Desertificação - Marina Colasanti

Paul Cezanne - 1870
Desertificação

O deserto começou a infiltrar-se na casa por baixo da porta, areia tangida por invisível sopro. Abriram, espiaram o elevador, examinaram as escadas. Nada. Nem areia nem vento. Em casa, porta fechada, halitava o siroco.
Abrasiva debaixo dos pés, suave concha nos cantos, a areia acumulava-se. Desapareceram as flores do tapete, secaram as folhagens do sofá. Quando o deserto sufocou os pássaros da tapeçaria, nenhum verde restava na sala. Sem chuva, breve morreria também o oásis do quarto.
Formada a primeira duna, o pai trouxe a cabra e o cabritinho amarrados de corda. Garantiriam o leite. A mãe, arrancando cortinas, providenciou panos, folgadas roupas, turbantes que protegiam a cabeça e a boca. Os olhos, na claridade, trabalhavam para descobrir entre frestas algum alimento para as cabras. E à noite acendiam em fogueiras o que restava dos móveis.
Mas logo a duna começou a mover-se. Desfaziam-se as ondas do cimo para ondularem mais adiante. Era hora de partir. Desmontaram a tenda, amarraram as cabras, ergueram nos ombros os odres de leite. E em fila pelo corredor seguiram a maré da duna. Acampariam onde ela parasse. Tornariam a partir com ela, viajantes no ritmo de luas e sóis. Assim para sempre, acompanhados pelo balido das cabras e pela urgência do vento, vida nômade que apenas começava.

— Marina Colasanti, no livro "Um espinho de marfim e outras histórias". Porto Alegre: L&PM, 1999.

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