou-me, o dr. Enéias ou Sandoval. O homem tudo podia, a gente sem certeza disso. Seja se com simulagens e fictâncias? Seja se capaz de elidir-se, largar-se e se levar do diabo. No finório, descabelado propósito, perpendurou-se um pouco mais, resoluto rematado. A morte tocando, paralela conosco — seu tênue tambor taquigráfico. Deu-nos a tensão pânica: gelou-se-me. Já aí, ferozes, em favor do homem: — “Não! Não!” — a gritamulta — “Não! Não! Não!” — tumultroada. A praça reclamava, clamava. Tinha-se de protelar. Ou produzir um suicídio reflexivo — e o desmoronamento do problema? O dr. Diretor citava Empédocles. Foi o em que os chefes terrestres concordaram: apertava a urgência de não se fazer nada. Das operações de salvamento, interrompeu-se o primeiro ensaio. O homem parara de balançar-se — irrealmente na ponta da situação. Ele dependia dele, ele, dele, ele, sujeito. Ou de outro qualquer evento, o qual, imediatamente, e muito aliás, seguiu-se.
De um — dois. Despontando, com o Chefe-de-Polícia, o Chefe-de-Gabinete do Secretário. Passou-se-lhe um binóculo e ele enfiava olho, palmeira-real avante-acima, detendo-se no titular. Para com respeito humano renegá-lo: — “Não o estou bem reconhecendo…” Entre, porém, o que com mais decoro lhe conviesse, optava pela solicitude, pálido. Tomava o ar um ar de antecâmara, tudo ali aumentava de grave. A família já fora avisada? Não, e melhor, nada: família vexa e vencilha. Querendo-se conquanto as verticais providências, o que ficava por nossa má-arte. Tinha-se de parlamentar com o demente, em não havendo outro meio nem termo. Falar para fazer momento; era o caso. E, em menos desniveladas relações, como entrosar-se, físico o diálogo?
Se era preciso um palanque? — disse-me. Com que, então sem mais, já aparecia — o cônico cartucho ou cumbuca — um alto-falante dos bombeiros. O dr. Diretor ia razoar a causa: penetrar em o labirinto de um espírito, e — a marretadas do intelecto — baqueá-lo, com doutoridade. Toques, crebros, curtos, de sirene, o incerto silêncio geraram. O dr. Diretor, mestre do urso e da dança, empunhava o preto cornetão, embocava-o. Visava-o para o alto, circense, e nele trombeteiro soprava. — “Excelência!…” — começou, sutil, persuasivo; mal. — “Excelência…” — e tenha-se, mesmo, que com tresincondigna mesura. Sua calva foi que se luziu, de metalóide ou metal; o dr. Diretor gordo e baixo. Infundado, o povo o apupou: — “Vergonha, velho!” — e — “larga, larga!…” Desse modo, só estorva, a leiga opinião, quaisquer cléricas ardilidades.
Todo abdicativo, o dr. Diretor, perdido o comando do tom, cuspiu e se enxaguava de suor, soltado da boca o instrumento. Mas não passou o megafone ao professor Dartanhã, o que claro. Nem a Sandoval, prestante, nem ao Adalgiso, a cujos lábios. Nem ao dr. Bilôlo, que o querendo, nem ao dr. Enéias, sem voz usual. A quem, então pois? A mim, me, se vos parece; mas só enfim. Temi quando obedeci, e muito siso havia mister. Já o dr. Diretor me ditava:
— “Amigo, vamos fazer-lhe um favor, queremos cordialmente ajudá-lo…” — produzi, pelo conduto; e houve eco. — “Favor? De baixo para cima?…” — veio a resposta, assaz sonora. Estava ele em fase de aguda agulha. Havia que o questionar. E, a novo mando do dr. Diretor, chamei-o, minha boca, com intimativa: — “Psiu! Ei! Escute! Olhe!…” — altiloquei. — “Vou falir de bens?” — ele altitonava. Deixava que eu prosseguisse; a sua devendo de ser uma compreensão entediada. Se lhe de deveres e afetos falei! — “O amor é uma estupefação…” — respondeu-me. (Aplausos). Para tanto tinha poder: de fazer, vezes um oah-ao-oah! — mão na boca — cavernoso. Intimou ainda: — “Tenha-se paciência!…” E: — “Hem? Quem? Hem?” — fez, pessoalmente, o dr. Diretor, que o aparelho, sôfrego, me arrebatara. — “Você, eu e os neutros…” — retrucou o homem; naquele elevado incongruir, sua imaginação não se entorpecia. De nada, esse ineficaz paralàparacàparlar, razões de quiquiriqui, a ao nossa verbosia: a não ser a atiçar-lhe mais a mioleira, para uma verve endiabrada. Desistiu-se, vem que bem ou mal, do que era querer-se amimar a murros um porco-espinho. Do qual, de tão de cima, ainda, se ouviu, a final, pérfida pergunta: — “Foram às últimas hipóteses?”
