Sinhá Secada - João Guimarães Rosa

Marc Chagall - mulher -1910

Sinhá Secada

Vieram tomar o menino da Senhora. Séria, mãe, moça dos olhos grandes, nem sequer era formosa; o filho, abaixo de ano, requeria seus afagos. Não deviam cumprir essa ação, para o marido, homem forçoso. Ela procedera mal, ele estava do lado da honra. Chegavam pelo mandado inconcebíveis pessoas diversas, pegaram em braços o inocente, a Senhora inda fez menção de entregar algum ter, mas a mulher da cara corpulenta não consentiu; depois andaram a fora, na satisfação da presteza, dita nenhuma desculpa ou palavra.
Muitos entravam na casa então, devastada de dono. Cuidavam escutar soluço, do qual mesmo não se percebendo noção. Sentada ela se sucedia, nas veras da alma, enfim enquanto repicada de tremor. Iam lhe dar água e conselhos; ela nem ouvia, inteiramente, por não se descravar de assustada dor. — “Com que?” — clamou alguém, contra as escritas injustiças sem medida nem remédio. Achavam que ela devia renitir, igual onça invencível; queriam não aprovar o desamparo comum, nem ponderar o medo do mundo, da rua constante e triste. Ela continha na mão a lembrança de criança, a chupeta seca. — “Uf!” — e a gente se fazendo mal, com dó, com dúvida de Deus em escuros. Do jeito, o fato se endereçou, começador, no certo dia.
No lugar, por conta de tudo, mães contemplavam as filhas, expostas ao adiante viver, como o fogo apura e amedronta, o que não se resume. Decidia o que, aquela? Tanto lhe fosse renegar e debater, ou se derrubar na vala da amargura. De lá, de manhã, ela desaparecera. Recitavam vozes: que numa prancha do trem-de-lastro tinham-lhe cedido viagem, para por aí ir vadiar, mediante algum mau amor. Sem trouxa de roupa, contavam que com até um pé descalço. Desde o que, puniam já agora as mães suas arregaladas filhas, por possíveis airadas leviandades mais tarde. Dela não se informavam; dera-lhes esquecimento.
Entanto errados. Ela apenas instricta obediente se movera, a variável rumo, ao que não se entende. Deixara de pensar, o que mesmo nem suportasse — hoje se sabe — ao toque de cada ideia em imagem seu coração era mais pequeno. O menino sempre ausente rodeava-a de infinidade e falta.
Tomara, em dois, três dias, o aspeto pobre demais, somente sem erguer nem arriar rosto: era a sã clara coisa extraordinária — o contrário da loucura; encostava no ventre o frio das palmas das mãos. Por isso com respeito a viu e ofereceu-lhe meio copo de cerveja e um pastel de tabuleiro a Quibia, do Curvelo, às vezes adivinhadora. — “Sinhá...” — sentiu que assim cabia chamar-lhe, ajeitando-lhe o vestido e os cabelos, ali no rumor da estação. Tinha uma filha, a quem estava indo ver, opostamente, a boa preta Quibia. Convidou consigo a Sinhá, comprando-lhe passagem para aquele intato lugar, empregou-a também na fábrica de Marzagão. Sobre os anos, foi pois quem dela pôde testemunhar o verossímil.
Moraram numa daquelas miúdas casas pintadas, pegada uma a outra, que nem degraus da rua em ladeira, que a Sinhá descia e subia, às horas certas, devidamente, sendo a operária exemplar que houve, comparável às máquinas, polias e teares, ou com o enxuto tecido que ali se produz. Não falava, a não ser o preciso diário. Deixavam-na em paz, por nela não reparar, até os homens. Só a Quibia vigiava-lhe a sombra e o sono. Donde o coligido — de relato — o que de suas escassas frases razoáveis se deduz.
Sinhá prosseguia, servia, fechada a gestos, ladeando o tempo, como o que semelhava causada morte. Tomava-lhe a filha casada da Quibia, por empréstimos, quase todo o ordenado, já que a ninguém ela nada recusava, queria nada: não esperar; adiar de ser. A bem dizer, quase nem comia, rejeitava o gosto das coisas; dormia como as aves desempoleiradas. Nem um ingrato minuto da arrancada separação poderiam restituir-lhe! Que é que o tempo tacteia? Os dias, os meses, por dentro, em seu limpo espírito, se afastavam iguais.
