Os pássaros de Deus - Mia Couto



© Gabriella Barouch
Os pássaros de Deus

Desculpa: mais peregrino que o rio não conheço. As ondas vão, vão nessa ida sem fim. Há quanto tempo a água tem esse serviço? Sozinho sobre a velha canoa, Ernesto Timba media a sua vida. Aos doze anos começara a escola de tirar peixe da água. Sempre no comboio da corrente, a sua sombra havia mostrado, durante trinta anos, a lei do homem sobre o rio. E tudo era para quê? A seca esgotara a terra, as sementeiras não cumpriam promessa. Quando regressava da pescaria, não tinha defesa para os olhos da mulher e dos filhos que se espetavam nele. Pareciam olhos de cachorro, custava admitir, mas a verdade é que a fome iguala os homens aos animais.
Enquanto pensava as suas dores, Timba fez a canoa escorrer devagarinho. Por baixo da mafurreira da margem, ali onde o rio estreitava, parou o barco para enxotar o pensamento triste. Deixou o remo a trincar a água e a canoa agarrou-se à imobilidade. Mas o pensamento insistia:
— Vivi o quê? Água, água, só mais nada.
A canoa, entre um e outro baloiar, multiplicava-lhe a angústia.
— Vão-me tirar um dia, engolido no rio.
Ele antevia a mulher e os filhos a verem-no sair puxado do lodo, e era como se arrancassem as raízes da água.
Por cima, a mafurreira guardava o recado agreste do sol. Mas Timba não escutava a árvore, os olhos espreitavam-lhe a alma. E pareciam cegos, que a dor poeira que nos vai vazando a luz. Mais alto, a manhã chamou e ele sentiu o cheiro do azul intenso.
— Quem me dera ser do céu — suspirou.
E sentia a fadiga de trinta anos a pesar-lhe na vida. Lembrou as palavras de seu pai, feitas para lhe ensinar coragem:
— Está ver o caçador, maneira que ele faz? Prepara a zagaia momento que ele vê a gazela. Enquanto não, o pescador não pode ver o peixe dentro do rio. O pescador credita uma coisa que não vê.
Aquela era a lição do há-de vir da vida e ele, agora, lembrava as sábias palavras. Fazia-se tarde e a fome avisou-o da hora de voltar. Começou a mover o barco enquanto deitava os últimos olhares para lá, atrás das nuvens. Foi então que um pássaro enorme passou no céu, parecia um rei satisfeito com a sua própria grandeza. O bicho, no alto, segurou-lhe os olhos e uma inquietação estranha nasceu dentro de si. Pensou:
“Se aquele pássaro casse agora meu concho!” (Concho: canoa.)
Pronunciou alto aquelas palavras. Mal se calou, o pássaro sacudiu as enormes asas e, bruscamente, desvoou, desvoou, em direcção à canoa. Tombou, parecia despedido da vida. Timba recolheu aquele destroço e, segurando-o nas mãos, viu que o sangue ainda não desabotoara aquele corpo. No barco, o animal foi recuperando. Até que direitou e subiu à proa a olhar a sua sobrevivência. Timba pegou nele, pesou-lhe a carne para lhe adivinhar o caril. Afastou a ideia e, com um empurrão, ajudou a ave a retomar o voo.
— Suca (Suca: Fora daqui!) pássaro, vai donde vieste!
Mas o pássaro deu meia volta e regressou ao barco. O pescador voltou a enxotá-lo. Outra vez, o mesmo regresso. Ernesto Timba começou a sustar.
— Maldito pássaro, volta na tua vida.
Nada, o pássaro não se mexia. Foi então que o pescador suspeitou: aquilo não era um pássaro, era um sinal de Deus. Esse aviso do céu havia de matar, para sempre, o seu sossego.
Acompanhado pelo animal voltou para a aldeia. Chegou a casa, a mulher festejou:
— Vamos armoçar o pássaro!
Num alvoroo chamou as crianças:
— Meninos, andam ver chinhanhane (Chinhanhane: passarinho) .
Sem responder, Timba poisou a ave sobre a esteira e foi às traseiras da casa buscar tábuas, arame e caniço. Começou logo ali a construir uma gaiola de grandes dimensões, mesmo um homem em pé cabia dentro. Meteu nela o animal e deitou-lhe o peixe que pescara.
A mulher dimirava: o homem estava maluco. O tempo foi passando e os cuidados de Timba eram todos para o pássaro.
A mulher perguntava, apontando o pássaro:
— A fome da maneira que está apertar, você não quer-lhe matar?
Timba levantava o braço, categórico. Nunca! Quem tocasse no pássaro seria punido por Deus, seria descontado na vida.