Não. Restava o que se inesperava, dando-se como sucesso de ipso-facto. Chegava… O quê? O que crer? O próprio! O vero e são, existente, Secretário das Finanças Públicas — ipso. Posto que bem de terra surgia, e desembarafustadamente. Opresso. Opaco. Abraçava-nos, a cada um de nós se dava, e aliás, o adulávamos, reconhecentemente, como ao Pródigo o pai ou o cão a Ulisses. Quis falar, voz inarmônica; apontou causas; temia um sósia? Subiam-no ao carro dos bombeiros, e, aprumado, primeiro perfez um giro sobre si, em tablado, completo, adequando-se à expositura. O público lhe devia. — “Concidadãos!” — ponta dos pés. — “Eu estou aqui, vós me vedes. Eu não sou aquele! Suspeito exploração, calúnia, embuste, de inimigos e adversários…” De rouco, à força, calou-se, não se sabe se mais com bens ou que males. O outro, já agora ex-pseudo, destituído, escutou-o com ociosidade. De seu conquistado poleiro, não parava de dizer que “sim”, acenado.
Era meio-dia em mármore. Em que curiosamente não se tinha fome nem sede, de demais coisas qual que me lembrava. Súbita voz: — “Vi a Quimera!” — bradou o homem, importuno, impolido; irara-se. E quem e que era? Por ora, agora, ninguém, nulo, joão, nada, sacripante, quidam. Desconsiderando a moral elementar, como a conceito relativo: o que provou, por sinais muito claros. Desadorava. Todavia, ao jeito jocoso, fazia-se de castelo-no-ar. Ou era pelo épico epidérmico? Mostrou — o que havia entre a pele e a camisa.
Pois, de repente, sem espera, enquanto o outro perorava, ele se despia. Deu-se à luz, o fato sendo, pingo por pingo. Sobre nós, sucessivos, esvoaçantes — paletó, cueca, calças — tudo a bandeiras despregadas. Retombando-lhe a camisa, por fim, panda, aérea, aeriforme, alva. E feito o forró! — foi — balbúrdias. Na multidão havia mulheres, velhas, moças, gritos, trouxe-mouxe, desmaios. Era, no levantar os olhos, e o desrespeitável público assistia — a ele in puris naturalibus. De quase alvura enxuta de aipim, na verde coma e fronde da palmeira, um lídimo desenroupado. Sabia que estava a transparecer, apalpava seus membros corporais. — “O síndrome…” — o Adalgiso observou; de novo nos confusionávamos. — “Síndrome exofrênico de Bleuler…” — pausado, exarou o Adalgiso. Simplificava-se o homem em escândalo e emblema, e franciscano magnífico, à força de sumo contraste. Mas se repousava, já de humor benigno, em condições de primitividade.
Com o que — e tanta folia — em meio ao acrisolado calor, suavam e zangavam-se as autoridades. Não se podendo com o desordeiro, tão subversor e anônimo? Que havia que iterar, decidiram, confabulados: arcar com os cornos do caso. Tudo se pôs em movimento, troada a ordem outra vez, breve e bélica, à fanfarra — para o cometimento dos bombeiros. Nosso rancho e adro, agora de uma largura, rodeado de cordas e polícias; já ali se mexendo os jornalistas, repórteres e fotógrafos, um punhado; e filmavam.
O homem, porém, atento, além de persistir em seus altos intentos, guisava-se também em trabalho muito ativo. Contara, decerto, com isso, de maquinar-se-lhe outra esparrela. Tomou cautela. Contra-atacava. Atirou-se acima, mal e mais arriba, desde que tendo início o salvatério: contra a vontade, não o salvavam! Até; se até. A erguer-se das palmas movediças, até ao sumo vértice; ia já atingir o espique, ver e ver que com grande risco de precipitar-se. O exato era ter de falhar — com uma evidência de cachoeira. — “É hora!” — foi nossa interjeição golpeada; que, agora, o que se sentia é que era o contrário do sono. Irrespirava-se. Naquela porção de silêncios, avançavam os bombeiros, bravos? Solerte, o homem, ao último ponto, sacudiu-se, se balançava, eis: misantropóide gracioso, em artificioso equilíbrio, mas em seu eixo extraordinário. Disparatou mais: — “Minha natureza não pode dar saltos?…” — e, à pompa, ele primava.
