O outro ou o outro - João Guimarães Rosa

O outro ou o outro
©Almada Negreiros

Alvas ou sujas arrumavam-se ainda na várzea as barracas, campadas na relva; diante de onde ia e vinha a curtos passos o cigano Prebixim, mão na ilharga. Devia de afinar-se por algum dom, adivinhador. Viu-nos, olhos embaraçados, um átimo. Sorria já, unindo as botas; sorriso de muita iluminação.
Seu cumprimento aveludou-se: — “Saúdes, paz, meu gajão delegado...” E pôs os olhos à escuta. Tio Dô retribuiu, sem ares de autoridade. Moço não feioso, ao grau do gasto, dava-se esse Prebixim de imediata simpatia. Além de calças azuis de gorgorão, imensa a cabeleira, colete verde — o verde do pimentão, o verde do papagaio.
Não impingia trocas de animais, que nem o cigano Lhafôfo e o cigano Busquê: os que sempre expondo a basbaques a cavalhada, acolá, entre o poço do corguinho e o campo de futebol. Tampouco forjicava chaleiras e tachos, qual o cigano Rulú, que em canto abrigado martelava no metalurgir. E era o que me atraía em Prebixim, sem modelo nem cópia, entre indolências e contudo com manhas sinceras, arranjadinho de vantagens.
Dissera-me: — “Faço nada, não, gajão meu amigo. Tenho que tenho só o outro ofício...” — berliquesloques. E que outro ofício seria então esse? — “É o que não se vê, bah, o de que a gente nem sabe.” Prebixim falara completo e vago. Estúrdio. O obscuro das ideias, atrás da ingenuidade dos fatos. — “Nem a pessoa pega aviso ou sinal, de como e quando o está cumprindo...” O contrário do contrário, apenas.
Tio Dô vinha a sabendas, porém, sob dever de lei, não a especular ofícios desossados. Dizia-os: — “Mariolas. Mais inventam que entendem.” Instruía-me do malconceito deles, povo à toa e matroca, sem acato a quaisquer meus, seus e nossos, impuros de mãos.
Do Ão, por exemplo, chegara mensageiro secreto, recém-quando. Caso de furto. E tendo eles arranchado lá — por malino acréscimo de informação. Estes mesmos, no visível espaço: as calins que cozinhavam ou ralhavam na gíria gritada, o cigano Roupalimpa passando montado numa mula rosilha, as em álacre vermelho raparigas buena-dicheiras. Loucos, a ponto de quererem juntas a liberdade e a felicidade.
Tio Dô ia agir, com prazo e improrrogo. Ele pesava tristonho, na ocasião; não pela diligência de rotina, mas por fundos motivos pessoais. Eu também. Fitávamos as barracas, sua frouxa e postiça arquitetura. A gente oscila, sempre, só ao sabor de oscilar. Ainda mal que, no lugar, a melancolia grassava.
Tio Dô disse-lhe: — “Amigo, vamos abrir o A?”
Prebixim elevou e baixou os braços — o colete de pessoa rica. — “Meu gajão delegado... Sou não o capitão-chefe. Coisa de borra que sou... Que é que eu tenho comigo?” — questão contristada, estampido de borboleta em hora de trovão.
— “Você é o calão nosso amigo.”
Prebixim contramoveu-se, relançou-me um olhar. Aprumara seu eixo vertebral, sorria por todos os distritos do açúcar.
— “Você hoje está honesto?” — Tio Dô aumentou.
— “Hi, gajão meu delegado... Mesmo ontem, se Deus quiser... Deus e o meu São Sebastião!...” Assentia fácil e automático, como os ursos; dele emanava porém uma boa-vontade muito sutil, serenizante.
— “Pois, olhe, estão faltando coisas...”
Nenhum oh, nem um ah. — “Quand’onde?” — fez. Sério. Dera um espirro para trás? As barracas eram quase todas cônicas, como wigwams, uma apenas trapezoidal, maior, em feitio de barracão, e outra pavilhãozinho redondo, miniatura de circo. — “Lilalilá!” — um chamado alto de mulher, com três sílabas de oboé e uma de rouxinol.
— “No Ão” — Tio Dô quebrou a pausa, homem de bom entendimento.
— “Esta, agora!” — e o outro balançou, sabiamente sucumbido; já era a virtude em ato, virtude caída do cavalo. Mas simples sem cessar, na calma e paz, que irradiava, felicidade na voz.
— “Essas ideias enchendo as cabeças...” — falou, a si, sem sentir-se da sobrevença no que lhe dizia desrespeito. Tio Dô o encarava, compacto complacente. Prebixim desenhou no ar um gesto de príncipe. — “Ô tamanho de diabo!” — falara a ponto, de suspiro a solução. Pedia espera, meio momento. Fazia vista.
E já lá: — “Ú, ú, ú!” — convocava os outros, cataduras, o cigano Beijú, capitão, o cigano Chalaque, de bigodes à turca ou búlgara. Debatiam, em romenho, dando-se que ásperos, de se temer um destranque. Calavam ora em acordo, entravam a uma das barracas.
Tio Dô olhara aquilo e contemplara. — “Podia ser tocador de sanfona...” — comentou, piscou amistoso.
— “Tenho em mercê...” — Prebixim, bizarro, cavalheiro, entregava a Tio Dô o relógio de prata, como se fosse um presente. — “É fifrilim, coisa de nada...” — calava o que dava, com modéstia e rubor. Outros objetos ainda restituía; oferecia-os, novo e honesto feito alface fresca.
Entressorriram-se ele e Tio Dô, um a par do outro, ou o que um sábio entendendo de outro. — “Eta! eta! eta!” — coro: as mulheres aplaudiam a desfatura, com mais frases em patoá. Ele era delas o predileto. Meninos pulavam por todos os lados. Passou-me um elefante pelo pensamento. Tio Dô tossiu, para abreviar o instante.
— “Saúdes, estar...” — e Prebixim curvava-se, cruzadas rápidas as pernas, no se despedir, demais, por ter cabeça leve, a fina arte da liberdade.
Mais paz, mais alma, de longe ainda olhávamos, aquelas barracas no capim da vargem. — “O ofício, então, era esse?” — falei, tendo-me por tolo.
Ave, que não. Devia de haver mesmo um outro, o oculto, para o não-simples fato, no mundo serpenteante. Tinha-o, bom, o cigano Prebixim, ocupação peralta. Ele, lá, em pé, captando e emitindo, fagulhoso, o quê — da providência ou da natureza — e com o colete verde de inseto e folha.
Dizia nada, o meu tio Diógenes, de rir mais rir. Somente: — “O que este mundo é, é um rosário de bolas...” Fechando a sentença.


 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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