E assim foram passando os dias, o pescador aguardando novos sinais dos desígnios divinos. Vezes sem conta, ficava na tarde molhada enquanto o rio se sentava à sua frente. O sol abaixava e ele fazia a última visita de controlo à gaiola onde o animal engordava. Pouco a pouco, foi notando uma sombra de tristeza pousada no pássaro sagrado. Percebeu que o bicho sofria por estar só. Uma noite pediu a Deus que enviasse uma companheira para a ave solitária. No dia seguinte, a gaiola tinha um novo habitante, uma fêmea. Silenciosamente, Timba agradeceu aos céus pela nova dádiva. Ao mesmo tempo, uma preocupação lhe foi nascendo: por que razão Deus lhe confiara a guarda daqueles animais? De que mensagem seriam portadores?
Pensou, pensou. Esse sinal, esse relâmpago de plumas brancas, só podia significar que a disposição do céu estava para mudar. Se os homens aceitassem despender a sua bondade para com os mensageiros celestes, então, a seca terminaria e o tempo da chuva ia começar. Coubera-lhe a ele, pobre pescador do rio, ser hospedeiro dos enviados de Deus. Competia-lhe mostrar que os homens podem ainda ser bons. Sim, que a verdadeira bondade não se mede em tempo de fartura mas quando a fome dança no corpo dos homens.
A mulher, regressada da machamba, interrompeu-lhe o pensamento:
— Afinal? São dois agora?
Ela chegou-se mais perto, sentou-se na mesma esteira e fixando longa-mente o seu companheiro, falou:
— Ó marido: a panela está no fogo. Estou pedir licença no pescoço de um, de um só.
Foi estrago de tempo. Timba prometeu severo castigo a quem maltratasse os pássaros divinos.
Com o tempo, o casal teve crias. Eram três, feios e desajeitados, sempre de goela aberta: um apetite de vazar o rio. Timba trabalhava pelos pais dos passa-rinhos. A comida de casa, já tão escassa, era desviada para alimentar a capoeira.
Na aldeia, espalhou-se a suspeita: Ernesto Timba estava era maluco. A própria mulher, depois de muito ameaçar, abandonou o lar, levando com ela todos os filhos. Timba pareceu nem notar a ausência da família. Preocupou-se, isso sim, em reforçar a segurança do galinheiro. Sentia em redor o espírito da inveja, a congeminação da vingança. Que culpa tinha ele de ter sido escolhido? Diziam que enlouquecera. Mas quem é escolhido por Deus perde sempre os seus caminhos.
E uma tarde, acabando o serviço do rio, uma suspeita queimou-lhe a mente: os pássaros! Pôs-se de regresso, rapidando. Já próximo, viu uma nuvem de fumo subindo nas árvores que cercavam a sua casa. Encostou a canoa sem sequer a amarrar e desatou a correr em direcção à tragédia. Quando chegou já só restavam destroços e cinzas. A madeira e o arame tinham sido mastigados pelo lume. Por entre as tábuas escapava uma asa que o fogo não tocara. O pássaro deve ter-se arremessado contra a parede das chamas e a asa fugira, era uma seta terrível a apontar desgraça. Não baloiçava, como é mania das coisas mortas. Estava firme, cheia de certeza.
Timba recuou aterrado. Gritou pela mulher, pelos filhos e depois, desco-brindo que não havia por quem mais gritar, chorou lágrimas de raiva, tantas que lhe magoaram os olhos.
Porque? Porquê magoaram os pássaros, tão bonitos que eram? E, ali, entre cinza e fumo, explicou-se a Deus:
— Vais zangar, eu sei. Vais castigar os teus filhos. Mas olha: estou pedir desculpa. Faz morrer a mim sozinho, eu. Deixa os outros no sofrimento que já estão sofrer. Mesmo podes esquecer a chuva, podes deixar a poeira encostada no chão, mas faz favor, não castigues os homens desta terra.
No dia seguinte, encontraram Ernesto, abraçado à corrente do rio, arrefecido pelo cacimbo da madrugada. Quando o tentaram erguer, verificaram que estava pesado e que era impossível separá-lo da água. Juntaram-se os homens mais fortes mas foi esforço vão. O corpo estava colado superfície do rio. Um receio estranho espalhou-se entre os presentes. Para iludir o medo, algum disse:
— Vão avisar a mulher. Digam aos outros que morreu o louco da aldeia.
E retiraram-se. Quando subiam a margem, as nuvens estalaram, parecia que o céu tossia, severo e doente. Noutro qualquer momento, teriam festejado o anunciar da chuva. Agora não. Pela primeira vez, se uniram as crenças suplicando que não chovesse.
Plácido, o rio foi ficando longe, a rir-se da ignorância dos homens. E num embalo terno foi levando Ernesto Timba, corrente abaixo, a mostrar-lhe os caminhos que ele apenas tinha aflorado em sonhos.

— Mia Couto, no livro "Noites anoitecidas". Lisboa: Editorial Caminho,1987.
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