Decerto não a prezavam, em geral, portanto; junto dela pareciam urgidos de cuspir e se gabar. Ora a suspeitassem mulher inteligente endurecida, socapa de perfeita humildade. De propósito não os buscando nem evitando, acatava contudo de um mesmo modo os trelosos meninos, os mais velhos comuns, os moços e moças, príncipes, princesas. Quibia, sim, não duvidou, ainda que ouvida a pergunta que a Sinhá se propunha: quando, em que apontada ocasião, cometera culpa? E a resposta — de que, então, só se tivesse procedido mal, a cada instante, a vida inteira... Daí, quedava, estalável, serena, no circuito do silêncio, como por vezo não se escavam buracos na barragem de um açude.
No filho, no havido menino, vez nenhuma falou — nem a Quibia de nada soube, a não ser ao pôr-lhe a vela na mão, mais tarde; — feito guardado em cofre. Seus olhos iam-se empanando encardidos, ralos os cabelos. Durante um tal tempo, nunca mais se olhara em espelho.
Derradeiramente, porém, tiveram de notar. Ela se esparzia, deveras dona, os olhos em espécie: de perto ou de longe, instruía-os, de um arejo, do que nem se sabe. Por sua arte, desconfiassem de que nos quartos dos doentes há momentos de importante paz; e que é num cantinho que se prova melhor o vivo de qualquer festa, entre o leal cão e o gato no borralho.
— “Se ela viesse mais à igreja, havia de ser uma Santa...” — censuravam. Passava espaços era acarinhando pedaço de pedra, sem graça, áspera, que trouxera para casa; e que a Quibia precioso conservou, desde a última data. Sinhá, no mais, se esquecia ali, apartada, entrava no mundo pelo fundo, sem notícias nem lembranças. Sim, estas, depois.
Primeiro, um moço, estrito e bem trajado, chegou, subiu a ladeira, a quentes passos. Queria, caçava, sem sossego, o paradeiro de sua mãe, da qual também malvadamente separado desde meninozinho: e conseguira indicação, contadas conversas; também o coração para cá intimado o puxando... Seria ela?!
Não — era não — se conferiu, por nomes e fatos. O moreno moço sendo de outro lugar, outra sumida mãe, outra idade. Só o amor dando-se o mesmo, vem a ser, que o atraíra de vir, não por esmo.
Mas, ela, que sentada tudo recebera, calada, leve se levantou, caminhou para aquele, abençoando-o, pegou a mão do tristonho moço, real, agora assim mesmo um tanto conformado. Sorria, a Sinhá, como nunca a tinham avistado até ali, semelhava a boneca de brincar de algum menino enorme. Seu esqueleto era quase belo, delicado.
Nesse favor de alegria persistiu, todos exaltando o forte caso. Seja que por encurtado prazo. Até ao amanhecer sem dia. À Quibia ela muito contou; e fechou, final, os novos olhos. O caixão saiu, devagar desceu a ladeira, beirou o ribeirão rude de espumas em lajedos, e em prestes cova se depositou, com flores, com terra que a chuvinha de abril amaciava.
Quibia, entretanto, enfim ciente, meditou, nos intervalos de prantos, e resolveu, com sacrifícios. Retornou ao Curvelo, indagou, veio enfim àquele arraial, onde tudo, tão remoto, principiara.
Mas — o menino? Morreu, lhe responderam. Anjinho, nem chegara a andar nem falar, adoecido logo no depois do desalmoso dia, dos esforços arrebatados.
Quibia relanceou — o passado, de repente movente, sem desperdícios. Se curvou, beijando ali mesmo o chão, e reconhecendo: — “Sinhá Sarada...”


 João Guimarães Rosa, no livro "Tutaméia: Terceiras estórias". 9ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
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