Tanto é certo que também divertia-nos. Como se ainda carecendo de patentear otimismo, mostrava-nos insuspeitado estilo. Dandinava. Recomplicou-se, piorou, a pausa. Sua queda e morte, incertas, sobre nós pairando, altanadas. Mas, nem caindo e morrendo, dele ninguém nada entenderia. Estacavam, os bombeiros. Os bombeiros recuavam. E a alta escada desandou, desarquitetou-se, encaixava-se. Derrotadas as autoridades, de novo, diligentes, a repartir-se entre cuidados. Descobri, o que nos faltava. Ali, uma forte banda-de-música, briosa, à dobrada. Do alto daquela palmeira, um ser, só, nos contemplava.
Dizendo sorrindo o Capelão: — “Endemoninhado…”
Endemoninhados, sim, os estudantes, legião, que do sul da praça arrancavam? — de onde se haviam concentrado. Dado que roda-viveu um rebuliço, de estrépito, de assaltada. Em torrente, agora, empurravam passagem. Ideavam ser o homem um dos seus, errado ou certo, pelo que juravam resgatá-lo. Era um curso, a duro, contê-los, à estudantada. Traziam invisa bandeira, além de fervor hereditário. Embestavam. Entrariam em ato os cavalarianos, esquadrões rompentes, para a luta com o nobre e jovem povo. Carregavam? Pois, depois. Maior a atrapalhação. Tudo tentava evoluir, em tempo mais vertiginoso e revelado. Virou a ser que se pediam reforços, com vistas a pôr-se a praça esvaziada; o que vinha a ponto. Porém, também entoavam-se inacionais hinos, contagiando a multaturba. E paz?
De ás e roque e rei, atendeu a isso, trepado no carro dos bombeiros, o Secretário da Segurança e Justiça. Canoro, grosso, não gracejou: — “Rapazes! Sei que gostam de me ouvir. Prometo, tudo…” — e verdade. Do que, aplaudiram-no, em sarabando, de seus antecedentes se fiavam. Deu-se logo uma remissão, e alguma calma. Na confusão, pelo sim pelo não, escapou-se, aí, o das-Finanças-Públicas Secretário. Em fato, meio quebrado de emoções, ia-se para a vida privada.
Outra coisa nenhuma aconteceu. O homem, entre o que, entreaparecendo, se ajeitara, em berço, em seus palmares. Dormindo ou afrouxando de se segurar, se ele desse de torpefazer-se, e enfim, à espatifação, malhar, abaixo? De como podendo manter-se rijo incontável tempo assim, aos circunstantes o professor Dartanhã explicava. Abusava de nossa paciência — um catatônico-hebefrênico — em estereotipia de atitude. — “A frechadas logo o depunham, entre os parecis e nhambiquaras…” — inteirou o dr. Bilôlo; contente de que a civilização prospere a solidariedade humana. Porque, sinceros, sensatos, por essa altura, também o dr. Diretor e o professor Dartanhã congraçavam-se.
Sugeriu-se nova expediência, da velha necessidade. Se, por treslouco, não condescendesse, a apelo de algum argumento próximo e discreto? Ele não ia ressabiar; conforme concordou, consultado. E a ação armou-se e alou-se: a escada exploradora — que nem que canguru, um, ou louva-a-deus enorme vermelho — se desdobrou, em engenhingonça, até a mais de meio caminho no vácuo. Subia-a o dr. Diretor, impertérrito ousadamente, ele que naturalizava-se heróico. Após, subia eu descendo, feito Dante atrás de Virgílio. Ajudavam-nos os bombeiros. Ao outro, lá, no galarim, dirigíamo-nos, sem a própria orientação no espaço. A de nós ainda muitos metros, atendia-nos, e ao nosso latim perdido. Por que, brusco, então, bradou por: — “Socorro!…” — ?
Tão então outro tresbulício — e o mundo inferior estalava. Em fúria, arruaça e frenesis, alia população, que a insanar-se e insanir-se, comandando-a seus mil motivos, numa alucinação de manicomiáveis. Depreque-se! — não fossem derrubar caminhão e escada. E tudo por causa do sobredito-cujo: como se tivesse ele instilado veneno nos reservatórios da cidade.
