Intruge-se - João Guimarães Rosa

© Jose Vital Branco Malhoa

Intruge-se

Ladislau trazia dos gerais do Saririnhém a boiada, vindo por uma região de gente escura e muitos brejos, por enquanto. Em ponto pararam, tarde segunda, solitários no Provedio, onde havia pasto fechado. Eram duas e meia centenas de bois, no meio os burros e mulas — montaria para quando subissem às serras.
Onze homens tangiam-nos, entre esses o vaqueiro Rigriz, célebre, e o Piôrra, filho de longe, do Norte, cegado de um olho. Dormiram derrubadamente, ao relento das estrelas. Ladislau tinha cachorro grande, amarelo, o Eu-Meu, que acordava-o a horas certas, sem latir nem rosnar, só com a presença. O orvalho de junho molhava miúdo, às friagens. Levantavam-se, todos tantos, com lepidão. E: um dos da comitiva fora morto, a metros do arrancho, no passo da madrugada!
Se achou: o Quio, endurecido o corpo, de borco — sangue no capim em roda — esfaqueado pelas costas. Ladislau quis não ver, tinha quizília àquilo. Rezou-lhe por alma, mesmo a cavalo, antes de contar o gado.
Era o assassinado irmão de Tiotinho e primo do Queleno, ásperos os dois lá, olhares avermelhados. Liocádio, o Piôrra, Joãozão e Amazono, revezados, abriam cova, com demora, por falta de boa ferramenta. Zèquiabo cozinheiro coou mais café; e tomava-se uca. Eu-Meu latia para o pessoal e para a estrada. Antônio Bá fincou a cruz, de dois paus de sipipira. O quanto, o silêncio.
Sol alto, se saiu, banda do Rio Março, aos campos do Sabugo. Não olhavam para trás os da culatra, Rigriz, Zègeraldo e Seiscêncio, porque isso gera desgraça. Ladislau tirava um pensar — por modo de obrigação. Se alguém o certo soubesse, não dizia; ou o muito que diziam não se provava.
Daqueles, qual, então, tinha matado o falecido? Só podia perguntar ao Sabiá-preto, seu cavalo.
Já em quase anoitecer ao Outro-Buritizinho se chegou — o rio avistado. Sitiaram o gado entre duas voltas dele, por encerro, tinham de vigiar. Ladislau quisesse prosa com o vaqueiro Rigriz: sentado esperou, beira de fogo, o Eu-Meu ao pé. Rigriz em breve veio, como é dos velhos. Sopuxou: — “Nem o cão latiu, na ocasião...” — e verdade. Do Rigriz ao são respeito se podia duvidar, homem de perita sensatez, campeiro tão forçoso? Este, de lado ficava. Ladislau desviado versou: — “Será, o Seo Drães adquire a Gralha?” — meio meditado.
Daí viu sozinho o Amazono, por exemplo, que raça de outro que fosse. Ladislau a ele propôs: — “Será, a Fazenda da Gralha, o Seo Drães vai mesmo comprar?” — e tocara-lhe antes com um dedo a mão, feito por descuido. Amazono nem somou: — “É ricaço!” — ele ripostava. Seu perfil cheio de recortes, quebrado bem o chapéu adiante, se perfazia Ladislau, descomum e cismoso. Foi a noite fria demais, estralavam as brasas.
Manhã seguinte. A vida se ata com barbante? Ladislau indo sorumbava. Matar não virava traquinagem. Apanhou oito vagens pequenas de jubaí, pôs na algibeira. Referir caso ao Patrão — raciocinado? Isso era de sua pertença. Tomava o trato.
Mas, de Tiotinho e do Queleno, tinha o que achar não: eles, do morto parentes, em nojo. Na poeirama, jogou fora duas das favas.
Trotinhava o Eu-Meu, arredio dos bois. Tocava o berrante Antônio Bá, capiau. Vaqueiro Rigriz, torna, nada falava. O dia era inteiro demasiado. Deram no Sassafrás, vereda, pouso.
Indagou então do guia Bá, no enfarinhar o feijão: — “Se a Gralha...” O outro redondeou: — “É negócio vantajado.” Ladislau drede distraído cutucou-lhe a mão. Ele espalmou-a: — “Ezcemas.” Ladislau persistiu: — “Seo Drães...” — fez de bobo. E — como se saber — o que não se arrazôa nem se intruge? Eu-Meu esperava a comida, com seriedades.
Prosseguia-se, dia nublado, sexta-feira, às pequenas léguas. Ladislau emendado pensava: não ia maldar do Piôrra, correto, caolho, corrigido. Outra fava jogou, de rejeito; quatro ainda restavam. Os bois em furupa berravam por passatempo — a boiada que vai para os horizontes. Dar conta daquilo! Voou, passou, o pica-pau-verde-e-vermelho. Voou um bendito — preto-amarelo-branco — para árvores altas. — “Seo Drães...” e o trufe-e-trufe do gado. Joãozão nem sentiu, quando ele lhe apontou à mão. — “Diz-se que pois...” — tinha respondido.
Eu-Meu emagrecia, cada dia: em casa, depois, pegava a engordar. Voou um gavião-puva. Esbarraram, para pôr acampamento: no Buriti-da-Velha — vereda — o capim roxo em flor.
Ao dia sussequente, se via chupado de morcegos o Sabiá-preto, forte animal. Vagarosos — cruzando campos, neblinas na baixa — avançavam. Ladislau ia não ter de relatar o dó à viúva, nem a pai e mãe: só o Tiotinho. Ele bocejou; fez sobrolho.
Nesse Seiscêncio — botou outra vagem fora, de repente — não se podia pôr suspeita, o simplório, bom, beócio. E conversou com Liocádio, em beira de lagoa, na paragem do meio-dia. — “Seo Drães...” Aquele riu, no lhe bulir na mão: — “Munheca para vara e laço!” Nenhum tinha o atiço, o arroto de gente maligna. Da Gralha o geral achavam. E Zègeraldo respondeu: que nas mãos tivesse ainda calejo, das capinas de janeiro e de dezembro — sem embatuque.
Alcançaram a Ribeira-das-Gamelas — cabeceira do rio — de tarde, no amolecer do ar. Tinha na algibeira vagem mais nenhuma. Dormiram cansadamente. Mais cedo acordaram. Se moviam de arrebol.
Ele, capataz, ia mesquinhar-se, vinha de tio. Esquecera alguma manha? O Zèquiabo, cozinheiro! Mas que sem desconversa respondeu: — “A Gralha é uma fartura...” — e que: em fato, já carecia de cortar as unhas. Ranchearam no Arredado, rumo-a-rumo com o São Firmino, lá às serras. Ladislau mudou para a besta Bolacha, o Sabiá-preto deixado. Pousou-se na Fazenda Santa Arcanja.
Ia-se pelos altos: ao impossível. Tudo com o cansaço maior parece torto, sem jeito de remate. — “Seo Drães...” — só falava, sem precisar, sem sandice ou sestro. Até aqui, no Muricizal, quando a tarde se pardeava; no ponto onde existiu o sítio de um Jerônimo Manêta.
Ladislau tateava as patas do Eu-Meu, com ver que se muito gastadas.
Um vaqueiro passou, Liocádio, agradou o cão — que latiu ou não latiu, não se ouviu. Ladislau falou, bateu na mão do outro — era por repetida vez! — de uso, de esquecido? Aquele, atentado, em trisco se rebelou, drempente, sacando faca à fura-bucho...
Mas Ladislau num revira-vaca, no meio do movimento, em fígado lhe desfechou encostadamente a parabellum de doze balas, boa arma! Espichado o ferrabruto amassou moita de mentrasto, caiu como vítima. Rigriz disse, que viu, que piscou: — “Remexam nos dobros deles, que o assassino ele era, por algum trato ou furto!”
Tal assim.
Todos se benzeram.
Saíam, ao outro dia seguinte, manhã. — “Seo Drães!...” — de tão acostumado a repetir o nome, aquele, do Patrão, da Fazenda-do-Vau — e da Gralha, talvez. Ia a boiada, deixalenta. Ladislau, cheio de vida e viagem, como quando um touro ergue a cabeça ante o estremecer dos prados, perfeitamente assaz. Só aboiava. Sabia que nada sabia de si.

 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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