Reaparecendo o humano e estranho. O homem. Vejo que ele se vê, tive de notá-lo. E algo de terrível de repente se passava. Ele queria falar, mas a voz esmorecida; e embrulhou-se-lhe a fala. Estava em equilíbrio de razão: isto é, lúcido, nu, pendurado. Pior que lúcido, relucidado; com a cabeça comportada. Acordava! Seu acesso, pois, tivera termo, e, da idéia delirante, via-se dessonambulizado. Desintuído, desinfluído — se não se quando — soprado. Em doente consciência, apenas, detumescera-se, recuando ao real e autônomo, a seu mau pedaço de espaço e tempo, ao sem-fim do comedido. Aquele pobre homem descoroçoava. E tinha medo e tinha horror — de tão novamente humano. Teria o susto reminiscente — do que, recém, até ali, pudera fazer, com perigo e preço, em descompasso, sua inteligência em calmaria. Sendo agora para despenhar-se, de um momento para nenhum outro. Tremi, eu, comiserável. Vertia-se, caía? Tiritávamos. E era o impasse da mágica. É que ele estava em si; e pensava. Penava — de vexame e acrofobia. Lá, ínfima, louca, em mar, a multidão: infernal, ululava.
Daí, como sair-se, do lance, desmanchado o firme burgo? Entendi-o. Não tinha rosto com que aparecer, nem roupas — bufão, truão, tranca — para enfrentar as razões finais. Ele hesitava, electrochocado. Preferiria, então, não salvar-se/ ao drama no catafalco, emborcava-se a taça da altura. Um homem é, antes de tudo, irreversível. Todo pontilhado na esfera de dúvida, propunha-se em outra e imensurável distância, de milhões e trilhões de palmeiras. Desprojetava-se, coitado, e tentava agarrar-se, inapto, à Razão Absoluta? Adivinhava isso o desvairar da multidão espaventosa — enlouquecida. Contra ele, que, de algum modo, de alguma maravilhosa continuação, de repente nos frustrava. Portanto, em baixo alto bramiam. Feros, ferozes. Ele estava são. Vesânicos, queriam linchá-lo.
Aquele homem apiedava diferentemente — de fora da província humana. A precisão de viver vencia-o. agora, de gambá num atordoamento, requeria nossa ajuda. Em fácil pressa atuavam os bombeiros, atirando-se a reaparecê-lo e retrazê-lo — prestidigitavam-no. Rebaixavam-no, com tábuas, cordas e peças, e, com seus outros meio apocatásticos. Mas estava salvo. Já, pois. Isto e assim. Iria o povo destruí-lo?
Ainda não concluindo. Antes, ainda na escada, no descendimento, ele mirou, melhor, a multidão, deogenésica, diogenista. Vindo o quê, de qual cabeça, o caso que já não se esperava. Deu-nos outra cor. Pois, tornavam a endoidá-lo? Apenas proclamou: — “Viva a luta! Viva a liberdade!” — nu, adão, nado, psiquiartista. Frenéticos, o ovacionaram, às dezenas de milhares se abalavam. Acenou, e chegou embaixo, incólume. Apanhou então a alma de entre os pés, botou-se outro. Aprumou o corpo, desnudo, definitivo.
Fez-se o monumental desfecho. Pegaram-no, a ombros em esplêndido, levaram-no carregado. Sorria, e, decerto, alguma coisa ou nenhuma proferia. Ninguém poderia deter ninguém, naquela desordem do povo pelo povo. Tudo se desmanchou em andamento, espraiando-se para trivialidades. Vivera-se o dia. Só restava imudada, irreal, a palmeira.
Concluindo. Dando-se que, em pós, desafogueados, trocavam-se pelos paletós os aventais. Modulavam drásticas futuras providências, com o professor Dartanhã, ex-professo, o dr. Diretor e o dr. Enéias — alienistas. — “Vejo que ainda não vi bem o que vi…” — referia Sandoval, cheio de cepticismo histórico. — “A vida é constante, progressivo desconhecimento…” — definiu o dr. Bilôlo, sério, entendo que, pela primeira vez. Pondo o chapéu, elegantemente, já que de nada se sentia seguro. A vida era à hora.
Apenas nada disse o Adalgiso, que, sem aparente algum motivo, agora e sempre súbito assustava-nos. Ajuizado, correto, circunspecto demais: e terrível, ele, não em si, insatisfatório. Visto que, no sonho geral, permanecera insolúvel. Dava-me um frio animal, retrospectado. Disse nada. Ou talvez disse, na pauta, e eis tudo. E foi para a cidade, comer camarões.

- João Guimarães Rosa, no livro "Primeiras estórias". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
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